Muito embora uma recomendação para publicação de uma tese, ao final do longo processo de avaliação num doutorado, represente quase que invariavelmente o reconhecimento da qualidade do trabalho apresentado à universidade, essa pode ser uma sutil armadilha, pois ‘vir a público‘ no interior dos muros dos centros de pesquisa em quase nada se assemelha ao ‘vir a público‘ no mundo todo lá fora. São poucos os pesquisadores a se dar conta desse ardil e que, ao fazê-lo, ainda se decidam por prosseguir, superando o engano da sensação de acabamento do trabalho e se colocando novamente a caminho, uma vez mais no labor de uma escrita outra, muito diversa, sobre o mesmo tema, aquele tão seu conhecido.
Tal é o caso aqui. O livro de Junia Mortimer, cujo argumento já havia se apresentado como um trabalho consistente de pesquisa no campo da teoria da arquitetura, estabelece um novo patamar de análise. O seu Arquiteturas do olhar: imaginários fotográficos do espaço construído oferece, resolutamente, uma contribuição que não é apenas comentário ao repertório dos campos e disciplinas aos quais pertence, mas, principalmente, crítica.
“Fazer a tese virar o livro” não é tarefa nem simples, nem automática. Antes, implica o encontro de uma nova forma para a exposição dos conceitos, e pressupõe aplicar à própria argumentação uma crítica aguda. Raros são os autores que se permitem deixar avistar na forma-livro aquilo que à forma-tese era quase um veto: as incertezas da conclusão, as portas fechadas à deriva dos argumentos, e, sobretudo, as aberturas – mesmo que tardias – ao mundo que se apresenta no horizonte das pesquisas “de e para depois da tese”, todas elas – as aberturas – perguntas que são tentativas. Quem leva a cabo essa tarefa de escrever criticando a si mesmo entrega às livrarias e às telas dos dispositivos um trabalho indubitavelmente público, pronto para o debate que suscitará.
É verdade que alguns pequenos costumes acadêmicos persistem na apresentação do texto sem, contudo, serem nocivos. Ali há o velho hábito de dizer que o que se escreve é “resultado das pesquisas desenvolvidas ao longo” de um curso de doutorado, quando não são, evidentemente, apenas resultado de dois pares de anos debruçados sobres os livros, mas sim a linha de chegada de um longo trajeto de questionamentos persistentes que apenas tem, no doutorado, sua primeira chance de conclusão. Há também a inescapável apresentação do argumento na forma de uma questão-síntese que só denota a retomada, ao fim do trabalho, dos propósitos iniciais de um projeto de pesquisa (“em que medida e de quais maneiras…”), estratégia textual estéril num livro, pois o que conduz o leitor no mergulho da leitura, ao contrário da aferição ou comprovação de uma tese, é só e sempre curiosidade aguçada, quaisquer que sejam os temas.
O livro, amadurecido, propõe em sete pequenos capítulos uma hipótese audaciosa para os dias de hoje, qual seja, pensar a imagem fotográfica como um modo de des-ver, como potência de estranhamento que desestabiliza, move e re-territorializa cada experiência espacial sobre a qual a fotografia incida como ato, não somente como dispositivo. O que, se levado a cabo de modo radical, é um aprendizado para experimentar o espaço.
Esse argumento será desenvolvido em quatro partes, das quais ressaltam a introdução, em que se apresenta de modo assertivo e consistente o percurso conceitual da autora e os pensadores com quem dialoga, e o caderno de imagens, que funciona como segundo texto, cuja escrita visual quase o leva ser interpretado de modo autônomo, mais do que como coleção de ilustrações.
Mortimer sustenta uma construção teórica própria ao longo de todo o livro, sem nunca perder de vista o alvo: a partir da discussão de um determinado conjunto de aspectos dos processos artísticos fotográficos em sua relação com a arquitetura, estabelecer um âmbito de reflexão no qual a prática fotográfica contemporânea faça emergir modos transformados de apreender, imaginar e produzir o espaço construído.
Os capítulos são agrupados em duas partes, segundo um arranjo textual complexo que podemos chamar de geométrico: apresentam-se as noções de campo, zona de adensamento, aglomeração. Estabelecem-se para esses, no que a autora chama “uma manobra conceitual e analítica”, princípios tensionadores (o olhar, o corpo-objeto, o espaço) e suas sintaxes específicas. Deve-se dizer que, mesmo que exija ao leitor uma interpretação ainda mais atenta, essa inegável vontade de sistema em nada prejudica a compreensão do argumento, bem ao contrário.
O texto transparece, por vezes, estar ancorado pelas proposições de Mitchell Schwarzer (Zoomscape, 2004) e Anthony Vidler (Architectural Uncanny, 1991; e Staging Lived Space, 2001) em suas teorias sobre a arquitetura urbana contemporânea. Encontra-se nos dois pensadores a articulação que é cara à autora, entre imagem, corpo e espaço, pois que ambos perfazem “um trânsito crítico entre fundamentos da teoria da arquitetura, teoria da fotografia e teoria da arte… tendo suspensas, ainda que temporariamente as fronteiras entre esses mesmos campos” (p. 21).
Mas, para além dessa referenciação, a investigação não se furta ao esforço filosófico do conceito da fotografia, com referências cruciais, que vão de Walter Benjamin a Roland Barthes, de Merleau-Ponty a Jacques Lacan, e, mais recentemente, a Rosalind Krauss ou Boris Kossoy. Dessas filosofias, Mortimer extrai não uma ontologia da fotografia, mas a radiografia de transformação no campo de conhecimento que tem a imagem por objeto. Transformação essa que, a concordar com a exposição da autora, resulta em modos de ação provocados pela fotografia quando confrontada com o campo arquitetural, o que nos leva a esperar, do texto, seu término – por assim dizer – lógico.
Trata-se, conclusivamente, e não sem a coragem exigida pelo presente estágio da sociedade urbana e espetacular, de reivindicar por meio da fotografia a imagem como lugar de resistência ao apassivamento e ao achatamento da experiência. O que não é, nem de longe, um esforço teórico menor no campo da arquitetura: implica defender que, para a experiência do ambiente construído, a imagem ainda pode ser convocada como fator de mobilização do corpo para o movimento (não apenas do olhar), como instância de reconhecimento da materialidade dos lugares e objetos (não apenas do deslizamento abstrato pelas telas, mas em seus fluxos e tráfegos reais), e como lugar de estranhamento do familiar (aquilo que escapa ao condicionamento aprisionado do hábito).
Quase ao modo de um manifesto, Mortimer reivindica que determinadas práticas contemporâneas de natureza fotográfica informam a prática da construção dos espaços, por meio do que denomina seu campo em expansão – a construção fotográfica do ambiente construído – no qual se realiza, pelas novas relações estabelecidas entre o corpo e o espaço, uma potência de reconfiguração - afinal, um modo de reaprender a ver a que se poderia denominar des-ver: uma possibilidade de emersão, na superfície da imagem, de novas formas de apreender e imaginar os espaços para a vida.
sobre a autora
Rita Velloso é arquiteta e urbanista (UFMG, 1989), doutora em filosofia (UFMG, 2007), com estágio doutoral na McGill University (Montréal, 2005). Pesquisa as relações entre estética, política e cidade, estudando Walter Benjamin, Henri Lefebvre e Guy Debord. É professora adjunta na escola de arquitetura da UFMG, onde coordena o grupo de pesquisa Cosmópolis.