Foi lançado em fevereiro de 2018 o segundo volume da coleção Canteiro Aberto do Instituto Pedra em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo: Vila Itororó: uma história em três atos (1), das urbanistas e pesquisadoras de história da cidade de São Paulo, Sarah Feldman e Ana Castro. A publicação resgata a história da emblemática Vila paulistana, localizada na área central da cidade, entre os bairros da Liberdade e Bela Vista.
Por incorporar em sua construção materiais de demolição de um antigo teatro da cidade, o São José, e outras implantações inéditas e singulares para uma habitação do início do século 20 – como piscina, chafariz, bustos e esculturas –, a Vila Itororó acabou chamando atenção de muitas gerações de urbanistas e pesquisadores do patrimônio histórico a partir dos anos 70 do século passado. Tornou-se de fato parte do debate das transformações dos critérios dos bens a serem qualificados como relevantes à memória da cidade de São Paulo.
Considerada de arquitetura exuberante, surreal, o imóvel localizado numa encosta do Vale do rio Itororó (atual avenida 23 de maio), acabou sendo foco de disputas e discussões sobre suas possíveis ocupações a partir do momento em que passou a ser protegido pelos orgãos de patrimônio histórico. Nomes como Benedito Lima de Toledo, Carlos Lemos, Claudio Tozzi, Décio Tozzi e Flávio Império fizeram parte destas primeiras discussões e formulações de projetos de novas qualificações que por anos nunca saíram do papel.
Eu mesma fui vítima do encantamento da Vila Itororó. Nos anos 1990, quando era pesquisadora do Departamento de Patrimônio Histórico, fizemos uma vistoria nas construções. Recordo a forte impressão que me causou entrar naquele casarão decadente que tinha logo a entrada dois leões, esculturas, varandas, longas escadas, pilares e uma piscina coberta ao fundo. Era difícil definir visualmente o que havia sido aquele conjunto de casas. Lembro de ter conhecido uma senhora muito pintada que diziam ser uma antiga atriz. Fui embora com aquela imagem dos leões da entrada, dos pilares e da velhinha com ruge nas bochechas, moradora solitária de um cômodo do antigo palacete.
Lendo o livro sobre a Vila Itororó de Sarah Feldman e Ana de Castro, as formas arquitetônicas que por tantas décadas ocuparam o imaginário da Vila, saem do centro das atenções. Outras histórias revelam-se através de documentos públicos, recortes de jornal, depoimentos e fotografias que multiplicam a vida da casa colocando-a em diálogo com a história da construção e das formas de morar na cidade de São Paulo, especialmente na área central.
Somos convidados desde o primeiro ato a entrar em contato com a vida de Francisco de Castro, o primeiro proprietário e idealizador da Vila. Um filho de imigrantes portugueses, que como tantos outros estrangeiros, contribuíram para a formação da cidade de São Paulo. Acompanhamos a maneira como este investidor anônimo, integrava-se ao comércio da terras urbanas no início do século 20, momento em que a cidade transformava-se a olhos vistos.
A pesquisa tem o mérito de partir de um pequeno registro, o recorte de uma habitação central, para potencializar redes de conexões com o tecido urbano que ampliam os horizontes das relações e conexões destes possíveis franciscos de castro em diálogo com escritórios renomados como o de Ramos de Azevedo e as definições dos melhoramentos urbanos para a nascente capital do café. Percebemos neste cruzamento de diálogos, que a cidade não se expandia apenas pelas mãos de grandes loteadores, o solo urbana era negócio para todos, e estas transações que envolviam compra de áreas, construções de casas para a venda e aluguel abarcavam vários extratos sociais.
Percorrendo a história da área central através da história da Vila Itororó, temos de fato um recorte urbano de São Paulo. Revelam-se personagens que passam a ter corpo, nome próprio, relações de amizade e parentesco. Projetos, desejos, sonhos e histórias que apontam conteúdos inéditos da formação social urbana. Tudo que se fala da Vila , não constitui-se como fato isolado do que a integra na cidade.
No segundo ato do livro entramos no universo mais íntimo da casa, dos moradores que habitaram a Vila Itororó. Num terreno de quase 6.000 metros quadrados, Francisco de Castro não construiu apenas seu sonho de morar, mas também um conjunto de casas de aluguel que lhe garantiriam um renda fixa. Algo extremamente comum à época, esta mistura de usos que poderiam muitas vezes ser compartilhados num mesmo lote, resultando em um dos investimentos mais seguros naquele momento. Como afirmam as autoras, 80% das famílias moravam em casas de aluguel em São Paulo nas primeiras décadas do 1900.
