A certeza de que tudo muda é uma das poucas que temos na vida. E tudo muda graças à existência do tempo e de suas infinitas categorias de duração. Só seria possível um mundo sem mudanças se não existisse o tempo. Mas se não há tempo, não há vida. Só existe vida no tempo. Mas haveria, por acaso, um mundo sem o tempo?
Nada permanece absolutamente inerte ao tempo. Não existem dois dias iguais. Somos hoje o que não fomos ontem e seremos outro amanhã. A única certeza que temos é que seremos outro, um outro que também desconhecemos. Somos incapazes de descrever de antemão nossas ações futuras. A vida é tudo, menos um projeto.
O que seria um mundo sem a memória do passado no tempo presente e sem a incerteza acerca do futuro? É claro que esse mundo não existe na realidade, pois a realidade, pelo menos no âmbito da arquitetura, se revela quando um pensamento deixa de ser “ideia” e passa a ser “coisa”. Mas se é coisa, já está submetido ao tempo, sendo assim, está condenado a se transformar.
O projeto é o desejo por uma realidade futura configurado na forma de um “presente eterno”, é a representação de uma situação imaginada, conduzida muito menos pela percepção isolada que o autor tem do lugar e muito mais pela sua memória, pela sua cultura, pela sua linguagem. A percepção de um “presente eterno” só se constitui porque o projeto é “ideia”, ainda não é “coisa”. O projeto é o instante em que a ideia se vê imune à ação do tempo, à realidade, justamente por ser, claro, ainda uma ideia.
A célebre postulação de Paulo Mendes da Rocha, que define a “arquitetura como amparo para a imprevisibilidade da vida”, nos revela que, idealmente, o projeto deve ser movido por uma sabedoria capaz de incorporar o acaso, a indeterminação do futuro, ou seja, o tempo, como argumento fundamental, como motivo para o desenho dos espaços e da forma.
É quase inevitável associar a postulação de Mendes da Rocha ao elogio aos “espaços sem nome” recorrentemente lembrados pelo professor Milton Braga em suas aulas, exemplificados pelo Salão Caramelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, o vão do Museu de Arte de São Paulo – MASP e a marquise que integra e confere coesão e unidade ao conjunto do Parque Ibirapuera. Tais projetos aclaram a potencial virtude de uma categoria peculiar de espaço que pode ser qualquer coisa justamente por não ser nada, por negar o programa arquitetônico como um pressuposto, mas também por compreender que a organização formal e espacial do programa inevitavelmente conformará lugares por vezes não contemplados pelo próprio programa. E, não à toa, serão justamente esses mesmos lugares que conferirão o caráter arquitetônico do projeto.
Ouso incluir na lista tríplice do professor Milton Braga o Centro Cultural São Paulo – CCSP. Chama atenção o uso imprevisto dos espaços daquele edifício: os fechamentos em vidro com película reflexiva se tornaram espelhos para grupos de jovens ensaiarem suas coreografias; as precárias mesas no exterior, um espaço nitidamente residual, são disputadas como bancada de estudo por pessoas de todas as idades. O CCSP (e todos esses “espaços sem nome”) é tudo e nada ao mesmo tempo. E é justamente o fato de não sinalizar espacialmente para uma função utilitária definitiva o atributo que permite ao CCSP ser tudo, qualquer coisa.
Não entendam essa breve reflexão como uma crítica ao programa ou como um elogio, como a ingênua defesa de uma arquitetura livre das contingências inerentes a uma necessidade prescritiva. O programa é o argumento que desencadeia o processo de elaboração de um projeto. É o necessário atendimento à função utilitária (programa) que faz da arquitetura ser o que é e não outra coisa, uma escultura ou um mero objeto de dimensões avantajadas.
Contudo, parece que se há um dado do campo do projeto que está em crise, esse dado é próprio programa. O programa é um conjunto de informações que prescreve a função do edifício e, consequentemente, o modo como deverá ser utilizado. Na atualidade, todas as categorias do programa parecem se dissolver em um mundo onde a ideia de “uso” está cada vez mais particularizada e menos padronizada. Os programas tendem a ser cada vez menos “prescritivos” e cada vez mais “estratégicos”.
O projeto, enquanto organização espacial e formal do programa, é capaz de indicar sua função, mas não necessariamente sua utilidade, seu uso efetivo. A diferença entre função e uso é um bom mote para a reflexão acerca da condição atual do programa no projeto e, consequentemente, na sociedade atual. A função de um edifício corresponde à finalidade para a qual o mesmo foi projetado e construído. Já o uso diz respeito muito mais ao modo como será ocupado. Ou seja, o uso diz respeito ao tempo, diz respeito ao real.
Antes da ruptura promovida pela visão universalizante do projeto moderno, a relação entre solução formal e programa se confundia com a “tipologia” da edificação. Entende-se por tipologia um conjunto de configurações formais, espaciais e programáticas aprimoradas no tempo e destinadas às funções específicas, sendo as principais, a casa do rei (o palácio), a casa de Deus (a igreja) e a casa da cultura (o teatro e o museu). Na concepção tipológica da arquitetura, cada componente do programa possui um dimensionamento e uma configuração geométrica modelar, mas é a maneira como esses componentes se articulam entre si que acaba por definir sua fidelidade à tipologia de uma determinada função. A relação entre esses componentes resulta em configurações espaciais “tipo”, como o pátio interno, o peristilo de pilares no perímetro do volume ou a escadaria de acesso principal localizada no eixo de simetria da fachada. A tipologia seria a decantação no tempo de uma ordenação formal histórica do programa, ou seja, na arquitetura de matriz tipológica forma e programa estão intimamente ligados, são uma coisa só. Com a dissolução moderna da programática institucional, a tipologia histórica deu lugar ao partido arquitetônico.
