Gio Ponti (1891-1979) além de prolífico arquiteto, foi protagonista no surgimento do design Italiano; fundador e editor da revista Domus e Stile, professor do Politécnico de Milão, envolveu-se também diretamente em exposições como a Trienal de Milão. Com trabalhos permeando preceitos ora racionalistas, ora clássicos e/ou vernáculos, Ponti é figura polêmica e muitas vezes contraditória. Seu trabalho permaneceu excluído ou pouco referenciado da maioria dos relatos significativos da arquitetura moderna no século 20, tendo sido retomado apenas mais atentamente a partir da década de 1980. Ponti, de fato, ao defender uma perspectiva mais pragmática e menos esquemática da realidade, interpreta a seu modo a modernidade. Em seu universo, a “fantasia” é elemento fundamental e catalisador, comparecendo em todas as escalas de seu projetar; nada mais atual e merecedor retomar a obra do mestre nos dias de hoje.
Ao percorrer todos os aspectos do projetar Pontiano, a mostra – curada por Olivier Gabet (Diretor geral do Museu de Artes Decorativas), Sophie Bouilhet-Dumas (Bouilhet-Dumas Studio), Salvatore Licitra (Gio Ponti Archives) e Dominique Forest (curadora geral do Museu de Artes Decorativas), faz jus a máxima propagandeada por Ernesto Nathan Rogers na década de 1950: “da colher à cidade”. Primeira retrospectiva na França do trabalho de Gio Ponti, cerca de 400 peças ocupam duas alas laterais e a nave central do museu de Artes Decorativas de Paris, em sua magnifica sede na ala Oeste do Palais du Louvre. Os visitantes são inicialmente apresentados ao universo de Ponti através de uma reprodução da fachada da catedral de Taranto – no alto da escadaria de acesso um plano perfurado de tripla altura insinua o que está por vir.
As peças expostas – muitas inéditas ao público e pertencentes a coleções privadas, estão organizadas em três sessões distintas com cenografia assinada pelo estúdio Wilmotte & Associès. Na nave central, um percurso cronológico leva o visitante a percorrer das décadas de 1920 a 1970 a evolução do trabalho do arquiteto/designer. Ancorado nos projetos arquitetônicos marcantes de cada período e aproveitando o pé direto, esta seção inclui cenários dispostos em pedestais com mobiliário, objetos decorativos, pôsteres, projeções de fotografias e luminárias suspensas. Nesta secção encontram-se ainda desenhos e maquetes originais pertencentes aos arquivos do Centro Studi e Archivio della Comunicazione – CSAC da Universidade de Parma, combinadas a fotografias do arquivo Ponti. Ao longo de uma das paredes laterais, reproduções das capas da revista Domus remontam parte de sua produção editorial. Esta ala ainda inclui a projeção de filmagens de entrevistas históricas com a família e o próprio arquiteto. Já a ala vizinha ao jardim das Tulherias abarca a obra de Ponti designer: objetos decorativos, cerâmicas, louças e talheres, maçanetas, tecidos e vestimentas para teatro, além de suas famosas cartas se apresentam em um percurso todo revestido de preto entremeado por vitrines iluminadas e pensamentos do mestre.
Na ala faceando a Rue de Rivoli uma visão do projetar integral de Ponti é apresentada: seis ambientes de cada um dos projetos mais representativos de cada década estão dispostos como cenários prontos a serem habitados. Iniciando pelo estar da casa L´ange Volant, passando pela sede do edifício da Montecatini – projetado a partir de um modulo de escrivania; os visitantes são ainda conduzidos aos interiores do Palazzo Bo na Universidade de Padova, aos azuis do Hotel Parco dei Principi em Sorrento– que até hoje recebe hóspedes, e ao apartamento da família Ponti na Via Dezza em Milão, com sua característica “janela mobiliada”. Por fim, o percurso termina na magnifica casa-museu Villa Planchart, com mobiliário e louça originais trazidos especialmente pela Fundação Planchart em Caracas. Destaque ainda para a colaboração de Italo Lupi, responsável pelo projeto gráfico da mostra.
Por ocasião da inauguração realizou-se ainda, no dia anterior à abertura, uma recepção na casa que foi o primeiro projeto de Ponti no exterior – L´Ange Volant em Garches, nos arredores de Paris. De inspiração neoclássica e conservada cuidadosamente por seus proprietários, esta reúne alguns dos princípios de Ponti destinados à reformulação da filosofia do “habitar moderno,” representado na forte referência à vida e cultura italianas através do grande espaço central de dupla altura para a reunião familiar.
Por uma chave de leitura
O livro-catálogo Gio Ponti Archi-Designer, promovido pelo museu de Artes Decorativas e editado por Sophie Bouilhet-Dumas, Salvatore Licitra e Dominique Forest, vem a se somar a duas das mais importantes obras cronológicas que abrangem panoramicamente o universo pontiniano(1). No prefácio e introdução, respectivamente Olivier Gabet, diretor do museu e Sophie Bouilhet-Dumas, uma das curadoras da exposição, abordam as relações de Ponti com a França e a importância de demonstrar sua obra neste país, primeiro a receber internacionalmente um projeto do mestre. Somam-se a esse os artigos de Ugo La Pietra e Fulvio Irace. Especialistas em Ponti, os autores destacam em seus textos alguns dos aspectos fundamentais do operar pontianiano. Finalmente, Salvatore Licitra, neto de Ponti e responsável pelos arquivos Gio Ponti em Milão, aborda a atualidade do trabalho multifacetado de Ponti como fonte referencial. Licitra destaca a importância da visão da totalidade da obra para o seu correto entendimento.
