“Diógenes praticou Salvador longamente, com espírito, olhos e poros abertos. A cidade foi percorrida, desenhada e estudada dezenas de vezes e, de tão impregnada, se tornou, simultaneamente, relevo e maquete mental, luz e retina, rotina e possibilidade de transformação” (1).
Há uma geração importante de arquitetos no Brasil, nascidos na segunda década do século 20, que começou a atuar profissionalmente nos anos 1930/1940 e completaria 100 anos nesta década: Lina Bo Bardi (1914-1992), Artigas (1915-1985), Delfim Amorim (1917-1972), Milton Roberto (1914-1953) e Ernâni Vasconcelos (1912-1989). O mais interessante desta geração é seu caráter transitório. Os arquitetos que dela fazem parte iniciaram seus estudos ou suas trajetórias profissionais influenciados pela arquitetura acadêmica ou eclética, em um ambiente desconfiado quanto às transformações estéticas em curso naquele momento. O exercício e aprendizado do projeto moderno não se deu na sala de aula, mas na prancheta dos seus escritórios, folheando revistas, percorrendo e se impregnando da cidade, testando soluções e se apropriando de um modernidade alheia no afã de convertê-la em própria.
Conforme o país se transformava e o gosto vigente se alterava em direção ao que conhecemos como arquitetura moderna, essa geração passou, pouco a pouco, a ocupar lugares de destaque, “instâncias de legitimação” (2). Muitos faleceram depois dos anos 1970, tendo a oportunidade de vivenciar, ao longo de praticamente todo o século 20, as diferentes etapas e correntes arquitetônicas: foram seduzidos pelas vanguardas europeias por meio das imagens publicadas nas revistas que aqui chegaram ou influenciados pela fenômeno que ficou conhecido como Escola Carioca; buscaram entrelaçar tradição e modernização e trataram o clima local onde atuaram com atenção; experimentaram as possibilidades plásticas do concreto aparente e tensionaram suas possibilidades estruturais; em alguns casos, até arriscaram certas pirotécnicas pós-modernas. Foi uma geração produtiva que participou na linha de frente de um projeto de nação. Ou, como sugere Silvia Arango, estendendo o termo para toda a América Latina, uma geração técnica, marcada “por el optimismo que produce la convicción de que los problemas de gran escala se pueden solucionar con ingenio técnico” (3), na qual a autora inclui, entre outros, arquitetos como o argentino Amancio Williams (1913-1989), o chileno Alberto Cruz Covarrubias (1917- 2013), o cubano Max Borges y Recio (1918-2009), os porto-riquenhos Osvaldo Toro (1914–1995) e Miguel Ferrer (1914–2005) e o mexicano Francisco Artigas (1916-1999).
Nascido na cidade baiana de Amargosa, Diógenes Rebouças (1914-1994) é um desses arquitetos, autodidata, com quase sessenta anos de atuação, passou por diversas correntes arquitetônicas do século 20 e deixou uma vasta obra construída que se entrelaça com a história da cidade de Salvador e do Estado Bahia no século 20, mas também do país como atesta sua relação com Anísio Teixeira. Diógenes Rebouças atuou em arquitetura e urbanismo, no ensino e no patrimônio, talvez mais do que qualquer um de sua geração, ocupou instâncias importantes de legitimação e teve em suas mão um "latifúndio profissional" como bem nos lembra Nivaldo Andrade citando a Bina Fonyat.
O livro como documento historiográfico
O livro Diógenes Rebouças: cidade, arquitetura e patrimônio, catálogo da exposição homônima, publicado nos últimos dias de 2017, deve ser brindado por diversas razões, entre elas pela visibilidade que dá a uma obra volumoso, de grande valor histórico e qualidade arquitetônica. Dá à Bahia seu pedaço no latifúndio da história da arquitetura do século 20, até há pouco tempo restrito ao Rio de Janeiro e a São Paulo.
