“Desde que eu era garoto, soube que no paraíso não havia memória. Adão e Eva não tinham passado. Pode-se viver cada dia como se fosse o primeiro?” (1)
Eduardo Galeano, Dias e Noites de Amor e Guerra
Memória Moderna de São Paulo – Corredor das Humanas, publicado em outubro de 2017, é mais um trabalho raro produzido pelo grupo Contravento, que contextualiza a história dos projetos do corredor de humanas da USP dos início dos anos sessenta. Trata-se de uma pesquisa historiográfica na qual foram compilados significativos projetos de personagens importantes da arquitetura brasileira. O Plano original para o Corredor de Humanas da Universidade de São Paulo era composto pelos edifícios da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, de Vilanova Artigas e de História e Geografia, de Eduardo Corona; e eram complementados pelas edificações das faculdades de Letras, de Carlos Milan; Filosofia, de Paulo Mendes da Rocha; Geologia, de Pedro Paulo de Melo Saraiva e Matemática, de Joaquim Guedes.
Os ricos jogos de desenhos são antecedidos pelo texto do professor da Universidade de São Paulo, Alexandre Delijaicov e duas entrevistas, de Pedro Paulo de Melo Saraiva e Paulo Mendes da Rocha, que nos auxiliam e contextualizam sobre o processo e a época. A contextualização do processo, escolha dos arquitetos e como o campo de estudo foi ampliado até a elaboração da revisão do Plano da Cidade Universitária são aspectos abordados nas entrevistas, em especial o precioso depoimento de Melo Saraiva, que nos descreve uma série de passagens sobre o turbulento contexto, até detalhes conceptivos da sua proposta para a Faculdade de Geologia. A publicação nos proporciona várias perspectivas de apreciação, como a resenha de Pedro Augusto Vieira Santos nos mostrou (2). Dando continuidade, mais dois caminhos possíveis – e complementares – de reflexão.
A primeira, uma analogia de imediato se apresenta com o cenário de profunda crise ética, política e democrática instaurada no Brasil e na América Latina. Quase simultaneamente ao lançamento do livro que resgata os projetos para o Corredor de Humanas da USP, assistimos no fim do ano ao sancionamento da Lei nº 13.530, de 7 de dezembro de 2017 (3), em que o Fundo de Financiamento Estudantil – FIES fica sujeito ao controle financeiro da iniciativa privada, agora responsável pela inadimplência, sob a alegação de insustentabilidade financeira. A inadimplência é uma mensagem, interpretada apenas pelo olhar econômico, estancando novamente a pauta educacional tratada como uma engrenagem financeira. Além de agravar a submissão de famílias que vêm sendo saqueadas com justificativas esdrúxulas, promove a fragilização e a perda de autonomia do Estado, como centro de decisão das políticas públicas. As subsequentes investidas, das mais variadas formas e áreas, vêm corroborando com o desmantelamento das Universidades, através de cortes de gastos, conduções coercitivas de reitores, exploradas pela mídia, produzindo um Estado inábil e incapaz de gerir suas instituições públicas, “encorpando” o coro de Estado mínimo.
A outra leitura é a análise e estudo de projeto arquitetônico em sua potencialidade (4). Tendo em vista o cuidadoso trabalho de redesenho, modelagem, diagramação dos projetos em uma escala adequada das seis propostas, a publicação se torna uma fonte fértil de aprendizagem. Ainda que duas das edificações tenham se concretizado, “interrompeu-se, sobretudo, a ideia de conjunto” (5) e aí nos evoca a leitura de aglutinação e diálogo entre as edificações, possível por meio da recuperação dessas memórias projetuais. A nebulosa lacuna do processo projetual entre discurso/memória e desenho/projeto, e suas relações retóricas, é atenuada pelos textos que nos convidam a um estudo de identificação dessas relações, além de nos remeter uma análise projetual de personagens significativos da nossa historiografia, evidenciando a ideia de resistência de uma formação generalista que bebe em diversas fontes para uma elaboração de uma arquitetura comum e oportuna, pautada por memória historiográfica.
E por fim, laceando com a epígrafe do escritor uruguaio, aparentemente sim, a sociedade parece viver nesse paraíso sem memórias, um mundo de amnésias.
Assim, a sociedade de hoje repete erros do passado e trilha caminhos opostos aos desígnios que produziram esse conjunto, pautados por um plano pedagógico comum que vislumbrava uma visão com discurso e objetivos claros, traduzida em projeto. É justamente nesse paralelo que Memória Moderna de São Paulo – Corredor das Humanas se apresenta como resistência de uma memória que perdura carregada de ideais (ou princípios).
notas
1
GALEANO, Eduardo. Dias e noites de amor e guerra. São Paulo, L&PM Editores, 2016.
2
SANTOS, Pedro Augusto Vieira. São Paulo: impressões da memória. Resenhas Online, São Paulo, ano 17, n. 191.02, Vitruvius, nov. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.191/6780>.
3
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 13.530. Brasília, Casa Civil/Subchefia para Assuntos Jurídicos, 7 dez. 2017 <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13530.htm>.
4
Arquitetura potencial é o termo empregado por Adamczyk, Chupin, Bilodeau e Cormier em Reflective knowledge and potential architecture (2004), para ressaltar as possibilidades de estudo de projeto em um campo virtual. ADAMCZYK, Georges; CHUPIN, Jean-Pierre; BILODEAU, Denis; Cormier, Anne. Architectural competitions and new reflexive practices. 2004 <www.leap.umontreal.ca/pdf/adamczyk/2004_ ADAMCZYK_architectural.PDF>.
5
Mendes da Rocha em sua entrevista no livro sobre a interrupção do processo e o discurso de liberdade que pautava o Corredor.
sobre o autor
Paulo Victor Borges Ribeiro é arquiteto e urbanista (UniCeub) e doutorando em teoria história e crítica (UnB). Arquiteto do escritório MGS (Macedo Gomes Sobreira) e professor da Universidade Paulista, Brasília.