A poesia é a alma inaugurando uma forma
Gaston Bachelard, 1884-1962
Corria o ano de 1991, e eu escrevia a monografia Cidades e Subjetividades, meu trabalho de conclusão do curso de Arquitetura e Urbanismo (1), cujo escopo resumidamente falando, consistia em uma leitura da cidade como musa na obra de filósofos, poetas, músicos e cineastas. Charles Baudelaire (1821-1867) era o poeta enfocado e dele, li, pela primeira vez, As flores do mal. Desde então, esse livro nunca mais deixou a minha vida, reli-o diversas vezes. Estando mais uma vez relendo As flores do mal, escrevi esta resenha, que vai ilustrada com fotos que eu fiz na França em 2016.
Lançado em 25 de junho de 1857, como uma coletânea contendo 52 poemas inéditos, o livro foi proibido, o poeta multado, defendido, e por fim, liberado. Essa obra, ao seu tempo, foi aplaudida e louvada por Victor Hugo, considerado, então, “verdadeiro oráculo da literatura francesa” (p. 27).
Em As flores do mal, a cidade é apresentada em toda a sua complexidade, sem meias palavras. Desviante, impura, desejosa, prazerosa, noctívaga, a cidade é ela mesma um corpo, vivendo intensamente o seu caráter díspar: ela é dor e prazer, luxo e pobreza, beleza e tristeza. Nela, por entre as torres de indústrias, bordéis, becos, esquinas, guetos, surgem os ardores, o movimento dos corpos, a grandeza e a desonra.
XXV
Porias o universo inteiro em teu bordel,
Mulher impura! O tédio é que te torna cruel.
Para teus dentes neste jogo exercitar,
A cada dia um coração tens que sangrar.
Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos
E dos rútilos teixos que ardem nos festejos,
Exibem arrogantes uma vã nobreza,
Sem conhecer jamais a lei de sua beleza.
Ó monstro cego e surdo, em cruezas fecundo!
Salutar instrumento, vampiro do mundo,
Como não te envergonhas ou não vês sequer
Murchar no espelho teu fascínio de mulher?
A grandeza do mal de que crês saber tanto
Não te obriga jamais a vacilar de espanto
Quando a mãe natureza, em desígnios velados,
Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados
– A ti, vil animal –, para um gênio forjar?
Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar! (p. 163)
O poeta francês decanta a cidade da prostituta, do comércio do prazer em toda a sua plenitude para enfim chegar a fazer a sua elegia. A prostituição, “desonra exemplar”, em seus versos se destitui dos estigmas com os quais a perseguem os agenciamentos moralizantes. A prostituta é a mulher cuja cor se mistura à própria cor da noite, a mulher que acolhe a cidade que a acolheu, cidade plural em sua complexidade, e intersubjetiva em seus conteúdos. A cidade que assoma acima dos estereótipos.
A prostituta assim aparece porque é, ela mesma, parte da realidade da cidade. É embevecido de cidade que Baudelaire a insere em suas poesias. De uma cidade sombria, cidade de cantos de quarto e cantos de corpos, cidade que recende aos prazeres do devir urbano, do dia e da noite. Cidade do eterno nunca saciar-se, que surge desde o título do próximo poema, “Satisfeita, mas não saciada”.
XXVI
SED NON SATIATA
Bizarra divindade, cor da noite escura,
Cujo perfume sabe a almíscar e a havana,
Obra de algum obi, o Fausto da Savana,
Feiticeira sombria, criança da hora impura,
Prefiro ao ópio, ao vinho, à bêbeda loucura,
O elixir dessa boca onde o amor se engalana;
Se meus desejos vão a ti em caravana,
É do frescor dos olhos teus que ando à procura.
Que esses dois olhos negros, poros de tua alma,
Ó demônio impiedoso! às chamas tragam calma;
Não sou o Estige, para lúbrico abraçar-te,
E não posso, ai de mim, ó Megera sensual,
Para dobrar-te a fúria e à parede encostar-te,
Qual Prosérpina arder em teu leito infernal (p. 165).