Ressalta ainda que a disposição cronológica do texto tem função organizacional e convida os leitores a lançar mão daquilo que ele chama de “chave interpretativa” de leitura. Para Licitra, se realmente quisermos “capturar as razões por trás [das] criações [de Ponti]”, devemos nos aproximar de uma visão onde cada trabalho individual do mestre irá fornecer o elementos necessários para relacioná-los a outros, criando um “sistema de rede de referências, formas, arquétipos e termos”, gerando uma leitura “genuinamente pontiana.” E é neste ponto que, diferentemente das monografias anteriormente citadas, vinte e seis autores familiarizados com a obra de Ponti contribuem criticamente abordando tópicos específicos ao longo das décadas. Com o título de Gio Ponti, Archi-designer, a publicação de 320 páginas com edições em francês e inglês inclui, entre as contribuições estrangeiras, um episódio brasileiro (2).
Diálogos ítalo-brasileiros
Recentemente, um pequeno recorte da produção de Ponti foi apresentado na exposição internacional itinerante “Vivere alla Ponti”. Promovida pela indústria de moveis italiana Molteni, a mostra foi apresentada em São Paulo no Museu da Casa Brasileira em parceria com o Instituto italiano de Cultura em 2018. No entanto, a presença do arquiteto em terras brasileiras ainda é pouco divulgada; seu nome é frequentemente relacionado ao de Lina Bo Bardi, sua antiga colaboradora antes de mudar-se para o Brasil em 1946 com seu marido, velho amigo de Ponti, Pietro Maria Bardi. Ponti, que visita o Brasil em 1952, irá desenvolver especial carinho pelo país, declarando por várias vezes sua admiração por Oscar Niemeyer, com quem irá manter uma correspondência amigável ao longo dos anos, mas isto já é outra história...
A seguir, transcrição da introdução traduzida do artigo Ponti au Bresil de, Angelica Ponzio (3):
“Mas acima de tudo também estamos felizes, se estivermos no fatal, eu diria, inevitável classicismo de nossas expressões arquitetônicas [...] saberemos como nos livrar da prisão dos “pilares e vigas” e caminhar em direção aos recursos árduos do concreto armado [...] nos cumprimentaremos, observando, neste maravilhoso campo, um “diálogo arquitetônico”, brasileiro de um lado, italiano do outro” (4).
Gio Ponti
As relações de Gio Ponti com a América Latina podem ser traçadas a partir de meados dos anos 1930, através de um projeto não realizado na Argentina; mas será durante a década de 1950, quando sua carreira internacional decola, que ele irá desenvolver laços duradouros com o continente. Mais lembrado por sua obra-prima – a Villa Planchart em Caracas, suas incursões Latino-americanas incluíram duas breves visitas ao Brasil. No início de 1952, Ponti recebe em Milão um convite para ensinar, ainda naquele ano, uma disciplina de design de interiores na recém-formada Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo – USP. Durante sua estada no Brasil, no entanto, Ponti é também contratado para projetar duas edificações: a casa do Dr. Taglianetti e o Instituto de Física Nuclear do novo campus da USP. Naquela ocasião ele ainda irá participar da licitação para a sede do Centro ítalo-brasileiro – o Edifício Itália, em parceria com o arquiteto brasileiro Luiz Contrucci. Embora não construídos e pouco referenciados, esses projetos serão fundamentais no auxílio da consolidação de alguns dos princípios projetuais do arquiteto. Ponti irá manter contato com seus amigos e conhecidos no Brasil até os seus últimos anos, chegando a planejar, juntamente com Pietro Maria Bardi, uma exposição sobre a totalidade de sua obra no Museu de Arte de São Paulo – Masp, o que infelizmente, nunca irá ocorrer.
notas
NA - Exposição “Tutto Ponti, Gio Ponti Archi-Designer”, Museu de Artes Decorativas, Paris, 19 de outubro de 2018 a 05 de maio de 2019. Comissariado geral Olivier Gabet. Curadoria Dominique Forest, Sophie Bouilhet-Dumas e Salvatore Licitra.
1
LA PIETRA, Ugo. Gio Ponti. Nova York, Rizzoli, 1988; LICITRA, Lisa. Gio Ponti. Londres, Thames and Hudson, 1990.
2
PONZIO, Angelica. Ponti au Bresil/Ponti no Brasil. In BOUILHET-DUMAS, Sophie; FOREST, Dominique; LICITRA, Salvatore (Orgs.). Gio Ponti Archi-designer. Milão, Silvana Editoriale, 2018, p. 160-163.
3
PONZIO, Angelica. Ponti au Bresil/Ponti no Brasil. In BOUILHET-DUMAS, Sophie; FOREST, Dominique; LICITRA, Salvatore (Orgs.). Gio Ponti Archi-designer. Milão, Silvana Editoriale, 2018, p. 160-163.
4
PONTI, Gio. Stile di Niemeyer. Domus, n. 278, Rozzano, 1953, p. 8-9. Apud PONZIO, Angelica. Gio Ponti au Brèsil / Ponti in Brazil. In BOUILHET-DUMAS, Sophie; FOREST, Dominique; LICITRA, Salvatore (Orgs.). Gio Ponti Archi-designer. Milão, Silvana Editoriale, 2018, p. 160.
sobre a autora
Angelica Ponzio é professora adjunta (FA UFRGS), pesquisadora e colaboradora (Propar/UFRGS). Obteve doutoramento (2013) com período sanduiche no Politecnico de Milão. Autora do capitulo “Gio Ponti au Brèsil / Ponti in Brazil” da publicação Gio Ponti Archi-designer.