Belezas são coisas acesas por dentro. Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento.
Jorge Mautner, Lágrimas negras
Na filosofia do sempre antenado Jorge Mautner, a beleza surge em comparação com a antípoda que a contém – a tristeza. No trabalho com Patrimônio Histórico, conhecemos, no abandono de partes de alguns sítios históricos, ou da totalidade deles, as tristezas de que fala Mautner... “belezas apagadas pelo sofrimento.” Há que se assumir que o abandono revela as belezas de outrora. Na área do patrimônio histórico, porém, muito frequentemente essas belezas são encontradas em estado de decadência. Paradoxalmente, foi este mesmo estado que as conservou no tempo, pelo que, foram posteriormente reconhecidas como bens e sítios patrimoniais.
Foi justamente pensando em agregar conhecimento para a conservação da beleza dos cinco sítios históricos do Espírito Santo e dos seus bens patrimoniais isolados, que desejamos resenhar este livro de Roger Scruton.
O britânico Roger Scruton é filósofo, jornalista, professor, escritor e compositor, e autor de mais de trinta livros (1). Em Beleza, numa linguagem bastante acessível a leigos, Scruton revela meandros para compreensão do belo, e demonstra que a beleza pode, sim, pontuar nosso cotidiano. Exemplares disso são os excertos do livro (2) que destacaremos de agora em diante.
Logo de partida, Scruton nos dá a entender que sua ideia de belo na arquitetura recai sobre o conjunto, e não sobre a obra monumental, espetacular, ou de exceção. Em suas palavras:
“Na estética da arquitectura, as belezas arrebatadoras são menos importantes do que as coisas que não destoam, criando um contexto suave e harmonioso, uma narrativa ininterrupta numa rua ou numa praça, nas quais nada se destaca em particular e onde as boas maneiras prevalecem” (nota i, p. 24).
Ao usar o termo “narrativa”, o escritor britânico deixa entrever uma compreensão da arquitetura muito próxima da literatura. Trata-se de um entendimento que tem um longo caminho na história da arquitetura e da literatura. Basta lembrar que o escritor francês Victor Hugo (1802-1885), chegou a chamar obras arquitetônicas de “livros de pedra”. Partilhamos desta concepção por entendermos que há uma série de pontos de afinidade entre arquitetura e literatura. Scruton, contudo, leva a compreensão dessas afinidades também para o planejamento urbano. É o que se pode constatar da passagem abaixo:
“De facto, demasiada atenção à beleza pode destruir o próprio objecto em que ela está presente. Por exemplo, no caso do planeamento urbano, o objectivo é, à partida, que o objecto não destoe e não fazê-lo sobressair. Se queremos que sobressaia, o objecto tem de ser merecedor da atenção que reclama, como no caso da igreja de Longhena (3). Isso não significa que a rua humilde e harmoniosa não seja bela. Pelo contrário, o que sugere é que a sua beleza pode ser melhor compreendida se for descrita com outra carga, menos pesada, como algo equilibrado e harmonioso. Se aspirássemos sempre ao tipo de beleza suprema exemplificada pela Basílica de Santa Maria della Salute, acabaríamos por ter uma sobrecarga estética. A estridência das obras-primas, umas ao lado das outras, lutando entre si para receberem atenção, faria com que elas perdessem os seus traços distintivos e a beleza de cada uma estaria em guerra constante com a das restantes” (nota i, p. 25).
Prosseguindo em suas reflexões no campo arquitetônico, Scruton contempla a abordagem da arquitetura relativamente à ideia de utilidade. O autor relembra que no século XVIII surge uma importante distinção entre as belas-artes e as artes úteis. As úteis, como a arquitetura, a tapeçaria e a carpintaria têm uma função que pode ser testada quanto ao seu desempenho, contudo, contesta Scruton, a percepção da beleza independe da utilidade.
“Quando uma coisa se dá à nossa percepção, e o nosso interesse é captado inteiramente por ela, começamos a falar da sua beleza, independentemente de nela vislumbrarmos qualquer utilidade. [...]