A cidade da noite de bordéis, tabernas, bebedeiras é a mesma das ruas movimentadas propícias aos encontros, ao contemplar dos vários corpos transeuntes. A cidade onde se dá a passagem dos afetos, que, circulantes por entre ruas e corpos, comunicam-se entre si, e comunicam a cidade. Cidade em que o nomadismo do desejo se investe de molecularidade. A molecularidade que, desviante da ordem estabelecida, produz a sua própria subjetividade, um comportamento que singulariza.
A cidade de Baudelaire abriga a molecularidade em seu espaço aberto ao devir, à fruição das ruas do dia e da noite, sem as perseguições das convenções estabelecidas por dicotomias que rotulam ou classificam. A cidade é para ser experimentada em sua verdade – um conglomerado de conflitos e possibilidades. Cenário dos afetos todos que em seu corpo de descortinam e que por ele falam. Corpo cidade, cenário do encontro dos afetos.
Convite permanente ao instante e ao contemplar – incógnito ou não – a passante que o momento reserva. A cidade aqui é a do desfrute destes efêmeros momentos que urgem por ser provados e vividos em sua quase instantaneidade, sua fugacidade. O momento de um apressado passar da moça, para cujo encantamento a poesia se faz. Porque o instante é fugidio – ainda mais na cidade tão mutante; e por ser assim fugidio e não se repetir jamais, urge ser vivido nas inúmeras surpresas que descortina – até mesmo a promessa de um devotado amor a uma fugaz passante.
XCIII
A UMA PASSANTE
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste! (p. 345, cursivo do autor)
A cidade aparece como puro convite ao desfrute. Cada espaço traz a possibilidade do experimento de um novo uso, do reinventar contínuo. Envolta em subjetividades a cidade se estende ao país, um país que pode mesmo ser a imagem da amada, tão subjetivo se faz. A cidade além do bem e do mal é percorrida sob a perspectiva desejante da experimentação, que tão mais rica se faz quando imersa na multiplicidade de gentes e hábitos.
Nesta cidade de desarraigados e desterrritorializados investidos do desejo de vida, de experimentação e enriquecimento o espaço tem uma nova percepção. Cada espaço é como que um convite à viagem.
LIII
O CONVITE À VIAGEM
Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
De teu olho infiel
Brilhando através do pranto.
Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.
Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,
Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.
Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.
Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
– Os sanguíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canais, toda a cidade,
Em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.
Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor (p. 235).
Viajando pela cidade, permeando sua multidão, transpondo ruas e subúrbios, Baudelaire procura a poesia. Talvez seja esta a sua pergunta à cidade. Se fora, a molecularidade com a qual se insere nos lugares todos desta cidade – tal como o faz o sol que se esgueira por entre a flanqueada cidade – é bastante fecunda para se chegar à resposta.
Tipicamente urbana, a busca é solitária e em seu trajeto esbarra em imagens, material fortemente constitutivo da cidade. Imagens que há muito o seu devaneio já antevia. O poeta que assim sonha é ele próprio personagem de sua poesia – materialização de seu poema de cidade –, personagem que vive as imagens da cidade e é, ele próprio, uma imagem dela. A imagem do solitário caminhante que em sua errância busca suas respostas, se atém às imagens, desvenda suas dúvidas imerso na inquietação que a cidade dissolve como o sol que nuvens dissolve no azul do céu.
LXXXVII
O SOL
Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros
Persianas acobertam beijos sorrateiros,
Quando o impiedoso sol arroja seus punhais
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Exercerei a sós a minha estranha esgrima,
Buscando em cada canto os acasos da rima,
Tropeçando em palavras como nas calçadas,
Topando imagens desde há muito já sonhadas.
Este pai generoso, avesso à tez morbosa,
No campo acorda tanto o verme quanto a rosa;
Ele dissolve a inquietação no azul do céu,
E cada cérebro ou colmeia enche de mel.
É ele quem remoça os que já não se movem
E os torna doces e febris qual uma jovem,
Ordenando depois que amadureça a messe
No eterno coração que sempre refloresce!
