Eisenman em seu livro Ten canonical buildings 1950-2000, de 2008, subverteu o significado do termo canônico com o objetivo de explicar um conjunto de edifícios exemplares. Para o arquiteto e crítico estadunidense os dez edifícios canônicos analisados são aqueles que antecederam, pelo caráter experimental e antecipatório, outros que se transformaram em cânones.
A estratégia de Fernando Lara se aproxima da utilizada por Eisenman ao inverter o significado comumente atribuído ao termo excepcional quando usado como adjetivo da arquitetura moderna produzida no Brasil. Para Lara o excepcional não é a graça das formas concebidas por Oscar Niemeyer, a sofisticação dos elementos de proteção climática desenhados pelos irmãos Roberto ou o domínio e controle da estrutura portante projetada por Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. Tampouco o termo é explicado pela natureza inusitada da obra de arquitetos como Sergio Bernardes e Lina Bo Bardi. Para Lara a excepcionalidade da arquitetura no Brasil é sua disseminação: rápida, certeira, eficaz e eficiente. Talvez, como em nenhum outro lugar do planeta, certa corrente da arquitetura moderna tenha se tornado corriqueira, comum, cotidiana, portanto um feito excepcional. A excepcionalidade, neste caso, tem relação com velocidade e territorialidade; com a formação de uma cultura arquitetônica como aponta Carlos Martins (1).
Trata-se de uma compreensão alternativa da modernidade arquitetônica brasileira que se apoia em uma visão de conjunto fornecida pelas centenas, talvez milhares, de pesquisas sobre a história da arquitetura do século 20 no Brasil produzidas nos últimos trinta anos nos muitos programas de pós-graduação que se espalharam pelo país.
A conhecida polêmica entre Lucio Costa e Geraldo Ferraz pode ser aqui retomada. Foi Lucio Costa – ao criar o mito da genialidade e da inventividade do arquiteto brasileiro, cuja terra produzira artistas excepcionais do calado de Aleijadinho e Niemeyer – que desviou o foco da excepcionalidade proposta pela pena de Fernando Lara.
Poucos anos depois do embate ocorrido em 1948 entre Costa e Ferraz nas páginas do Diário de São Paulo e do O Jornal, Giedion, em 1956, no prefácio do livro de Henrique Mindlin (Arquitetura Moderna no Brasil) alertou para o que Lara desenvolveria posteriormente – tema sagazmente abordado por Carlos Martins em seu "Hay algo de irracional…” (2). Segundo Giedion “a arquitetura brasileira floresce como uma planta tropical”, e estaria “encontrando sua expressão própria com uma rapidez surpreendente”. Mais adiante sacramenta a ideia de difusão frente a de excepcionalidade: “Se certas características são claramente visíveis nas obras de algumas individualidades excepcionais, elas não estão ausentes no nível médio da produção arquitetônica. Isso não ocorre na maioria dos outros países”.
Excepcionalidade do modernismo brasileiro é o quarto livro de um total de cinco que compõe até o momento a coleção Pensamento na América Latina publicada pela editora Romano Guerra sob a batuta de Abilio e Silvana. Trata-se de uma coletânea de textos escritos por um único autor, portanto, marcada pelo duplo papel de organizador e autor. São, no total, nove textos, dos quais um resulta de uma conferência no Canadá proferida em 2005 (em inglês) e os outros oito foram publicados originalmente entre 2006 e 2016 em diferentes revistas editadas em diversos países — Brasil, Argentina, Chile, Singapura e Estados Unidos —, dentre estes, seis foram publicados em inglês e dois em espanhol. É, portanto, um conjunto de textos dispersos por seis países em onze anos, o que indica a dificuldade da primeira tarefa auto-imposta.
O resultado, entretanto, não é uma simples coletânea, mas uma organização que define uma narrativa coerente e articulada. Mesmo que cada um dos textos seja autônomo, a leitura do conjunto revela o desdobramento de diversos temas abordados por meio de uma espécie de zoom in. Desde os aspectos mais gerais da ideia de difusão dos códigos modernistas no Brasil até um olhar mais apurado e específico, como por exemplo a discussão sobre a excepcionalidade efêmera, técnica e estética das fôrmas em madeira das estruturas em concreto.
