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Texto curatorial da exposição “O que os olhos alcançam”, com fotografias de Cristiano Mascaro, de autoria de Rubens Fernandes Junior, curador da mostra.

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FERNANDES JUNIOR, Rubens. O que os olhos alcançam. Exposição do fotógrafo Cristiano Mascaro. Resenhas Online, São Paulo, ano 18, n. 210.01, Vitruvius, jun. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.210/7375>.


“Para mim, em sua essência, a fotografia é algo
construído com o olhar”
Cristiano Mascaro

A exposição O que os olhos alcançam, de Cristiano Mascaro, contempla sua produção mais recente e também mostra um pouco de sua longa história com a fotografia. São mais de 50 anos dedicados a ela, e por isso mesmo a celebração de sua trajetória realiza-se com novas imagens, nunca exibidas publicamente, sem deixar de resgatar alguns de seus momentos mais significativos. Afinal, é sempre bom lembrar seu percurso pontuado por momentos geniais, mas também por muito trabalho, perseverança e motivação.

Sem grandes concessões, ele pavimentou seu caminho na arte contemporânea a partir de escolhas e atitudes absolutamente sintonizadas com seu desejo de produzir uma fotografia diferenciada e comprometida politicamente. Com certeza conseguiu. Basta olhar retrospectivamente para percebermos a importância que suas imagens adquiriram na história da fotografia brasileira das últimas décadas. Cristiano Mascaro consegue propagar sua sofisticada arte em diferentes níveis de recepção e ter um reconhecimento que extrapola nossas fronteiras geográficas.

O que os olhos alcançam dá evidências dessa internacionalização. Tóquio, Doha, Paris, Coimbra, Bolonha, Gdansk, Lisboa, Salamanca, Palermo, Nova York e muitos outros lugares foram flagrados por esse olhar ávido por novidades e esse desejo insuperável de viajar e fotografar, conhecer pessoas, locais distantes e isolados, muitas cidades, grandes avenidas e ruelas esquecidas, castelos e catedrais, edificações históricas e contemporâneas, indistintamente. O jovem arquiteto que se encantou com Henri Cartier-Bresson, Robert Frank e as páginas da revista Life na Biblioteca da FAU USP criou muitas oportunidades para se deslocar e fotografar, documentar as edificações de grandes arquitetos e construções anônimas, retratar e dar visibilidade ao cidadão anônimo, particularizar detalhes e criar vistas panorâmicas.

A ênfase na seleção de suas fotografias para esta mostra ocorreu exatamente nessa direção, ou seja, mostrar que Mascaro nunca se conformou em delimitar seu território e sempre buscou ampliá-lo para lugares desconhecidos e para as metrópoles. Nesse sentido, O que os olhos alcançam representa tanto seu deslocamento pelo mundo quanto suas andanças mais ou menos aleatórias em função das oportunidades e de uma vontade inominável de registrar. Olhar para suas imagens é perceber uma mesma intensidade visual, seja em Carapicuíba, Tóquio, Algarve, seja no deserto do Catar. Não há limite para sua aguçada percepção. O que vemos é o resultado de um trabalho sistemático e solitário, que envolve técnica, conhecimento e sensibilidade.

É interessante olharmos para os diferentes núcleos criados especialmente nesta exposição para perceber a coerência visual de sua trajetória. Tudo é registrado com a mesma eloquência. Sua busca ocorre muito mais pelo inusitado diante de si do que por qualquer forma de poder. Para ele, “fotografar é descobrir coisas de um jeito que nunca vi”. O registro noturno de uma igreja imponente em Bolonha é tão importante quanto o do interior de uma casa em Cuiabá; a fábrica abandonada em Lodz é tão imponente quanto a escultura de Richard Serra; o retrato do varredor de rua é tão digno quanto o projeto arquitetônico de Le Corbusier. Não há subterfúgios em sua fotografia, apenas uma beleza manifesta no jogo de luz e sombra diante de um cenário que toca fundo seu desejo de criar.

Ville Savoye, Poissy, França. Arquiteto Le Corbusier
Foto Cristiano Mascaro, 2018

Cristiano Mascaro é também nosso fotógrafo de cidades. Ele trabalha a memória urbana com inquietante precisão e complexidade. Seu primeiro cenário foi São Paulo, onde aprendeu a harmonizar luzes, espaço urbano, passeantes, sombras e outras variáveis que compõem sua fotografia. Ele desenvolveu uma espécie de poética da paciência. Após essa experiência, ampliou seu olhar para as cidades brasileiras e outras metrópoles da Europa e dos Estados Unidos. É sempre um desafio aos olhos entender sua fotografia, marcada não pela repetição, mas pela poesia e pela surpresa.