Enquanto procedimento, projetar é um ato de reincidência. Muitas vezes, o programa é apenas o argumento necessário para o autor aprimorar um mesmo partido formal já ensaiado em oportunidades anteriores com programas dos mais diversos. Projetar é reincidir até o momento em que a relevância deste procedimento e desta linguagem se esgota. Nesse instante, o autor só tem duas saídas: ou se reinventa e reelabora sua estratégia formal a partir de uma chave contrária ou mesmo derivada da estratégia anterior ou se tornará um maneirista de si mesmo, um arquiteto hábil em aperfeiçoar seus próprios clichês. Nessa segunda categoria, a reincidência começa a se confundir com a teimosia daquele que encontrou na suposta proficiência sobre um repertório conhecido sua zona de conforto. Invariavelmente, as obras primas (sejam elas na arquitetura, nas artes visuais ou em qualquer outra manifestação da sensibilidade do intelecto) não são aquelas que revelam um procedimento ou uma linguagem requentada, ao contrário, são justamente aquelas cujo frescor de novidade nos fazem ver o mundo de outra maneira a partir daquela experiência.
O partido reincidente consiste em elaborar estratégias de adaptação do programa a uma solução específica porém versátil (organização formal da função), mas sem prescindir do reconhecimento das características utilitárias e espaciais dos seus componentes.
Se observamos as estratégias projetuais da vertente construtiva, abstrato-geométrica, da arquitetura moderna, assim como dos seus desdobramentos no projeto moderno brasileiro, a partir da manipulação do programa, podemos perceber que os ambientes menores, compartimentados, repetidos e de uso regular tendem a não se agruparem em formas de contorno mais autoral, seja em planta, seja em corte. Por seu turno, o contorno irregular, em planta e em corte, inscreve programas abertos, com espaços amplos e com poucas divisões, como um salão de exposições ou um auditório.
Essa compreensão moderna da natureza formal e espacial do programa se aplica, enquanto procedimento projetual, em duas variações principais: a separação das duas categorias do programa pelo corte e pela planta. Na separação do programa pelo corte, os ambientes menores e compartimentados encontram-se semienterrados, configurando uma laje suspensa, mas rente ao solo, um piso sobre o qual se eleva sobre pontos de apoio mínimos o elemento principal do projeto, o volume vazio e de contorno invariavelmente autoral. Verifica-se esse procedimento em projetos exemplares como o Museu de Arte de Caracas (1954), de Niemeyer, e a primeira versão para sede do MAC-USP (1975), de Paulo Mendes da Rocha.
A mesma separação das duas categorias do programa pode se formalizar pela planta, com os ambientes menores e repetidos abrigados em uma lâmina ou torre que cumpre o papel de fundo e contraponto ao elemento principal, a forma mais esvaziada, localizado em primeiro plano. Projetos como a Sede do Partido Comunista Francês (1963) do próprio Oscar Niemeyer e o Paço Municipal de Santo André (1965), de Rino Levi são exemplos da separação do programa em volumes autônomos, mas que enquanto conjunto resultam em uma relação de equivalência e complementariedade por contraste e não por semelhança.
Se por um lado, a organização “figura/fundo” do programa em planta possui um senso de composição quase acadêmico (para não dizer Beaux-Arts), a organização em corte, com as duas partes separadas pelo espaço do térreo (o semienterrado como uma saliência destacada do chão e o suspenso como uma forma que apenas toca a saliência) é, a meu ver, a estratégia formal que une as principais culturas projetuais modernas no Brasil: a escola carioca e o brutalismo paulista.
Elaborado pelos estudantes da disciplina obrigatória AUP0162 Arquitetura – Projeto IV no segundo semestre de 2018, o projeto da Casa de Cultura se presta como exercício oportuno para a reflexão e o debate sobre o lugar do programa arquitetônico na constituição de um conjunto de estratégias projetuais e formais, algumas delas apontadas brevemente neste texto. A relação entre os espaços destinados às atividades de produção da Casa de Cultura e os espaços funcionais e administrativos é o argumento que deflagra as possibilidades que configuram o partido arquitetônico, assim como a forma.
São infinitas as portas de entrada para a elaboração de um projeto. Contudo, no exemplo da Casa de Cultura, o devido entendimento da natureza espacial do programa parece ser o acesso capaz de nos fazer compreender com clareza, discutir e avaliar os elementos que constituem o projeto enquanto ideia, ou seja, nos permite aplicar um instrumental metodológico ao aparentemente intangível. Eis o paradoxo da arquitetura.
nota
NE – texto publicado originalmente na página Facebook do autor.
sobre o autor
Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp, 2001), mestre (ECAUSP, 2003), doutor (FAUUSP, 2007) e professor livre-docente do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le Corbusier, América do Sul, 1929” (CEUMA, 2012), “Brasília: an utopia come true”, (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MACUSP, 2007/2008).