A restauração da fachada da Biblioteca Nacional representa um marco na história da instituição e do edifício que completará em breve 108 anos. Trata-se de uma intervenção sem precedentes no edifício desde as primeiras obras de restauro realizadas em seu interior em meados dos anos 80 no século vinte e envolveu mais de 120 colaboradores, técnicos e operários e, certamente, todo o corpo de servidores da BN.
Construído em um momento especial na história do Rio de Janeiro, a Belle Epoque Tropical, o prédio da Biblioteca Nacional que hoje conhecemos sobreviveu até os dias atuais graças a sua condição primordial de monumento. A nova Avenida Central foi o Boulevard símbolo da cidade que procurava reinventar-se como modelo cosmopolita das Américas, espelhando-se nas grandes metrópoles europeias, em especial Paris. Ali foi em 1910 inaugurada a nova Biblioteca, onde também já haviam sido e instalados o Museu Nacional de Belas Artes (1908) e o Theatro Municipal (1909).
No século 20 o edifício acompanhou o desenvolvimento da Biblioteca com instituição responsável pela preservação da memória impressa brasileira, chegando hoje a marca de mais de 9 milhões de títulos em seu acervo. Tombado em 1973, sobreviveu às grandes transformações urbanas, como a construção do metrô. As primeiras restaurações datam da década de 1980, sendo que a fachada foi pela primeira vez restaurada em meados década de 1990.
No início do século 21 a fachada já apresentava preocupantes sinais de degradação, que colocavam em risco o patrimônio, que viriam a agravar-se ao longo dos anos. Após um longo processo de amadurecimento do projeto e busca de recursos financeiros, as obras começaram em dezembro de 2016 com duração prevista de 18 meses, sendo executadas pela empresa Concrejato e coordenadas pelo Núcleo de Arquitetura da Fundação Biblioteca Nacional com o apoio técnico da Fundação Miguel de Cervantes e o acompanhamento do Iphan. Ao custo da ordem de 10 milhões e meio de reais, os recursos utilizados foram provenientes do Fundo Nacional de Cultura do Ministério da Cultura.
Dentre os diversos trabalhos de restauro, que envolveram desde argamassas e ornatos até a cúpula de cobre e elementos pétreos, destaca-se nestas obras a recuperação das 285 esquadrias de madeira, nunca antes realizada, envolvendo pintura, ferragens e vidros.
O arquiteto e fotógrafo Marcos Gusmão foi convidado a registrar o desenvolvimento deste importante trabalho, para que as imagens pudessem ser incorporadas como testemunho ao acervo que documenta a história da instituição para as futuras gerações. A partir deste olhar, emergiu o aspecto humano desta ação, onde a beleza da arquitetura foi novamente revelada a cada dia através do sensível trabalho dos profissionais que, através da lente do fotógrafo, tiveram o seu trabalho inserido no tempo histórico do monumento. De um universo mais de 10 mil imagens obtidas ao longo dos 18 meses de obra, cerca de 150 estão presentes na exposição que hoje ocupa o Espaço Cultural Eliseu Visconti, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Esta também é a oportunidade para se estabelecer um interessante diálogo destas fotos com o universo bibliográfico representado pelo acervo da Biblioteca Nacional, com a participação na mostra de algumas obras que buscam uma conexão entre os universos da fotografia e dos livros.
Dentre os exemplares do que participam mostra está o Álbum da Construção (1). Presente em fac-símile, este pequeno álbum é o mais precioso testemunho da construção do da Biblioteca Nacional, localizada na recém-aberta Avenida Central, de 1906 a 1910. Quarenta e quatro fotografias documentam todas as fazes da obra, das fundações até a fachada. Através delas podemos vislumbrar desde o início o edifício projeto por Francisco Marcelino de Sousa Aguiar (1855-1935). Ele é erguido, através das peças de estrutura metálica da estrutura interna, que vão pouco a pouco sendo cobertas pela alvenaria de tijolos maciços, que por sua vez vai sendo adornada por diversos elementos escultóricos típicos do momento eclético da arquitetura na época.