A cidade é um cenário que atrai e fascina o artista. Observador do cotidiano, estuda atentamente a luz para esperar o momento exato em que uma centelha qualquer ilumine o instante e traga o elemento surpresa que diferencia sua fotografia – quase sempre documental, às vezes conceituai, mas sempre com um olhar que busca sua experiência estética. Uma ilusão especulativa do artista que busca registrar o que não existe.

O que os olhos alcançam é uma exposição que, sem ter caráter retrospectivo ou histórico, celebra seus 50 anos de atividade fotográfica profissional. A intenção foi mostrar panoramicamente seu percurso e, acima de tudo, tornar pública sua produção mais recente, desenvolvida nos últimos anos. Dos primeiros tempos atuando no fotojornalismo, somam-se a experiência com os retratos, a produção mais intimista e os trabalhos comissionados, a fotografia ensaística e a documental, até chegar à maturidade, em que sua marca autoral é inequívoca. Como poucos, ele sabe criar uma atmosfera envolvente, um diferencial poético em sua refinada imagem em preto e branco.

É esplêndida a maneira como Cristiano Mascaro revela as construções arquitetônicas. Ora numa amplidão sem fim que nos comove, ora evidenciando as formas de edifícios ou de conjuntos de arranha-céus, criando texturas e contrastes entre luz e sombra. Isso tudo mostra seu desejo de simplesmente capturar alguma beleza na intrincada trama do espaço urbano. Um olhar sempre apurado que denota sua permanente inquietação, que vai propondo novos caminhos para sua investigação sobre as edificações e tudo o que seus olhos alcançam. A fotografia é uma possibilidade contemplativa de estimulara percepção do outro para a essência das coisas e do cotidiano aparentemente banal e vazio. Como ele afirma: “Meu desafio é surpreender pela desimportância”.

Sua obra é primorosa e consistente. Configura-se como uma raridade na produção fotográfica brasileira justamente pela coerência e pela consciência crítica com que foi executada. Claro que isso não aconteceu casualmente, mas, desde o dia em que o jovem estudante de arquitetura se emocionou diante do livro Images à Ia Sauvette, com fotografias do consagrado Henri Cartier-Bresson, nunca mais deixou de pensar o mundo através das imagens. Nós sabemos a importância dos livros; no entanto, nesse caso, o livro de imagens tornou-se o agente detonador de um processo irreversível de acertada escolha profissional.

As fotografias de Cartier-Bresson e, mais tarde, as de Robert Frank, que tanto encantaram o jovem Cristiano Mascaro, foram responsáveis por sua decisão de orientar seus interesses pessoais, suas aspirações mais íntimas e suas necessidades de participação sociocultural através da imagem. Esse impulso pessoal provocou as primeiras sensações de descoberta da fotografia como um mundo fascinante, como uma forma expressiva de fixar o universo da vida cotidiana – política e social.

Fundação Serralves, Porto, Portugal. Arquiteto Álvaro Siza
Foto Cristiano Mascaro, 2016

Essa escolha alterou completamente seu percurso. Inicialmente, a família apostava na medicina, mas ele optou pela arquitetura. E, durante suas escapadas para a biblioteca da FAU USP fugindo das aulas mais técnicas do curso, descobriu a fotografia. “Fiquei maravilhado com a possibilidade de fotografar de forma mais leve e despretensiosa, com mais grandeza e emoção, sem registrar o horror da humanidade e a violência do cotidiano”.

O aprendizado foi imediato e estimulado por alguns de seus professores, entre os quais Benedito Lima de Toledo, com quem revelava seus filmes em sua casa, e João Xavier, que emprestou sua câmera Asahi-Pentax para Mascaro registrar suas primeiras viagens — Bolívia, Peru, Salvador, Ouro Preto. Nesse momento, de ruptura pessoal e descobertas, eles apostaram em seu talento, certos de que produziria boas fotografias. Podemos dizer que essa iniciação entusiasmada foi fundamental para sua prática e seu desenvolvimento criativo.

O interesse demonstrado e sua rápida evolução foram decisivos para despertar sua curiosidade e compreender a criação como parte de um processo mais amplo, que envolve o conhecimento técnico, o fazer artístico e a necessidade de estabelecer conexões e livres associações para concretizar uma imagem. A fotografia é sempre o resultado de uma rede complexa de acontecimentos e experiências vivenciadas.