Quando às cidades ele vai, tal como um poeta,
Eis que redime até a coisa mais abjeta,
E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,
Quer os palácios, quer os tristes hospitais (p. 319).
Imerso nesta cidade cenário da vida, do dia e da noite, em todas suas máscaras e rostos, verdades e mentiras, desmascaramentos e dissimulações, é aí que o poeta se abriga e dialoga consigo mesmo. A experiência da multidão lhe propicia também o recolhimento e estas duas experiências se fundem numa só. Neste recolhimento a poesia se faz, acompanhada da paisagem da janela que enquadra a cidade.
Essa é a cidade feita de imagens, das indústrias que transformam torres e chaminés nos novos mastros da urbe já moderna. Cidade em que rios transformam-se em cursos de carvão; cidade dos postigos, da mudança do tempo e dos devires. Nela, nunca se está totalmente só, pois aquela luz que se enxerga em meio às janelas, à noite, nos é solidária, mesmo que não se conheça a quem ela ilumina. Assim, ela se faz subjetiva e abre espaço à construção dos mágicos castelos do poeta, engendrando novas paisagens.
LXXXVI
PAISAGEM
Quero, para compor os meus castos monólogos,
Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos,
E, junto aos campanários, escutar sonhando
Solenes cantos que o vento vai levando.
As mãos, sob meu queixo, só, na água-furtada,
Verei a fábrica em azáfama engolfada;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
E os vastos céus a recordar a eternidade.
É doce ver, em meio à bruma que nos vela,
Surgir no azul a estrela e a lâmpada à janela,
Os rios de carvão galgar o firmamento
E a lua derramar seu tíbio encantamento.
Verei a primavera, o estio, o outono; e quando,
Com seu lençol de neve, o inverno for chegando,
Cada postigo fecharei com férreos elos
Para na noite erguer meus mágicos castelos.
Hei de sonhar então com azulados astros,
Jardins onde a água chora em meio aos alabastros,
Beijos, aves que cantam de manhã e à tarde,
E tudo o que no Idílio de infantil se guarde.
O Tumulto, golpeando em vão minha vidraça,
Não me fará mover a fronte ao que se passa,
Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento
De relembrar a Primavera em pensamento
E um sol na alma colher, tal como quem, absorto,
Entre as ideias goza um tépido conforto (p. 317).
Ficam as formas da cidade, as marcas que lhe deixam o uso, o tempo, os fluxos, o movimento, a hora de despertar, levantar os lençóis ao sol, nos oferecer uma cena inesperada, o insólito, o fortuito. Essa cidade que na poesia de Baudelaire surge feita de imagens mutantes, continuamente transformada pela história e a imaginação dos homens é formadora de sentidos. Mais ainda: assim como inspira poesias, impregna a memória do poeta e de todos que nela vivem. De todo modo, são percebidas, vividas, experimentadas, e, assim, formam uma memória. A cidade, na poesia de Baudelaire, inaugura uma vertente de interpretação: a da cidade como cenário da vida.
Dentro dessa cidade cenário de vidas múltiplas, personagem do drama de seus espaços, Baudelaire parece conhecê-la por inteiro, em todos os seus muitos mundos. Isso porque, em seu devir singular, ele a percorre inteira, para além de conceitos e valorações. É na cidade que ele vai buscar a poesia, que está, ela mesma, como a cidade, além do bem e do mal. É o poeta mesmo quem isto confirma quando de uma dedicatória sua a Theóphile Guatier diz: “Sei que, nas regiões etéreas da verdadeira poesia, não há o Mal, como tampouco o Bem" (2).
notas
NA - agradeço à amiga Sonia Marques a leitura e discussão desta resenha.
1
A monografia foi orientada pelo professor Roberto Garcia Simões, e contou em sua banca avaliadora com as professoras Telma Guimarães e Bernadette Lyra.
2
Trecho da dedicatória de Charles Baudelaire a Theóphile Guatier.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista UFES (1991), mestre em arquitetura (UFRJ, 2003), doutora em desenvolvimento urbano na área de conservação integrada do patrimônio histórico. Trabalha na Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.