É muito conhecida nas ciências sociais a obra de Friedrich Engels chamada A situação da classe operária inglesa publicada em 1845, quando o autor, nascido em 1820, tinha apenas 25 anos. De origem prussiana, Engels viajou para a Inglaterra – então a oficina do mundo – em novembro de 1842 e lá ficou por 21 meses, estagiando na empresa de sua família abastada. Depois, em 1844, via Paris, retornou para a casa dos pais, e passou a escrever aquele livro que é, na verdade, um relatório e uma denúncia. Uma obra-prima, dirá Eric Hobsbawm, de leitura obrigatória.
No entanto, não muitos talvez saberão que há um romance de autora vitoriana, moradora de Manchester por toda a vida a partir de 1832, que retrata a mesma situação terrível da classe operária inglesa e foi publicado apenas dez anos depois do livro de Engels. É Norte e Sul, de Elizabeth Gaskell (1810-1865), importante autora inglesa do século 19, amiga de Charles Dickens e de Charlotte Brontë e admirada por pessoas como John Ruskin e Charles Darwin. Mrs. Gaskell é autora de outros romances sociais a partir de Mary Barton, sua estréia literária, de 1848, já publicado no Brasil, em 2017 e que também se passa em Manchester.
Como morava nesta cidade, ela tinha maior proximidade e conhecimento da classe operária cuja vida Engels descreveu, notadamente no célebre capítulo sobre “As grandes cidades”. E, com certeza, conhecia melhor aquela própria cidade – o “tipo clássico da moderna cidade industrial”, segundo Engels – que aparece no romance com o nome de Milton do Norte, um “lugar insalubre, cheio de fumaça e sem sol”. É a “cidade manufatureira de Darkshire”, com suas ruas “compridas e escuras”, muitas vezes bloqueadas por veículos (“van”, “wagon”, “truck”) carregados de algodão.
Existem muitos temas comuns aos dois autores contemporâneos (que não se conheceram), como a moradia dos pobres em número crescente, o alcoolismo, os operários irlandeses, o ar irrespirável, embora o livro de Gaskell seja um texto de ficção enquanto o de Engels tenha a objetividade de uma pesquisa. Mas ambos são documentos altamente relevantes para compreensão do momento histórico trágico e conturbado. O romance Norte e Sul, de 1855 (que começou a ser publicado em jornal um ano antes), já virou série da TV inglesa mais de uma vez.
A tradução deste livro publicado no Brasil, em 2015, pela editora Martin Claret (edição caprichada, com capa dura e 744 páginas), teve pouca repercussão na mídia mas é, sem dúvida, uma obra notável. Mais do que isso, é obra canônica na literatura inglesa que fornece uma visão feminina da questão social, retratada com cores fortes. A morte de uma trabalhadora, aos 19 anos – mesma idade da protagonista -, com a doença pulmonar chamada bissinose (ou pulmão marrom) derivada da inalação de “penugem de algodão” (“fluff”), por exemplo, é descrita em detalhes: “pequenos fiapos que se desprendem quando o algodão está sendo fiado enchem o ar até ele ficar tomado por uma poeira branca”. Os trabalhadores respiravam essa poeira dez horas por dia ou mais, em ambiente sem ventilação. Um exaustor resolveria o problema mas, cruelmente, há trabalhadores que sentem fome quando trabalham sem a poeira por “estarem acostumados a engolir a penugem por um longo tempo” (capítulo 13).
Com mulheres em destaque, o romance trata primordialmente da figura complexa da jovem Margaret Hale e de seu difícil relacionamento com o industrial John Thornton, com quem afinal ficará. Há diversos problemas que se estabelecem entre eles como uma mentira de Margaret – algo intolerável na perspectiva puritana dela – e a acusação de que fora vista com um homem, numa madrugada, homem que era seu irmão. Na verdade, desde o título, o jogo de oposições no livro se dá entre o Norte da Inglaterra, frio e industrializado (Milton), e o Sul idílico e agrário (Helstone, onde a heroína mora no começo do romance); entre operários ingleses, em luta contra os empregadores e contra os operários irlandeses, que aceitavam trabalhar por salário menor; e, afinal, entre a culta, orgulhosa e pobre Margaret e o inculto e rico John, que se torna aluno do pai dela.
A Revolução Industrial será, portanto, o pano de fundo do romance. A cidade de Milton é vista de modo sombrio desde quando a família chega: “muitos quilômetros antes de chegarem a Milton, viram uma nuvem cor de chumbo pairando no horizonte, na direção onde a cidade ficava”. Ao se aproximarem a cidade, o ar foi ficando com um leve gosto e cheiro de fumaça e logo estavam andando em “ruas compridas e retas, sem atrativos, com suas casas iguais, todas pequenas e de tijolos aparentes”. A parte velha da cidade, ocupada pela população mais pobre, era o próprio “inferno sobre a terra”, segundo Engels.
Se a realidade de que tratam é a mesma, ao contrário de Engels a personagem de Elizabeth Gaskell tem uma visão religiosa do mundo (seu pai, além de professor, é pároco da igreja cristã unitária): ela acredita na natureza humana, na redenção do homem e, assim, o longo romance reveste-se de intensa piedade e compaixão em face dos trabalhadores e a condição desumana em que viviam (com fome, doenças, alcoolismo, crianças órfãs, suicídios, num clima úmido e gelado). Mesmo os direitos humanos são levantados no embates entre Margaret e a mãe de John, revelando também, em 1855, o início das leis sanitárias, que começaram a obrigar os industriais a “queimarem sua fumaça”. E eles se opõem a isso. Lembre-se que o primeiro Public Health Act inglês é de 1848, mesmo ano de publicação do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels.
Também diferentemente de Engels, Margaret não vê as classes sociais em luta: “são classes dependentes uma da outra em todos os sentidos possíveis e que, ainda assim, veem os interesses da outra como opostos aos seus próprios interesses. Nunca vivi antes num lugar onde há dois grupos de pessoas que tentam derrubar-se mutuamente”. Em outras palavras, nada de lutas de classes mas convivência pacífica entre elas. Apreciando as profissões cultas (“learned professions“, ou seja, teologia, direito e medicina), Margaret deixa claro que não gosta de “negociantes” (“shoppy people”) e, no capítulo 6, chama os industriais de comerciantes (“tradesmen”). Ao que seu pai retruca dizendo que são diferentes. Margaret pergunta: “São mesmo? Aplico esse termo a todos aqueles que têm algo tangível a vender”.
O ponto alto da ação ocorre no capítulo 22, quando Margaret recebe uma pedrada na testa ao defender o industrial John com seu próprio corpo, durante uma manifestação dos trabalhadores da fábrica têxtil dele, por melhores salários. É uma greve que estoura exatamente no meio de um jantar na casa de John, em que ela está. Cabe observar que a fábrica – “imensa fábrica cheia de janelas” – fica ao lado da residência dos Thornton – “elegante casa de pedra” -, no mesmo imóvel, e há uma discussão acerca da fumaça e do barulho desagradável, algo que o Estatuto da Cidade chamará de “proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes”. Concordando com Margaret, diz a irmã de John que ali “há um cheiro contínuo de vapor e óleo das máquinas, e o barulho é ensurdecedor”. Porém, a severa mãe deles retruca: “eu já ouvi barulho ainda mais ensurdecedor que é chamado de música” (“I have heard noise that was called music far more deafening”). E, continua, “o murmúrio constante dos operários não me incomoda mais do que os zumbidos de uma colméia”.
Além da Revolução Industrial, as relações capitalistas que se estabeleciam é que ganham realce no longo texto. Não é, pois, por mero acaso que Margaret só se resolva com John no último capítulo, quando ela está rica por ter recebido uma herança e ele pobre. Ela se tornará proprietária do próprio imóvel onde se localiza a fábrica e, assim, será ela a dar a última palavra a respeito do relacionamento dos dois, não podendo ser acusada de ter casado com ele por dinheiro ou por interesse, algo que jamais aceitaria.
A tradução de Carlos Duarte e Anna Duarte é correta e fluente. Porém um detalhe arquitetônico do capítulo 2 revela um pequeno problema que precisa ser observado. A tradução diz: “Margaret era capaz de parar de falar abruptamente para ouvir os pingos da chuva sobre a cobertura em arco da janela”. Esta “cobertura em arco” é, no original, uma “little bow-window” que é uma janela saliente que se projeta para fora do corpo do edifício estando associada à arquitetura vitoriana. A projeção da janela terá uma cobertura onde a chuva bate – e faz o barulho que atrapalha a sensível Margaret.
Mas isto não é nada que prejudique a leitura de um romance importante, muito representativo de uma época histórica – e que vê a classe operária inglesa, em plena Revolução Industrial, a partir de uma perspectiva humanitária e, no direito à igualdade, quase religiosa. Além disso, a partir de olhar feminino da autora e de sua corajosa protagonista. Assim, depois da cena da pedrada, Margaret não se ressente: “Se evitei um ataque, uma ação cruel e violenta que pudesse ter sido cometida, fiz o trabalho de uma mulher” (“I did a woman’s work”).
sobre o autor José Roberto Fernandes Castilho é professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual de São Paulo – FCT Unesp.