Sua decisão ficou mais acertada após ser premiado num concurso universitário de fotografia em 1967, com um júri muito qualificado – Fernando Lemos, João Xavier e Cláudia Andujar. Mais tarde, com a coragem de um principiante, apresentou seu portfólio a Cláudia Andujar, que sugeriu seu nome para integrar a equipe inicial da revista semanal Veja, projeto da Editora Abril, cujo primeiro número foi publicado em 11 de setembro de 1968, num momento político inflamado, meses antes do famigerado Ato Institucional n° 5, em plena ditadura militar.

A experiência no fotojornalismo foi fundamental para consolidar a coragem e a flexibilidade exigidas a cada reportagem. Era preciso enfrentar e solucionar problemas e dificuldades que surgiam a cada nova experiência. Aprendeu na lida do dia a dia que uma boa fotografia só existe se o acesso ao evento for irrestrito e a autoconfiança se sobrepuser a qualquer instabilidade emocional. Nessa breve trajetória, podemos rememorar um pouco sua história na revista: fotografias de Luiz Gonzaga; o perfil do bicheiro Natal da Portela; o enterro do general Barrientos, na Bolívia; a reportagem com Zé Dirceu comandando uma manifestação na Avenida Ipiranga; funeral de Charles de Gaulle, em Paris; os incêndios dos Edifícios Andraus e Joelma, duas tragédias paulistanas; entre muitas outras que se tornaram emblemáticas.

Palácio do Planalto, Brasília, Brasil. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Cristiano Mascaro, 2010

Entre 1968 e 1975, Cristiano Mascaro trabalhou em duas ocasiões para a revista Veja, morou em Paris, fez sua primeira exposição na Enfoco – Paisagem Urbana, em 1975 –, desenvolveu seu primeiro ensaio de fôlego – Brás –, em parceria com fotógrafo Pedro Martinelli, e iniciou sua função na FAU como coordenador responsável pelo laboratório de recursos audiovisuais, onde permaneceu por 14 anos. É muito interessante verificar hoje que sua trajetória foi pontuada por inúmeros desafios, que estimularam e ampliaram seu exercício diário de ver e fotografar.

Ver não é tarefa fácil neste mundo sobrecarregado de imagens fúteis e superficiais. Atualmente, fotografar é buscar a singularidade diante do excesso de estímulos visuais. Mascaro consegue fugir de tudo isso e praticar uma fotografia absolutamente diferenciada. Atento e avesso a qualquer modelo preconcebido, assumiu há mais de 30 anos a difícil tarefa de ser um fotógrafo independente – viver com intensidade muitas aventuras, viajar sempre que possível, conhecer pessoas, fantasiar a realidade e desvendar situações aparentemente banais. Por isso mesmo ele defende que "a essência da fotografia é construída com o olhar".

A mostra organiza-se como se fosse uma instalação, mas na verdade sua sintaxe está centrada em diferentes conjuntos que, articulados, nos dão a exata dimensão de sua obra – complexa e multifacetada. Nesse aparente labirinto expográfico, nós nos deparamos com a grandeza imagética de Cristiano Mascaro. Não foi nada fácil mapear esse vasto universo visível criado por sua imaginação prodigiosa por um forte senso da forma e respeito total pela luz e pela sombra. A opção foi explorar algumas vertentes de seu trabalho e pontuar seu percurso. Para isso, a proposta expositiva propicia um mergulho na longa e diversificada carreira e, pela primeira vez, mostra um conjunto significativo de imagens realizadas nos últimos anos. Uma experiência estética surpreendente.

Rigor, sofisticação e simplicidade: essa é a tríade que comanda sua fotografia desde sempre. No início era mais intuitiva, mas sempre com uma capacidade perceptiva incomum. Por exemplo, sua famosa imagem da escada rolante da Galeria Presidente, no centro histórico da cidade de São Paulo, em 1983, foi uma tomada às cegas com sua Hasselblad, formato 6X6 cm, disposta num ângulo quase inacessível, mas previamente percebida como uma cena deslumbrante. Na época, iniciava suas andanças pelo centro histórico, que pretendia registrar através das pequenas coisas, de retratos e de fragmentos ainda pouco valorizados visualmente, dos movimentos imprevisíveis dos pedestres. Mascaro lembra que essa fotografia foi "a primeira aparição de cidade que não fosse o clichê da cidade" e abriu inúmeras outras possibilidades de sentir e refletir a metrópole e as pessoas que por ali circulam e trabalham.

