Era uma noite de quarta-feira quando participei daquela pequena, mas concentrada, plateia de cinema. Embora fôssemos todos anônimos, estávamos muito unidos, reinando entre nós o acordo tácito de ouvir atentamente Kurt Cobain. Sim, ouvir, pois é disso que se trata: este é um filme para ser, acima de tudo, ouvido.
Feito com base nas mais de 25 horas da entrevista dada por Kurt ao crítico Michael Azerrad, o filme About a Son trabalha fortemente para que o músico grunge seja ouvido com a maior atenção possível. A fórmula para isso foi muito eficiente: o diretor e roteirista Aj Schnack pautou todo o filme pelo áudio da entrevista, ilustrando-a por imagens que não concorrem com a fala de Kurt, mas sim a evocam, no mais das vezes de modo metafórico.
Quando Kurt fala de sua infância, o que vemos não é um antigo vídeo ou slide do menininho de Aberdeen, Washington, mas sim outras tantas crianças dali, como se todas elas pudessem ser Kurt. Quando Kurt diz que foi um adolescente sem turma, o que vemos é um anônimo garoto solitário e cabeludo entrando na escola. Um garoto que poderia vir a ter o destino de Kurt. É isso exatamente o que as imagens parecem querer nos dizer, que cada um de nós poderia ser Kurt, um cara que o filme revela simplesmente como mais um filho de Deus, o filho do título original.
É o filho cujas lembranças agradecem à compreensão da mãe na infância, o apoio da tia, que cedo flagrou o seu talento para as artes, a força do professor que, sem que Kurt soubesse, enviava seus desenhos para concursos, e o surpreendia com os prêmios. O filho talentoso que se saiu bem na escola, mas que recusou bolsas de estudos para faculdades de artes porque se apaixonou loucamente por guitarras. O filho desgarrado que teve a coragem de tentar a vida sozinho, e que, para se abrigar do frio, passava os dias lendo na biblioteca pública, e cada noite dormindo no sofá de uma casa diferente.
De sua vida adulta, esse filho nos conta coisas demasiadamente humanas. É o caso, por exemplo, de uma noite de viagem com a antiga namorada, Tracy, quando girou de carro ao léu, evitando sair do raio de alcance da primeira rádio que tocaria uma música sua. É também o caso da queixa ao pai, que após a separação da mãe, nunca mais procurou por Kurt. Vivido, Kurt faz questão de afirmar que se acontecesse de se separar de Courtney (Love), ele jamais deixaria de conviver com a filha, Frances.
Todo esse relato transcorre na maior espontaneidade e franqueza, em uma conversa em que entrevistado, entrevistador, e, posteriormente, roteirista e diretor evitam toda forma de juízo de valor. Kurt agradece ao amigo gay de sua adolescência, que o salvou de cometer suicídio já naquela época, e nenhum juízo de valor é feito em relação às questões de gênero. Kurt fala abertamente do uso de drogas, e nenhum juízo de valor é feito sobre elas também. Tampouco o suicídio, oficializado como a causa da morte do cantor, é posto sob juízo de valor.
Melhor assim, pois, sem especulações e pré-julgamentos, o que se encontra é a verdade, sempre – o que esta cinebiografia vem a atestar.
No mais, resta dizer que o título da obra no Brasil – “Retrato de Uma Ausência” – é muito infeliz, pois o filme não faz o retrato de uma ausência. Ao contrário, remarca, amplifica e até multiplica a presença de Kurt ao evocá-lo, na tela, por meio de um sem número de pessoas anônimas. A todas elas somam-se as plateias no mundo todo, que também sentem em si, a presença de Kurt.
nota
1
Kurt Cobain About a Son (“Retrato de Uma Ausência”), direção de Aj Schnack, EUA, 2006. Com Kurt Cobain (entrevistado por Nathan Streifel), Michael Azerrad e Courtney Love.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e Urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003), Doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008). Arquiteta e Urbanista da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.