Quando nos referimos à arquitectura como uma arte útil, enfatizamos um outro aspecto dela – aquele que está para lá da utilidade. Estamos a querer dizer que uma obra de arquitectura pode ser apreciada não apenas como um meio para atingir determinado fim, como também sendo um fim em si mesmo, algo com significado intrínseco” (p. 28).
Além disso, a ideia de função como critério para apreciar a arquitetura não passa despercebida por Scruton, que lhe apõe o seguinte argumento:
“O uso dado a belos edifícios muda e edifícios inteiramente funcionais são deitados abaixo. A Santa Sofia em Istambul foi construída para ser igreja, tendo sido transformada em quartel, em seguida em cavalariça, depois em mesquita e finalmente em museu. [...] Por outras palavras, quando levamos a beleza a sério, a função deixa de ser uma variável independente e é absorvida pelo objecto estético. Trata-se de um modo diferente de enfatizar a impossibilidade de encarar a beleza de um ponto de vista puramente instrumental. Está sempre presente a necessidade de encarar a beleza pelo que ela é, como um objectivo que qualifica e limita quaisquer outros propósitos que possamos ter” (p. 31-32).
A reflexão acima pode ser aplicada à conservação patrimonial, haja vista as adequações que frequentemente são necessárias até mesmo para que o bem patrimonial continue em uso, e, assim, conservado. Veja-se, por exemplo, na cidade de Vitória (ES), entre outros, o caso do Museu de Artes do Espírito Santo Dionísio Del Santo – MAES.
O prédio que hoje abriga o MAES foi originalmente construído no Governo de Florentino Avidos (1924-1928) para ser um edifício de repartições públicas, chamado Serviço de Melhoramentos de Vitória. Tendo desempenhado essa função original por longos anos, em tempos posteriores o imóvel acolheu, entre outras repartições públicas, o Departamento de Imprensa Oficial e a Secretaria de Administração do Estado do Espírito Santo.
Em tempos mais recentes, o imóvel foi apropriado como museu de arte e vem abrigando a contento este seu novo uso. Vale acrescentar que o prédio do atual MAES é tombado pelo Conselho Estadual de Cultura – CEC, por meio da Resolução No2/1983.
O que se defendeu acima, concordando com Scruton, é que a ressignificação de bens patrimoniais pode ser muito favorável à conservação patrimonial. Assim como aconteceu com o imóvel que atualmente sedia o MAES, na mesma cidade, Vitória, ocorreu com o prédio construído no Governo Florentino Avidos para sediar o Grupo Escolar Gomes Cardim. Esse imóvel foi posteriormente ocupado pela Faculdade de Filosofia – FAFI, e hoje sedia a Escola Técnica Municipal de Teatro, Dança e Música.
De volta ao livro, é notável que Scruton emita uma proposta para a compreensão do belo, expressa nos seguintes termos:
“Em vez de se enfatizar o carácter ‘imediato’, ‘sensório’ e ‘intuitivo’ da experiência da beleza, proponho que se considere, em alternativa, o modo pelo qual um objecto se nos apresenta nesse tipo de experiência” (p. 35, aspas do autor).
Para fruir o objeto, o autor lembra que dizemos que algo é belo quando nos comprazemos com a sua contemplação como um objeto individual, “pelo que ele é, e na forma com que se apresenta” (cursivos do autor). Para Scruton, essa compreensão se aplica mesmo a objetos como uma rua, ou uma paisagem, que não são elementos individuais, mas sim, na maioria dos casos, composições por agregados casuais.
Sempre exemplificando com o Espírito Santo, podemos nos referir a um logradouro bonito como a Rua Presidente Vargas, em Santa Leopoldina, Sítio Histórico tombado pelo Conselho Estadual de Cultura, por meio da Resolução No5/1983. A cidade, que tem sua fundação ligada à imigração europeia do final do século 19 no Espírito Santo, Santa Leopoldina conserva o seu casario do Ecletismo e se harmoniza como paisagem com o Rio Santa Maria e as montanhas que o margeiam.
