Em uma antiga casa no interior da França, vemos uma linda mulher negra, cantando uma peça clássica em alemão. Vestida como uma indiana, ela canta sentada em posição de lótus sobre uma mesa na qual jaz o corpo morto de um velho homem de semblante sereno. Essa mulher é ninguém menos que Barbara Hendricks, a formidável soprano americana formada na prestigiosa Julliard School of Music de Nova York, onde foi aluna de Maria Callas.
Cidadã naturalizada da Suíça, onde vive desde longa data, Barbara Hendricks interpreta a si mesma neste filme. Vemos, portanto, uma afro-americana, cidadã suíça, vestida e sentada como uma indiana, velando um corpo na França, entoando uma música alemã. É importante resgatar essa síntese, pois ela consiste no primeiro indício da diversidade cultural, conceito que permeia todo o decorrer da história.
O corpo que Barbara Hendricks está velando é de um respeitado professor universitário, francês de origem judaica, que deixa um casal de filhos. A filha, interpretada pela francesa Juliette Binoche, chama-se Ana e é moradora da Inglaterra; seu meio-irmão, interpretado pelo israelense Liron Levo, chama-se Uli e é um militar de Israel.
Para ir ao encontro da meia-irmã e do pai morto, Uli viaja em um trem onde “fica” (para ser mais informal) com uma mulher palestina. Numa cena memorável, o fiscal do trem, conferindo os passaportes e inquirindo as nacionalidades, manifesta brutalmente sua incredulidade diante do casal formado por um judeu israelense e uma palestina. Mas Uli, que na vida militar defende o que considera ser o território de Israel na faixa de Gaza, não vê qualquer obstáculo para ficar com a mulher palestina, e a recíproca é verdadeira. Ambos, portanto, exercitam separar a questão política da vida sentimental e cotidiana, consciência que é uma tônica neste filme.
Ao encontrar Ana, Uli é calorosamente recebido pela meia-irmã, mas não tarda a perceber que ela está vivendo um retrocesso psicológico diante da morte do pai. Sim, pois Ana está se comportando de modo nitidamente infantil. A propósito, é justo notar, Juliette Binoche está tão inteira neste papel, que Ana chega a irritar com sua infantilidade, tão escapista quanto desrespeitosa. Sendo um filho dedicado e meio-irmão solidário, Uli tira por menos o comportamento da irmã, e a ajuda a conduzir-se no difícil momento dos preparativos para sepultar o pai, e nos desdobramentos legais da situação.
Crendo que seu pai não deixara testamento, Ana forja uma carta legando tudo em nome de seu meio-irmão. Ao apresentar esse falso documento à advogada do pai, em companhia de Uli, Ana recebe a notícia de que ele deixara tudo à sua única neta. Até então um segredo só de Ana, essa menina é a filha que ela teve na adolescência, durante uma experiência de intercâmbio em Israel. Tendo desde então abandonado a menina, Ana vê-se diante da exigência testamental de ir ao encontro da filha e entregar-lhe a herança do avô (sem o conhecimento de Ana, seu pai tentou, em vida, recompensar a neta pela assistência que a mãe lhe negara, visitando-a em Gaza e mantendo com ela uma assídua correspondência).
Ana, a princípio, reage também com infantilidade à revelação que lhe é feita pela advogada. Mas esta, mulher madura, interpretada pela grande Jeanne Moreau, serenamente diz à Ana que ninguém ali está lhe cobrando por seu passado. Com mais essa lição de imparcialidade, o filme nos conduz a viajar com Ana para a Faixa de Gaza.
Iniciando a viagem com o meio-irmão militar, dele sendo separada à força logo no desembarque em Israel, Ana enfrenta todos os percalços de uma viagem para uma área de conflito. Finalmente conseguindo adentrar a Faixa de Gaza, ela peregrina pelo deserto até encontrar sua filha.
Não raro, quando uma pessoa sabe-se devedora de alguém, por ter-lhe mentido ou feito outro mal, comporta-se de modo agressivo ou defensivo diante da pessoa a quem fez o mal. O algoz, portanto, trata a vítima como se ela é que fosse a culpada, em uma clara inversão de valores. Isso, no entanto, não acontece neste filme, pois Ana, sabedora da sua dívida para com a filha abandonada, age exemplarmente diante do caso: aproxima-se em silêncio da menina e espera que ela esboce uma reação, receptiva ou negativa.
A filha, sensivelmente interpretada pela jovem atriz israelense Dana Ivgy, custa a reconhecer a mãe, que até então só vira em antigas fotografias mostradas pelo avô. Encabulada, a menina aproxima-se aos poucos de Ana, permitindo também o contato dela, sem lhe fazer nenhuma cobrança pelo passado, sem lhe imputar qualquer culpa, como era de se esperar neste filme que tudo contempla com uma sábia perspectiva de futuro.
O encontro de mãe e filha é momento mais bonito do filme, uma verdadeira redenção. A partir daí, o que se vê é a convivência de Ana com o cotidiano da filha, que leva a mãe a amadurecer profundamente.
Os espectadores também amadurecerão. Acompanhando o cotidiano de mãe e filha, em Gaza, eles verão israelenses, liderados por Uli, tio da menina, defendendo o que pensam ser seu território, enquanto palestinos tentam manter sua ocupação e árabes tentam entrar na área. No entanto, em momento algum, a plateia notará qualquer juízo de valor a respeito desses três povos, nem por parte do roteiro, nem por parte da direção. Eis o grande mérito deste filme: sua imparcialidade, não somente ao mostrar as visões israelenses, judias, árabes, e ocidentais, mas, sobretudo, ao legar, em absoluto, todas as conclusões ao público.
notas
Disengagement. Direção de Amos Gitai, produção de Nicolas Blanc, Laurent Truchot e Pierfrancesco Fiorenza. Drama, França/Israel, Studio Canal, 2007, 115min. Elenco: Juliette Binoche, Liron Levo, Jeanne Moreau.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em arquitetura na área de teoria e projeto (UFRJ, 2003) e doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada (UFPE, 2008). É arquiteta da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.