Seguindo o caminho inesgotável das interelações entre a arquitetura construída em solo brasileiro, no período colonial, e sua gênese além-mar, Sousa nos propõe uma reflexão fértil acerca da composição de 200 frontarias de igrejas, situadas geograficamente no Nordeste e Sudeste brasileiro, com alguns exemplares pontuais do Centro-Oeste. Sua tese assenta-se na difusão de um modelo paradigmático do Renascimento italiano, um desenho do arquiteto Cesare Cesariano para a primeira edição do Tratado de Vitruvio em italiano, no ano de 1521, que, segundo atesta Sousa, teria sido a fonte inspiradora da fachada da ermida de Nossa Senhora da Conceição, em Tomar, Portugal, projetada pelo arquiteto João de Castilho e reconhecida como monumento nacional e como um dos melhores exemplos de arquitetura renascentista em terras lusas.
Apesar de ter-se estudado o papel da Tratadística nas construções coloniais e imperiais brasileiras, ainda há muito o que compreender em termos de como estas fórmulas eruditas foram sendo adaptadas e reformuladas pelos construtores locais.
A contribuição deste ensaio, construído em cinco capítulos, assenta-se na demonstração de que grande parte dos templos católicos edificados em capitais e cidades menores do Brasil colônia derivam sua frontaria de um processo adaptativo do ‘modelo tomarense’. Dialogando com clássicos como Germain Bazin e Nestor Goulart, Sousa afirma sua tese apoiado em farta análise de exemplares, agregando desenhos de época, que servem para a análise criptohistórica da arquitetura (1) – uma vez que se referem a edifícios demolidos ou modificados –, fotografias atuais e desenhos elaborados pelo autor.
Percebe-se, ao longo de suas argumentações, a articulação de aspectos formais com motivos funcionais (a presença de coro alto nas igrejas brasileiras e a necessidade de melhor iluminação dos interiores), interesses dos encomendantes (irmandades, como a da Misericórdia, do Rosário, bem como a mudança no gosto que gerou alterações na forma e ondulação dos frontões e das vergas das aberturas. A fenestração em cruz, como denomina a fórmula mãe que preside a todos os exemplares estudados, caracteriza as frontarias derivadas da capela tomarense, além da ausência de pilastras e outras linhas que dividam em panos as fachadas estudadas. Esta composição singela e racional, característica do que se denominou em Portugal o ‘estilo chão’, não foi em terras brasileiras apenas uma moda passageira, e sim um esquema perene e intuitivamente adaptado a dimensões e locais distintos.
Sousa situa as primeiras expressões do modelo de Tomar nas igrejas construídas nos séculos 16 e 17, que se caracterizam por “fachada com fenestração em cruz e composta de duas partes, das quais a superior era um frontão com óculo e a inferior estava limitada por pilastras de canto, possuía uma porta central e duas janelas verticais e era desprovida de faixas divisórias horizontais ou verticais, como pilastras ou cimalhas intermediárias” (p. 63).
Detecta ainda a persistência desse modelo, apesar dos acréscimos ao gosto barroco, em igrejas do século 18, sendo distinguidas duas variantes neste século: a variante 1 apresenta frontão curvado e janelas com verga em arco abatido, sendo a variante 2 caracterizada, além dos elementos anteriores, pela presença de entablamento encurvado, o qual, quando desenha a curva para cima é denominado entablamento sírio, pois derivou de influências orientais na época helenística.
Deste modo, o ensaio de Alberto Sousa apresenta como virtudes a fluidez do texto, e a citação profícua de fontes, sem pedantismo, estilo próprio a um estudioso de longo caminho acadêmico, e acostumado a descobertas polêmicas como a do classicismo à brasileira, termo com que denominou a versão do classicismo imperial brasileiro adotado em Portugal na segunda metade do século 19. Este tema foi por nós adotado e aprofundado na pesquisa “Classicismo nos hospitais da Misericórdia e da Beneficência na 2ª metade do século 19: trânsito entre Brasil e Portugal” (2) e nos estudos de pós-doutoramento junto ao Artis da Universidade de Lisboa, acerca das Arquiteturas da saúde na 2ª metade do século 19 e as repercussões do classicismo no Norte do Brasil e de Portugal (3).
Ademais, para melhor compreensão das análises, a ampla amostra de frontarias selecionadas pelo autor – que este acompanha por descrições sucintas – se beneficiaria de esquemas gráficos que identificassem os elementos-chave do modelo tomarense, bem como suas variações (como a inserção da terceira janela), além de um quadro comparativo entre as variantes classificadas pelo autor.
Ao final do volume, as considerações finais registram que o autor não identificou edifícios religiosos que pudessem se filiar ao modelo tomarense nos estados do Amazonas, Pará e Rio Grande do Sul, pelo menos no recorte temporal em questão. Tal observação nos serve de alerta para a lacuna existente no estudo mais acurado da arquitetura religiosa em território paraense. Partindo de uma análise preliminar dos templos de Belém, erigidos no período colonial, nota-se a composição de fachadas que adotam modelos e esquemas bastante complexos, com divisões em panos, presença de elementos eruditos do repertório clássico, torres de formatos diversos, e múltiplas aberturas, ritmadas.
Ademais, urge avançar para o reconhecimento da vasta produção de arquiteturas espalhadas pelas regiões do Estado – Salgado, Baixo Tocantins, Marajó, Tapajós, dentre outras, que expressam os ideais e preceitos das várias ordens e irmandades religiosas que contribuíram para nossa formação, bem como identificar quais as estruturas formais adotadas, e resinificadas pelas populações locais, numa mistura profusa e rica que propicia a compreensão de nossa identidade cultural. O livro de Alberto Sousa surge como uma inspiração para estas e outras investigações no âmbito da História da Arquitetura brasileira.
notas
1
SERRÃO, Vítor. A cripto-história da arte – análise de obras de arte inexistentes. Lisboa, Livros Horizonte, 2001.
2
MIRANDA, Cybelle Salvador; GRILO, Fernando Jorge Artur; PINHO, Joana Balsa de. Classicismo nos hospitais da misericórdia e da beneficência na segunda metade do século XIX: trânsito entre Brasil e Portugal. Artis On, v. 1, 2015, p. 231-237.
3
MIRANDA, Cybelle Salvador; GRILO, Fernando Jorge Artur. Arquiteturas da saúde na segunda metade do século XIX e os modelos de ensino nas academias portuguesas. Anais do Museu Paulista, v. 24, 2016, p. 77-113.
sobre a autora
Cybelle S. Miranda é arquiteta e urbanista pela UFPA (1997), doutora em Antropologia pela UFPA (2006) com pós-doutorado em História da Arte Universidade de Lisboa (2015). Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPA, onde coordena o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO).