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Rita Velloso resenha o livro Arquiteturas do olhar: imaginários fotográficos do espaço construído, de autoria de Junia Mortimer.

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VELLOSO, Rita. Modos de des-ver. Ou, a arquitetura experimentada depois da fotografia. Resenhas Online, São Paulo, ano 17, n. 194.03, Vitruvius, fev. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.194/6885>.


Muito embora uma recomendação para publicação de uma tese, ao final do longo processo de avaliação num doutorado, represente quase que invariavelmente o reconhecimento da qualidade do trabalho apresentado à universidade, essa pode ser uma sutil armadilha, pois ‘vir a público‘ no interior dos muros dos centros de pesquisa em quase nada se assemelha ao ‘vir a público‘ no mundo todo lá fora. São poucos os pesquisadores a se dar conta desse ardil e que, ao fazê-lo, ainda se decidam por prosseguir, superando o engano da sensação de acabamento do trabalho e se colocando novamente a caminho, uma vez mais no labor de uma escrita outra, muito diversa, sobre o mesmo tema, aquele tão seu conhecido.

CUL #1, Shhhhh 2013
Foto Junia Mortimer

Tal é o caso aqui. O livro de Junia Mortimer, cujo argumento já havia se apresentado como um trabalho consistente de pesquisa no campo da teoria da arquitetura, estabelece um novo patamar de análise.  O seu Arquiteturas do olhar: imaginários fotográficos do espaço construído oferece, resolutamente, uma contribuição que não é apenas comentário ao repertório dos campos e disciplinas aos quais pertence, mas, principalmente, crítica.

“Fazer a tese virar o livro” não é tarefa nem simples, nem automática. Antes, implica o encontro de uma nova forma para a exposição dos conceitos, e pressupõe aplicar à própria argumentação uma crítica aguda. Raros são os autores que se permitem deixar avistar na forma-livro aquilo que à forma-tese era quase um veto:  as incertezas da conclusão, as portas fechadas à deriva dos argumentos, e, sobretudo, as aberturas – mesmo que tardias – ao mundo que se apresenta no horizonte das pesquisas “de e para depois da tese”, todas elas – as aberturas – perguntas que são tentativas. Quem leva a cabo essa tarefa de escrever criticando a si mesmo entrega às livrarias e às telas dos dispositivos um trabalho indubitavelmente público, pronto para o debate que suscitará.

CUL #5, Shhhhh 2014
Foto Junia Mortimer

É verdade que alguns pequenos costumes acadêmicos persistem na apresentação do texto sem, contudo, serem nocivos. Ali há o velho hábito de dizer que o que se escreve é “resultado das pesquisas desenvolvidas ao longo” de um curso de doutorado, quando não são, evidentemente, apenas resultado de dois pares de anos debruçados sobres os livros, mas sim a linha de chegada de um longo trajeto de questionamentos persistentes que apenas tem, no doutorado, sua primeira chance de conclusão. Há também a inescapável apresentação do argumento na forma de uma questão-síntese que só denota a retomada, ao fim do trabalho, dos propósitos iniciais de um projeto de pesquisa (“em que medida e de quais maneiras…”), estratégia textual estéril num livro, pois o que conduz o leitor no mergulho da leitura, ao contrário da aferição ou comprovação de uma tese, é só e sempre curiosidade aguçada, quaisquer que sejam os temas.

Cambridge, xy/land_scape 2014
Foto Junia Mortimer

O livro, amadurecido, propõe em sete pequenos capítulos uma hipótese audaciosa para os dias de hoje, qual seja, pensar a imagem fotográfica como um modo de des-ver, como potência de estranhamento que desestabiliza, move e re-territorializa cada experiência espacial sobre a qual a fotografia incida como ato, não somente como dispositivo. O que, se levado a cabo de modo radical, é um aprendizado para experimentar o espaço.

Esse argumento será desenvolvido em quatro partes, das quais ressaltam a introdução, em que se apresenta de modo assertivo e consistente o percurso conceitual da autora e os pensadores com quem dialoga, e o caderno de imagens, que funciona como segundo texto, cuja escrita visual quase o leva ser interpretado de modo autônomo, mais do que como coleção de ilustrações.

Fronteiras #1 2014
Foto Junia Mortimer

Mortimer sustenta uma construção teórica própria ao longo de todo o livro, sem nunca perder de vista o alvo: a partir da discussão de um determinado conjunto de aspectos dos processos artísticos fotográficos em sua relação com a arquitetura, estabelecer um âmbito de reflexão no qual a prática fotográfica contemporânea faça emergir modos transformados de apreender, imaginar e produzir o espaço construído.

Os capítulos são agrupados em duas partes, segundo um arranjo textual complexo que podemos chamar de geométrico: apresentam-se as noções de campo, zona de adensamento, aglomeração. Estabelecem-se para esses, no que a autora chama “uma manobra conceitual e analítica”,  princípios tensionadores (o olhar, o corpo-objeto, o espaço) e suas sintaxes específicas. Deve-se dizer que, mesmo que exija ao leitor uma interpretação ainda mais atenta, essa inegável vontade de sistema em nada prejudica a compreensão do argumento, bem ao contrário.

Fronteiras #2 2014
Foto Junia Mortimer

O texto transparece, por vezes, estar ancorado pelas proposições de Mitchell Schwarzer (Zoomscape, 2004) e Anthony Vidler (Architectural Uncanny, 1991; e Staging Lived Space, 2001) em suas teorias sobre a arquitetura urbana contemporânea. Encontra-se nos dois pensadores a articulação que é cara à autora, entre imagem, corpo e espaço,  pois que ambos perfazem “um trânsito crítico entre fundamentos da teoria da arquitetura, teoria da fotografia e teoria da arte… tendo suspensas, ainda que temporariamente as fronteiras entre esses mesmos campos” (p. 21).

Mas, para além dessa referenciação, a investigação não se furta ao esforço filosófico do conceito da fotografia, com referências cruciais, que vão de Walter Benjamin a Roland Barthes, de Merleau-Ponty a Jacques Lacan, e, mais recentemente, a Rosalind Krauss ou Boris Kossoy. Dessas filosofias, Mortimer extrai não uma ontologia da fotografia, mas a radiografia de transformação no campo de conhecimento que tem a imagem por objeto. Transformação essa que, a concordar com a exposição da autora, resulta em modos de ação provocados pela fotografia quando confrontada com o campo arquitetural, o que nos leva a esperar, do texto, seu término – por assim dizer – lógico.

Igreja Saint-Séverin, entrada do presbitério. 2 rue de la Parcheminerie, Paris, 1912
Foto Eugène Atget [Library of Congress, Prints & Photographs Division, [Reproduction number e.g., LC- USZ62-]

Trata-se, conclusivamente, e não sem a coragem exigida pelo presente estágio da sociedade urbana e espetacular, de reivindicar por meio da fotografia a imagem como lugar de resistência ao apassivamento e ao achatamento da experiência. O que não é, nem de longe,  um esforço teórico menor no campo da arquitetura: implica defender que, para a experiência do ambiente construído, a imagem ainda pode ser convocada como fator de mobilização do corpo para o movimento (não apenas do olhar), como instância de reconhecimento da materialidade dos lugares e objetos (não apenas do deslizamento abstrato pelas telas, mas em seus fluxos e tráfegos reais), e como lugar de estranhamento do familiar (aquilo que escapa ao condicionamento aprisionado do hábito).

Doors, 2013
Foto Jennifer Williams

Quase ao modo de um manifesto, Mortimer reivindica que determinadas práticas contemporâneas de natureza fotográfica informam a prática da construção dos espaços, por meio do que denomina seu campo em expansão – a construção fotográfica do ambiente construído – no qual se realiza, pelas novas relações estabelecidas entre o corpo e o espaço, uma potência de reconfiguração -  afinal, um modo de reaprender a ver a que se poderia denominar des-ver: uma possibilidade de emersão, na superfície da  imagem, de novas formas de apreender e imaginar os espaços para a vida.

sobre a autora

Rita Velloso é arquiteta e urbanista (UFMG, 1989), doutora em filosofia (UFMG, 2007), com estágio doutoral na McGill University (Montréal, 2005). Pesquisa as relações entre estética, política e cidade, estudando Walter Benjamin, Henri Lefebvre e Guy Debord. É professora adjunta na escola de arquitetura da UFMG, onde coordena o grupo de pesquisa Cosmópolis.

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resenha do livro

Arquiteturas do olhar

Arquiteturas do olhar

Imaginários fotográficos do espaço construído

Junia Mortimer

2017

194.03 livro
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194

194.01 livro

O latifúndio historiográfico

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194.02 filme

Visages, Villages

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194.04 livro

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