Destas imagens também emerge um aspecto fascinante: com elas podemos conhecer alguns daqueles indivíduos anônimos que ajudaram a construir a nova biblioteca. Estes trabalhadores, que se aproximam de nós em um salto de mais de 100 anos, interrompem suas atividades para posar para a lente do fotografo e nos encaram, ao mesmo tempo tímidos e curiosos, algumas vezes tendo como fundo a ainda visível paisagem do Rio de Janeiro. Este é o instante para refletirmos sobre a importância do trabalho deste indivíduos e fazer a sua conexão com os operários que participaram das obras na fachada.
Arquitetura
A intervenção de restauro possibilitou a recuperação da integridade da substância histórica do edifício. As novas técnicas e materiais empregados fizeram reemergir a riqueza de formas e detalhes dos elementos originais. Após a remoção de décadas de camadas sucessivas de pintura, foi aplicado um pigmento mineral, nunca anteriormente utilizado, que se aproxima da técnica empregada na época da construção do edifício. Colunas e capitéis, emblemas e balaustradas, vidros e ferragens, pedras e esculturas, enfim, os volumes, as texturas e a variedade dos diferentes elementos que cobrem a superfície da fachada recuperaram o seu significado e podem ser agora melhor percebidos e apreciados.
Neste módulo, todos esses elementos que compõem a beleza da arquitetura eclética que caracteriza o monumento foram captados pela lente da câmera, possibilitando uma infinidade de takes dos ângulos e curvas, cheios e vazios, luzes e sombras recuperados através do restauro da fachada. O edifício pode então novamente nos convidar a conhecer a sua história.
Do acervo aqui participam, por exemplo, a gravura de Piranesi, Il muro con la lâmpada (2), onde a riqueza do referencial arquitetural explorado pelo artista nos remete a alguns elementos presentes na fachada da Biblioteca Nacional, e também o desenho de Grandejan de Montigny, Loggia em estilo renascença romana para a biblioteca imperial a ser erigida por D. Pedro II (3), quando a instituição então demonstrava a sua importância para o processo de construção da identidade do país.
Detalhes
O trabalho do fotógrafo consiste em interpretar, através das lentes da câmera, a essência visual do objeto a ser registrado. Ao longo deste processo é estabelecida uma comunicação entre o objeto e o artista, que explora as inúmeras possibilidades de novas imagens que o objeto potencializa.
A obra de restauro é um objeto rico em possiblidades para as imagens que são buscadas pelo fotógrafo, pois envolve não só o monumento, como aqui podemos ver, mas materiais, ferramentas, o trabalho diário e todas as pessoas nela envolvidas.
Neste módulo, fotógrafo mergulha nesse universo e a partir dele revela imagens de rara beleza, que extrapolam o registro cotidiano.
A obra de restauro constituiu aqui a fonte para imagens construídas através das cores, texturas, luzes e linhas em pura essência, através de um olhar sensível, e possibilitando a descoberta de uma nova visualidade. Imagens que se comunicam através da poética fotográfica em uma nova leitura contida nos detalhes captados pelas câmera.
Das obras do acervo relacionadas neste módulo, o ensaio de Salomão Scliar, A Biblioteca do Preto no Branco (4), publicado na revista O Cruzeiro, faz da Biblioteca Nacional o tema onde a fotografia explora o espaço e dele faz emergir com sombra, luz e texturas , imagens que a colocam na condição de objeto de uma expressão artística.
Trabalho
O trabalho de restauro pressupõe uma extensa gama de atividades, que envolvem o contato da matéria histórica com as técnicas sobre ela aplicadas. Este contato exige uma aproximação cuidadosa entra as partes.
O projeto de restauro constitui o estudo que irá determinar as formas de aproximação do objeto histórico, a fachada da biblioteca, e as técnicas de intervenção sobre ele, ou seja, o conjunto de obras e serviços contratados.
A obra de restauro envolveu um grande número de profissionais nas várias ações desenvolvidas. Dentre elas destacou-se o trabalho de marcenaria nas esquadrias de madeira e vidro. Este foi provavelmente o maior desafio a ser vencido, uma vez que houve a necessidade de mobilização tanto no exterior como no interior do edifício, envolvendo os profissionais das obras e o corpo de servidores, uma vez que cada esquadria demandava um trabalho individual, devendo ser parcialmente removida e transportada até a oficina de marcenaria localizada no canteiro de obras. Isto ainda considerando que instituição deveria permanecer em pleno funcionamento, atendendo diariamente ao público de leitores e visitantes.