Essa responsabilidade, claramente assumida pelos organizadores do livro – Nivaldo Andrade, Gabriela Gusmão, Gabriela Ortega e Pedro Alban –, é alcançada pela elaboração, entre outras estratégias, de uma linha do tempo na qual as vicissitudes da vida de Diógenes e sua obra são apresentadas juntamente com eventos notórios em uma esfera nacional. A estratégia não é nova, ao contrário, mas justifica-se na medida que põe de manifesto a simultaneidade entre certos acontecimentos.
No entanto, isso não é feito desde uma fé cega, como um objetivo desmedido ou um bairrismo voraz. Todo o contrário, as informações são articuladas de modo que os leitores mais atentos julguem sozinhos o papel de Diógenes na história da arquitetura moderna no Brasil.
Sobre exposições e biografias
“Each man's lifework is also a work in a series extending beyond him in either or both directions, depending upon his position in the track he occupies” (4).
Se há uma diferença básica entre uma exposição e um livro, é que a primeira geralmente permite a fruição do material exposto no espaço de modo mais livre. Ainda que exista uma narrativa previamente proposta ou imposta, a decisão de segui-la ou não, alterá-la, dedicar mais ou menos tempo a determinadas partes que a outras, é exclusivamente do visitante. Enquanto no segundo, ainda que o leitor seja livre para tomar o livro do modo que bem entenda, o texto contínuo restringe outras possíveis articulações. No caso de um biografia a presença da linearidade cronológica é, normalmente, ainda mais latente.
Os organizadores optaram por uma saída extraordinária, a divisão do livro em duas partes complementares. Enquanto na primeira são apresentadas cronologicamente a vida e a obra de Diógenes, forçando um inevitável olhar diacrônico; na segunda – estruturada em sete recortes temáticos – ganham relevo questões e problemas projetuais vistos sincronicamente, menos do campo da história da arquitetura e mais da sua teoria.
A primeira propõe uma divisão do conjunto da obra em fases, seis no total. A proposta foi identificar pontos de inflexão que determinassem períodos subsequentes dentro da trajetória profissional de Diógenes Rebouças. Sua ligação com o EPUCS e as diferentes parcerias são exemplos de critérios usados. Dá-se assim forma ao tempo, como Kluber (5) sugere ser o papel do historiador.
Os recortes temáticos da segunda parte do livro, por sua vez, e dada sua natureza tipológica – Transformar Salvador, Estruturar o turismo, Revolucionar o ensino, Construir uma universidade, Modernizar o morar, Verticalizar a cidade e Intervir no patrimônio – têm critérios estritamente arquitetônicos, a partir dos quais são selecionados um conjunto mais significativo de projetos apresentados de maneira aprofundada ao leitor por meio de desenhos originais e fotografias antigas, complementadas em alguns casos por maquetes realizadas para a exposição e fotos mais recentes. Como propõe Michel de Certeau, “cabe ao historiador o gesto de separar, de reunir, de transformar em “documentos" certos objetos distribuídos de outra maneira […] ´desfigurar´ as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. [...] Longe de aceitar os ‘dados’, ele os constitui (6).
O resultado é instigante. Se por um lado (em Modernizar o morar) nota-se a repetição de certas soluções usadas nos projetos de casas unifamiliares, tais como a associação entre o pé-direito duplo, o uso de rampas e coberturas inclinadas; por outro (em Construir uma universidade) chama a atenção a radical diferença entre as Escola Politécnica e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
Não é exagero pensar, por exemplo, que o magistral uso da topográfica no estádio da Fonte Nova ja denote o interesse evidenciado nos desenhos e cortes das intervenções urbanísticas (em Transformar Salvador) pensadas para Salvador. Esses desenhos não mostram apenas um conhecimento técnico e a destreza como desenhista e mesmo como projetista, mas revelam um interesse incomum pela cidade, por sua topografia e paisagem. Um exercício de reconhecimento, como destacam os autores.