As vinculações da ideia de beleza com a natureza também são refletidas por Scruton. O autor historia essas associações exemplificando que desde as figuras pintadas nas cavernas de Lascaux, na França, às paisagens do pintor francês Paul Cezanne (1839 – 1906), a arte buscou sentido na natureza. Para Scruton, a experiência da beleza natural traz em si mesma a garantia de que o mundo é “um lugar certo e ajustado para se estar – um lar no qual as nossas expectativas e poderes humanos encontram confirmação” (p. 66).
Exemplificamos a beleza natural aqui com um panorama, ao entardecer, do Vale de Pancas, na cidade de Pancas, Espírito Santo. Esse vale faz parte da região do tombamento da Mata Atlântica, objeto da Resolução CEC Nº 03/91, do Conselho Estadual de Cultura.
Há outras palavras de Scruton que nos levam a imaginar paisagens como as do vale que ilustramos anteriormente. É o caso do excerto que transcrevemos a seguir:
“A bela paisagem leva-nos a um juízo de gosto, a vista sublime convida a um outro tipo de juízo, no qual nos medimos com a espantosa infinitude do mundo e nos tornamos conscientes da nossa finitude e fragilidade” (p. 73).
Para o autor, a paisagem obrigatoriamente inclui a arquitetura, sendo esta uma arte partilhável, posto que suas obras são expostas ao público, e aqui cabe lembrar que nós mesmos nos apropriamos da arquitetura por sua face pública. Quantas não foram as fotografias tiradas em viagens defronte a obras arquitetônicas residenciais, particulares, que são assim partilhadas mesmo que não possamos adentrá-las.
Ademais disso, lembramos que no Espírito Santo há eventos que se valem da beleza da arquitetura para sua realização. É o caso, por exemplo, do projeto Escadarte. Composto por espetáculos de música, dança e declamação em plena escadaria Bárbara Lindenberg, entre o porto e o Palácio Anchieta, o Escadarte reúne imensa plateia.
Finalizando, vale notar que Scruton aborda ainda formulações sobre beleza e verdade. O autor lembra que nossas obras de arte prediletas parecem guiar-nos para a verdade da condição humana. Mais ainda, que, colocando diante de nós exemplos de ações e paixões humanas consumadas, libertas das contingências da vida do quotidiano, essas obras de arte mostram-nos porque vale a pena a vida humana (p. 118).
Cumpre acrescentar que, no respeitante a esse pensamento, o autor convoca a percepção do poeta Keats, acerca do vaso grego que trazia uma mensagem filosófica:
“A beleza é verdade; a verdade, beleza – é tudo o que na terra sabemos, e tudo o que precisamos de saber” (4).
Essas palavras nos remetem a uma visão poética da beleza, da verdade e da vida. Elas nos endereçam a uma assertiva que, muito posteriormente a Keats, o poeta brasileiro Murilo Mendes viria a proferir: “A visão poética do mundo deve justificar nossa existência” (5).
Justifiquemos, portanto, com beleza, verdade e poesia também nosso contato e convívio com os bens patrimoniais, os sítios históricos, numa palavra: os lugares de memória.
notas
NA – Agradecemos à amiga Sonia Marques a leitura inicial desta resenha, e a Rodrigo Zotelli Queiroz e Carolina de Carvalho Veiga a cessão das imagens institucionais que ilustram esta resenha.
1
O website do autor apresenta seus trabalhos em cada uma das profissões acima citadas e permite uma boa apreensão de seu ideário <www.roger-scruton.co>.
2
A edição que lemos para esta resenha é portuguesa. Por este motivo, nas citações e excertos do livro, mantivemos a grafia das palavras tal como no idioma luso.
3
Baldassare Longhena (1598 -1682), formado em escultura, deu caráter próprio à arquitetura barroca veneziana. Cf: LORDA, Joaquin. Classical Architecture. Verbete "LONGHENA, Baldassare". Pamplona, Escuela de Arquitectura Universidad de Navarra <www.unav.es/ha/009-MAES/LONGHENA.htm>.
4
John Keats (1795-1821) poeta inglês.
5
MENDES, Murilo, Obra Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p. 831.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003) doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada do Patrimônio Histórico (UFPE, 2008), trabalha na Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.