O fotógrafo soube captar a dinâmica do trabalho que a obras envolveram, produzindo um grupo singular de imagens, ricas em força e humanidade, ,que expressam a energia produtiva empregada no cotidiano desses profissionais.
Aqui está presente a obra prima de Chico Buarque, a canção Construção (5), cuja letra está na contracapa do Long Play de 1971, que faz parte do acervo da Divisão de Música e Arquivo Sonoro da BN.
Retratos
A execução das obras de restauro envolveu mais de uma centena de profissionais, revelando a dimensão e complexidade deste trabalho. Ao longo dos meses de obra a biblioteca aprendeu a conviver com esse grupo de trabalhadores, que em suas atividades diárias passaram a fazer parte do cotidiano da instituição.
Embora executadas maior parte do tempo do lado de fora, as obras provocaram uma interação entre os trabalhadores de os funcionários, denotando a diferença entre estes dois “universos” que foram submetidos a um convívio diário.
Surgiu então a ideia: por que não trazer esses profissionais para o lado de dentro do edifício, mostrando a eles a importância do seu trabalho como contribuição para a preservação do patrimônio cultural de uma nação, que também é deles?! Foi então organizado um circuito especial de visitas guiadas, convidando esses indivíduos a percorrer e conhecer a biblioteca com seu acervo e sua história. Um momento especial da visita foi dedicado a conhecer o Álbum da Construção, conservado na Divisão de Iconografia, através de imagens digitalizadas.
O fotografo foi testemunha de todo esse processo e registrou esse encontro. Desse olhar surgiram imagens que revelam o lado humano aflorando do trabalho, os olhares e gestos destas pessoas em sua luta diária, que partir de agora irão fazer parte da história a ser contada, contando-a com o seu trabalho.
Neste módulo obras como Viva o povo brasileiro (6), de João Ubaldo Ribeiro e A alma encantadora das ruas (7), De João do Rio , propõem uma conexão entre o seu conteúdo literário e os retratos fotográficos.
notas
NE – texto curatorial da exposição As mãos que restauram o tempo: um olhar fotográfico, curadoria de Luiz Antonio Lopes de Souza. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 05 de julho a 06 de outubro de 2018. Visitação: terça a sexta, das 10h às 16h30; sábados, das 10h30 às 14h30. Informações: <http://bndigital.bn.gov.br/exposicoes/biblioteca-nacional-as-maos-que-restauram-o-tempo>.
1
Álbum da construção da Biblioteca Nacional na Avenida Rio Branco. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1909. 44 fotos, gelatina, pb, 25,4 x 37.
2
PIRANESI, Giovanni Battista. Il muro con la lâmpada [estampa 15]. Roma, Itália: [s.n.], [c.1761?]. 1 grav., água-forte, pb.
3
GRANDJEAN DE MONTIGNY, Auguste Henri Victor. Loggia en estilo renascença romana para a biblioteca imperial a ser erigida por D. Pedro. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], [1843]. 1 desenho, aquarela, col., 54 x 41,5. ARC. 30 – E: g:II
4
Armando Pacheco; Salomão Scliar(fotógrafo). A Biblioteca do Preto no Branco. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 5 jan. 1946, p. 56-61.
5
BUARQUE, Chico. Construção (Disco). [Rio de Janeiro], Philips, [1971]. 1 disco, 33 1/3 rpm, estéreo, 12 pol.
6
RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. 4a edição. Rio de Janeiro, Alfaguara, 2007. 639p., 24 cm.
7
JOÃO DO RIO. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro, H. Garnier, 1908, 288 p.
sobre o autor
Luiz Antonio Lopes de Souza é arquiteto e mestre em arquitetura (FAU UFRJ, 1986 e 2006). Atualmente é arquiteto chefe do Núcleo de Arquitetura da Fundação Biblioteca Nacional.