Francisco de Castro vem a falecer nos anos de 1930, repleto de dívidas e sem ver vários dos seus sonhos realizados. Os projetos urbanos que atravessariam sua propriedade, como a avenida Itororó (atual avenida 23 de maio), acabaram acontecendo décadas depois de sua morte, nos anos de 1960.
Nos anos de 1930, a Vila Itororó passa a ter novos proprietários, mas permanece como local de moradia de famílias que se caracterizavam por proximidades de parentesco e amizade. O palacete, morada de seu idealizador, neste segundo momento é dividido e ocupado para aluguel. A geografia da casa grande com a ocupação rentista, não deixa de refletir as hierarquias sociais do espaço urbano. Os mais abastados passam a morar nas áreas de acesso independente e próxima da rua. Os de menos posses, ocupam áreas da casa mais distantes da rua e com acessos compartilhados.
Porém, destacam as autoras, a sociabilidade dos moradores da Vila se mantém ao longo de sua existência como residência. Áreas comuns do terreno que incluíam a piscina e o pátio, entre o palacete e as casinhas de aluguel, revelam-se nas memórias dos antigos moradores como um rico espaço de convivência. Alguns lembram de um abacateiro, outros das festas e do clube Eden que incluía a piscina.
Outro aspecto fundamental que destaco neste segundo ato, refere-se a localização estratégica da Vila, entre o centro da cidade e a avenida Paulista. Como habitar entre espaços centrais da cidade, com instituições culturais e educacionais potentes propiciou aos moradores da Vila condições de acesso à cultura e educação que caracterizam de forma singular a vida na área central da cidade.
Eis ai nos registros da história da cidade de São Paulo, um capítulo que precisa ser iluminado, batido e rebatido: a ótima coexistência entre habitação popular, cultura e serviços em regiões centrais.
O terceiro ato talvez seja o momento que nos deixe mais pessimista em relação aos destinos da Vila e de seus morados. A partir dos anos de 1960, a presença da avenida 23 de maio, projeto tão esperado por seu primeiro proprietário, tornou-se o início de um pesadelo para seus moradores. A área se valoriza muito e o imóvel a partir de então passa a fazer parte das várias disputas imobiliárias que ocorrem até hoje na área central da cidade. Nestes embates, inúmeros são seus projetos de usos, desde a defesa legítima da permanência dos moradores, até aqueles que indicam, pelas características arquitetônicas do imóvel, um futuro centro cultural.
O livro se encerra em 2013, momento em que o Instituto Pedra assumiu o restauro e a coordenação das atividades sobre o imóvel. Num galpão adquirido na fase atual, criou-se um centro cultural temporário ao lado da Vila Itororó. Todas as atividades de reflexão e oficinas acontecem neste novo endereço cujo acesso se faz pela rua Pedroso, 238.
Como parte do processo de reflexão e investigação empreendido sobre a Vila Itororó desde 2013, esta publicação abre-se para os futuros possíveis do imóvel. O que só vem a reforçar a potencia de materiais presentes no canteiro aberto pelo Instituto Pedra. O passado é material frágil e de fino trato, capaz de levantar questões e conteúdos importantes na reconstrução da Vila Itororó. Vou mais longe, a história ao ser incluída no presente, é capaz de sugerir novas formas de habitar a cidade.
O livro oferece muito mais histórias sobre a Vila Itororó. É uma pesquisa cuidadosa e bem escrita. Para aqueles que gostam desta emblemática Paulicéia, é leitura obrigatória.
notas
NA – os leitores interessados em ter mais informações sobre a Vila Itororó – mais informações, horários de visita etc. – podem acessar os seguintes links e telefone: Canteiro Aberto da Vila Itororó <http://vilaitororo.org.br>; Página da Vila Itororó no Facebook: <https://pt-br.facebook.com/vilaitororo>; telefone da Secretaria Municipal da Cultura na Vila Itororó: (11) 3253.0187.
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O livro Vila Itororó: uma história em três atos pode ser adquirido na versão física e gratuita no próprio “Canteiro Aberto da Vila Itororó” ou ser consultado na versão digital em pdf: <http://vilaitororo.org.br/wp-content/uploads/2018/03/Vila-Itoror%C3%B3-Uma-Hist%C3%B3ria-em-Tr%C3%AAs-Atos.pdf>.
sobre a autora
Paula Janovitch é antropóloga e doutora em história. Pesquisadora de história da cidade de São Paulo. Edita o blog Versão Paulo e integra o Coletivo Pisa: pesquisa + cidade, onde desenvolve percursos urbanos em São Paulo.