Ainda que os nove textos tenham sido escritos e publicados entre 2005 e 2016, muitas das ideias desenvolvidas remontam vinte anos de pesquisa do autor, como bem é relatado na introdução do livro. De fato, a primeira vez que tomei contato com a pesquisa de Lara sobre a ideia de Modernismo Popular foi em 1999, em São Paulo, no Seminário Nacional do Docomomo. Entre o seminário de 1999 e este livro merece destaque a publicação em 2008, em inglês, do livro Brazilian Popular Modernism. De lá para cá o polêmico debate suscitado a partir de 2008 pela publicação passou a respaldar trabalhos acadêmicos bem elaborados como as teses de doutorado de Juliana Suzuki (FAU USP) e Adriana Leal (IAU USP).
Em Excepcionalidade do modernismo brasileiro, no entanto, os argumentos extrapolam a discussão sobre a difusão proposta em Brazilian Popular Modernism e, por meio do termo excepcional, constroem um visão alternativa da modernidade arquitetônica brasileira que se utiliza das frestas e brechas, ou parafraseando Heloísa Buarque de Hollanda, avança por meio “das quebradas”.
Os textos Disseminação do vocabulário moderno, publicado originalmente em The Journal of Architecture (vol. 11, n. 2, Summer 2006) e Modernismo vernacular, publicado no Journal of Architectural Education (v. 63/1, Fall, 2009), superam a visão de obra-prima e de excepcionalidade no sentido de costiano, ampliando a discussão até edifícios “comuns” que, longe de serem paradigmáticos ou icônicos, constituíram as cidades brasileiras a partir dos anos 1940.
Por meio de frestas existentes na historiografia da arquitetura do século 20 no Brasil, Lara incorpora toda a cadeia produtiva da construção no processo de realização do edifício. Este debate remonta aos embates do final dos anos 1960 entre Vilanova Artigas e o Grupo Arquitetura Nova entorno ao termo desenho. Em "A invisibilidade da madeira", publicado originalmente em Ciudad y Arquitectura (n. 150, 2012, Santiago, Chile) e Modernistas analfabetos", publicado originalmente em Housing and Belonging in Latin America (Nova York, 2013), amplia-se, não apenas o debate, mas a própria ideia de campo disciplinar — algo que a historiografia da arquitetura moderna ainda não enfrentou — incluindo atores que não fizeram parte das narrativas centrais e/ou oficiais.
Por outro caminho, porém de modo convergente com o exposto anteriormente, em "Americanização ou Brazilianização?", apresentado na conferência Americanization of Post-War Archietcture (University of Toronto, 2005) e "Leste, Oeste, Alto e Baixo", publicado originalmente em Non West Past Modernism (Singapore: World Scientific, 2011) Lara forja sua visão alternativa da modernidade arquitetônica brasileira, situando-a, sem resquícios de síndrome de inferioridade, no contexto Europa/Estados Unidos e, sem petulância ou superioridade, com relação a América Latina. Este fato reforça a importância do livro ter sido publicado em também em espanhol estimulando um diálogo mais profícuo e real entre os países da América Latina.
Finalmente, a coletânea termina sem o autor se eximir da crítica ao processo de modernização ("Utopias incompletas" e "Casamento do século"). Em ambos a ácida crítica coloca o livro, o conjunto de textos e seu autor em uma séria posição de distanciamento com relação ao seu objeto de análise, algo que nem sempre ocorre quando se trata de arquitetura moderna no Brasil.
notas
1
MARTINS, Carlos Alberto Ferreira. Hay algo de irracional... Block, Buenos Aires, n. 4, p. 8-22, dic. 1999. Os argumentos de Lara coincidem com a abordagem identificada por Martins a partir do texto escrito por Sigfried Giedion como prefácio para o livro de Henrique Mindlin publicado em 1956. O texto de Carlos Martins foi republicado em português pela Romano Guerra Editora em 2010. In GUERRA, Abilio (Org.). Textos fundamentais sobre historia da arquitetura moderna brasileira — Parte 2. Coleção RG bolso, volume 2. São Paulo, Romano Guerra, 2010.
2
MARTINS, Carlos Alberto Ferreira. Op. cit.
sobre o autor
Marcio Cotrim é doutor em História da Arquitetura, História Urbana pela Universitat Politècnica de Catalunya (2008). Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU/UFPB e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB. Pesquisador do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM) e do Grupo de Pesquisa Projeto e Memória do CNPq.