Freespace representa a generosidade e o senso de humanidade que a arquitetura coloca no centro de sua agenda, focalizando a atenção na qualidade do espaço.
Freespace se concentra na capacidade da arquitetura de doar novos espaços livres para aqueles que a utilizam, bem como sua capacidade de satisfazer desejos não expressos.
Freespace celebra a capacidade da arquitetura de encontrar em cada projeto uma generosidade nova e inesperada, mesmo nas condições mais privadas, defensivas, exclusivas ou comercialmente limitadas [...].
Convidamos todos os participantes a trazer o seu espaço livre para Veneza, para que juntos possamos revelar a diversidade, a especificidade e a continuidade da arquitetura, de acordo com as pessoas, os lugares, o tempo e a história, para promover a cultura e a importância da arquitetura neste dinâmico planeta.
“Uma sociedade cresce e progride quando os velhos plantam árvores sabendo que eles nunca conseguirão se sentar à sua sombra”. Provérbio grego.
[Yvonne Farrell e Shelley McNamara, trecho inicial e final do Manifesto Freespace, distribuído aos participantes da Bienal de Arquitetura 2018 em junho 201]
A primeira impressão é a de estar em presença de uma proposta/manifesto séria e corajosa, que as duas curadoras irlandesas levaram à frente com coerência, honestidade e grande empenho; que a este empenho correspondeu um compromisso fora do comum por parte dos arquitetos e ateliês convidados e dos curadores das participações nacionais – a começar pelo Brasil, pela China e pela própria Itália – e que o mesmo empenho de atenção e de reflexão está sendo solicitado ao público e aos visitantes.
É a primeira impressão, repito, porque quem escreve essas notas é uma historiadora da arte que lida mais com as imagens e seus significados do que com projetos. E também porque foi fisicamente impossível estudar/avaliar em dois dias de vernissage – entre Arsenale e Giardini e outros lugares da cidade – as cem respostas oferecidas pelos arquitetos e ateliês de arquitetura convidados a responder às questões colocadas pelas duas curadoras irlandesas, além das contribuições dos 63 pavilhões nacionais.
Mas a tentação é declarar desde já: “missão cumprida”.
Inúmeros os assuntos para pensar, comparar, imaginar mudanças de enfoques e de rumos, refletir sobre o fim das utopias e seu possível resgate.
Nos Giardini à provocação sutil de Eurotropie – no espaço vazio do pavilhão da Bélgica, atapetado de azul-europa, os visitantes entram sem sapatos e podem fazer o que bem quiserem – corresponde a de Island, encomendada pelo British Council, onde o pavilhão da Grã-Bretanha se apresenta em obras, encoberto por andaimes que sustentam uma plataforma/terraço com vista; o interior é vazio.
No Arsenale, a história sombria da demolição do conjunto habitacional Robin Hood Gardens no East London, contada nas Salas de Armas pelo Victoria & Albert Museum – que trouxe para Veneza um fragmento do próprio edifício (com direito a comentários irônicos da imprensa britânica) e encomendou ao artista coreano Do-Ho Su um filme (imperdível) sobre seus interiores – pode ser comparada com a de outro notório conjunto habitacional dos anos 1970, o infame Corviale de Roma, que Laura Perretti, num projeto apresentado no espaço Corderie e definido “heroico” pelas curadoras, procura recuperar trabalhando sobre os freespaces comuns.
Muitas são as descobertas de nomes desconhecidos do grande publico, como os VTN Architects (República Socialista do Vietnã), com sua imensa e acolhedora Bamboo Stalactite – “a bamboo é o aço verde do século 21” – colocada ao lado do guindaste histórico do Arsenale; ou o Amateur Architecture Studio (República Popular da China), que procura recuperar harmonias perdidas em vilarejos devastados pela modernização, legitimando e legalizando através do design a ocupação informal dos espaços públicos pelos locatários pobres.
Biennale Architettura 2018 – Amateur Architecture Studio
Poucas as instalações sensacionais (entre as mais sedutoras estão Vertigo Horizontal no pavilhão da Argentina, homenagem ao Pampa sem fim, e Sunyata da Indonésia, onde longas faixas de papel branco convidam a curtir o vazio e o silêncio.
Ausência de auto celebrações por parte de archistars e curadores:
O convite a Mario Botta, um tributo ao papel desempenhado na formação das curadoras, é ponto de partida para uma instalação que apresenta experiência didática na Academia de Mendrisio (coisa parecida e mais singela faz Aurelio Galfetti ao trazer a filmagem de uma palestra para estudantes e colegas);
David Chipperfield reflete sobre os valores do espaço civico na Ilha dos Museus em Berlim (enquanto a associação Italia Nostra aguarda com anxiedade a restauração das Procuratie Vecchie em piazza San Marco, confiada a ele pela poderosa companhia de seguro dona do imovel);
Cino Zucchi investiga o trabalho de Luigi Caccia Dominioni, extraordinário arquiteto e designer milanês falecido em 2016 com quase 103 anos (objeto de muitas comemorações recentes, mas esquecido nos últimos anos de sua vida).
Os dezessete projetos apresentados no pavilhão brasileiro são o resultado de uma chamada pública e a construção do livro Muros de ar envolveu mais de duzentos colaboradores.
No Arcipelago Italia o curador Mario Cucinella e seu staff desviam a atenção das grandes obras urbanas convidando-nos a redescobrir, região após região, num itinerário oferecido ao visitante como as páginas de um grande livro aberto, os tesouros desconhecidos da pequenas cidades e das aldeias do interior.
Os curadores do pavilhão da China, em Building a future countryside, indagam as oportunidades que as “novas fronteiras rurais” oferecem aos arquitetos, aos artistas e aos investidores.
No fim da minha curta visita, após idas e vindas em vaporetti superlotados conduzidos com mão firme por moças de luvas, caminhadas entre Arsenale e Giardini, além de uma memorável romaria na ilha de San Giorgio Maggiore para a inauguração das Vatican Chapels, só de uma coisa eu tinha certeza: o verdadeiro freespace de todos nós, apesar dos enormes problemas cotidianamente enfrentados, continua sendo o da própria Veneza.
Espaço para ser acolhido e conviver em paz com multidões (de arquitetos e não) e espaço para se entregar à contemplação e reflexão solitária.
Como bem entenderam – além de Yvonne Farrell e Shelley McNamara, que recebem o visitante no Arsenal através una cortina de cordas, tributo emocional às antigas manufaturas – duas surpreendentes jovens mulheres por elas convidadas:
Fiquei horas nas duas instalações, sem arrependimentos.
sobre a autora
Giovanna Rosso del Brenna, italiana, é historiadora da arte. É docente da Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, desde 2001, e da Università degli Studi di Genova, desde 2000. Foi Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) entre 1978 e 1990.