No campo das visualidades contemporâneas, sua obra destaca-se pela clareza e pela concisão. Somos estimulados a imaginar mais do que vemos na fotografia, que geralmente desperta uma espécie de prazer inquieto. Por exemplo, é incrível contemplar a obra Fortaleza de Sagres, Algarve, Portugal. Estar diante dela – que estimulou a criação do nome da exposição – é um exercício intenso de interação, pois nos deparamos com uma sólida construção em primeiro plano que avança sob um céu plúmbeo aparentemente sombrio à beira de um mar que se esconde do lado direito e avança no infinito. Tudo parece distante, mágico e desconhecido. Uma imagem que exige nossa reverência.

The Shard, Londres, Inglaterra. Arquiteto Renzo Piano
Foto Cristiano Mascaro, 2015

De alguma forma, Mascaro consegue, com sua fotografia, clássica e estranhamente bela, provocar surpresas. O espanto, o silêncio e a luz certeira unem-se em intrigantes situações. Às vezes pelas variações graduais dos tons do preto e branco tecnicamente perfeitos, outras pela espessura e transparência, e outras pelas enigmáticas linhas sinuosas, radiais, ortogonais, diagonais, iluminadas ou não, que se cruzam e movimentam a imagem. Os volumes robustos das construções e as diferentes texturas também revelam as afinidades e consonâncias misteriosas do visível. Essas aproximações fecundas têm a finalidade de prolongar nossas sensações e atestar sua relação afetiva com as cidades que fotografa.

Parte de sua investigação permanente sobre o cotidiano elegeu a arquitetura e sua presença no espaço como o principal tema de seu trabalho. Diante de sua produção nessa área, é impossível não pensar o documento fotográfico como memória. A imagem como um fragmento possível do mundo visível salta à vista com incrível nitidez e credibilidade, e seu inventário nessa vertente é potente e qualificado graças a sua proximidade e ligação afetiva com os arquitetos e seus projetos. O tempo fotográfico recompõe o tempo da memória, alheio ao tempo cronológico. Suas fotografias são incríveis justamente porque nos permitem idealizar movimentos incríveis. Na verdade, estamos diante de um tempo que nos imobiliza.

É interminável sua lista de obras que homenageiam seus arquitetos preferidos – Oscar Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha, Villanova Artigas, Afonso Eduardo Reidy, Tadao Ando, Alvaro Siza, Carrilho da Graça, Le Corbusier, entre muitos outros. Mascaro é um dos poucos que sabem capturar o fantástico no "real" sob uma implacável curiosidade, mola propulsora do ato criativo. Ele consegue condensar a beleza em qualquer lugar do mundo e ainda envolver o leitor nos mais significativos aspectos paisagísticos e históricos. Em seu trabalho, há certamente uma filiação com a fotografia moderna que pressupõe reduzir a imagem ao essencial – linhas geométricas acentuadas, diagonais rompantes, equilíbrio formal, jogo elaborado entre o preto e branco, precisão e rigor no ato fotográfico.

Sua produção mais recente – Tóquio, Porto, Covilhã, Varsóvia, Gdansk, Cracóvia, Nápoles, Vicenza, Siracusa, as esculturas de Richard Serra no Catar, São Francisco e Nova York – parece ser um prazeroso exercício de alumbramento e transcendência. Cristiano Mascaro não se cansa de dizer que gosta, e muito, de viajar, fotografar e descobrir em suas andanças, vagas e indeterminadas, o melhor momento para o registro. Na verdade, ele assumiu esse inquietante perambular pelas ruas das cidades em busca de um instante que possa gerar algum impacto na recepção como uma proposta estimulante de viver intensamente o presente – contemplar a imagem sem deixar o pensamento escapar para o passado nem para o futuro.

O que os olhos alcançam resume uma vivência incomum na fotografia brasileira. Cristiano Mascaro nos permite estar diante do inusitado – o extraordinário no cotidiano, a combinação sofisticada das geometrias e o movimento sutil dos passeantes. Uma relação singular e afetiva, um desejo de transformar a crônica diária em investigação permanente. Há em suas imagens uma trama invisível, nem sempre perceptível, que nos obriga a estabelecer relações com as forças históricas, políticas e culturais.

Edifício Dentsu, Tóquio, Japão. Arquiteto Jean Nouvel
Foto Cristiano Mascaro, 2010

nota

NE – texto curatorial de O que os olhos alcançam, exposição individual de Cristiano Mascaro. Curadoria de Rubens Fernandes Junior, Sesc Pinheiros, São Paulo, 29 de março a 23 de junho de 2019.

sobre o autor

Rubens Fernandes Junior, professor da FAAP, é pesquisador e curador.

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