"Dessa proximidade visceral com o lugar, e da sintonia perceptiva e reflexiva com os limiares de seu próprio tempo, emergem uma afirmação magistral da topografia e da paisagem, uma modernidade radicalizada e uma relação profunda e seletiva com o patrimônio, que marcaram as ideias, planos e projetos desenvolvidos por Diógenes Rebouças para Salvador, entre 1942 e 1982" (7).
Mas é, sem dúvida, no recorte dedicado às escolas projetadas por Diógenes (Revolucionar o ensino) onde mais latente fica sua importância para a história da arquitetura no Brasil. Foi através da sua relação com Anísio Teixeira, a partir de 1947, estendendo-se durante toda a década de 1950 e boa parte dos anos 1960, que o trabalho de Diógenes Rebouças teve mais “rebatimentos” no plano nacional.
Antes mesmo da inauguração das três primeiras escolas-classe, em Salvador, em 1950, os “rebatimentos da experiência baiana”, como registrou Hélio Duarte, já se faziam notar em outras capitais brasileiras. Ainda hoje, em pleno século 21, a parceria entre Anísio e Diógenes no Centro Educacional Carneiro Ribeiro continua a servir de paradigma para novos e relevantes projetos de edifícios escolares (8).
Finalmente, o apêndice, que na verdade constitui uma terceira parte do livro, revela outra faceta importante deste grupo de jovens pesquisadores: a vontade de atrelar à pesquisa o ensino de projeto, seja por meio do projeto de expografia, seja pelas maquetes desenvolvidas pelos estudantes.
Da qualidade material
O livro têm 384 páginas, um projeto gráfico inteligente e é vastamente ilustrado por centenas de fotografias, desenhos e plantas dos principais projetos e planos elaborados por Diógenes Rebouças em quase 60 anos de atuação profissional. A publicação é bilíngue (português/inglês) o que somado ao fato de estar disponível gratuitamente na sua versão digital, permitirá um importante impacto na cultura arquitetônica. Certamente, qualquer livro que pretenda reescrever um história total da arquitetura moderna no Brasil não terá como deixar a obra Diógenes Rebouças de fora ou subvalorizada.
Ao final a sensação é desoladora. Por que durante tanto tempo um arquiteto deste calado foi deixado à margem da história? Quantos Diógenes ainda existem? Quantos são merecedores de um esforço como o que foi feitos pelos pesquisadores que assinam o livro e organizaram a exposição?
notas
1
ANDRADE, Nivaldo; SAMPAIO, Gabriela, OTREMBA, Gabriela, ALBAN, Pedro (orgs). Diógenes Rebouças: cidade, arquitetura, patrimônio. Salvador, EDUFBA, 2016.
2
As instâncias de legitimação “consistem em instituições específicas [...], capazes de consagrar por suas sanções simbólicas e, em especial, pela cooptação, um gênero de obras e um tipo de homem cultivado”. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 2009, p. 118.
3
ARANGO, Silvia. Ciudad y arquitectura: seis generaciones que construyeron la América Latina moderna. Colômbia, Fondo de Cultura Económica, 2012.
4
KLUBER, George. The shape of time: remarks of the history of the things. New Haven, Yale University Press, 1962, p. 6.
5
KLUBER, George. Op. cit.
6
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010. p. 81
7
ANDRADE, Nivaldo; SAMPAIO, Gabriela; OTREMBA, Gabriela; ALBAN, Pedro (orgs). Op. cit.
8
ANDRADE, Nivaldo; SAMPAIO, Gabriela, OTREMBA, Gabriela, ALBAN, Pedro (orgs). Op. cit.
sobre o autor
Marcio Cotrim é doutor em História da Arquitetura, História Urbana pela Universitat Politècnica de Catalunya (2008). Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU/UFPB e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB. Pesquisador do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM) e do Grupo de Pesquisa Projeto e Memória do CNPq.