Tem me feito pensar, faz dois dias, Dor e Glória, de Pedro Almodóvar (1), em cartaz em São Paulo. Não vou falar sobre o filme, enquanto cinema nem de seu nó central, a questão da potência do desejo. Sublinho a importância dos objetos, das obras de arte e das cores em seus filmes.
A começar pela introdução, sequência de papeis marmorizados em movimento ondular, obra de Juan Gatti. Claro que o nome do diretor aparece sobre os vermelhos e brancos. Vermelho sempre foi A cor, aquela que, desde a Antiguidade, ocupa lugar central na economia cromática. O diretor se identifica com vermelhos e sua ambiguidade, o fogo, o desejo, o sangue e a destruição, e há uma gama complexa deles na película.
Depois são muitas as sequências que se podem ler a partir das cores, inclusive a cena da estação e a caverna/lar e sua luz branca que vem de abertura zenital mediada por grid.
Muito que observar, as roupas – a jaqueta de couro verde, momento da esperança da cura do protagonista. A pera verde, uma das famosas serigrafias de Enzo Mari na cozinha do ator (em Mulheres à beira de um ataque de nervos figurava a maçã vermelha da mesma coleção da empresa italiana Danese); muitos verdes contraditórios em toda a narrativa E também a miríade de objetos consagrados pela historiografia heroica do design moderno, entre os quais as poltronas de Gerrit Rietveld, uma delas estofada de veludo carmim (veludo: anátema para as vanguardas!) nesta operação tão cara ao diretor de fundir e confundir moderno e pós-moderno, transformando quase tudo em referências que negam o tempo maior, o tempo da história, mantendo-se em registro singular.
As obras, o apartamento todo, cada detalhe como a luminária de Gae Aulenti, ou a Eclipse de Vico Magistretti são o micro mundo do protagonista, que chega a dizer que investiu tudo que tinha naquele recanto do qual pouco sai. Em outro momento, quando o Guggenheim lhe envia carta solicitando uma tela de Pérez Villalta – pintor que retoma artistas do passado, citando-os em declaradas estratégias pós-modernas – nosso personagem recusa, pois não quer separar-se da obra. A arte que o cerca, o design dos objetos, a decoração tão cara a seu universo cotidiano, presente inclusive no lindo painel de azulejos, realizado pelo pedreiro na caverna/lar, é algo da esfera da necessidade, como se os objetos fossem próteses afetivas, se é possível falar assim.
Em diversas cenas, Salvador se senta em sua mesa de trabalho, e, por trás dele estão dois livros facilmente reconhecíveis: de Manolo Blahnik e de Ettore Sotsass. O fetiche dos pés e o designer-arquiteto-intelectual-artesão que esgarçou os limites do moderno e se encantou com os aspectos libertários do pós-moderno. Mas aí estão quase assinaturas de Almodóvar em reconhecer como legítimos aspectos prosaicos da vida cotidiana e suas implicações psicanalíticas e também neste reconhecimento de artistas que fizeram a passagem do moderno ao pós-moderno, mas que dificilmente podem ser submetidos a esquemas formalizados. O trânsito entre esferas artísticas dos últimos cinquenta anos está lá, em seleção não sectária.
Além de tudo, em Dor e Glória, vale a pena ver vários homens muito bem vestidos em suas roupas coloridíssimas, distantes da opressão dos men in black, visual tão caro aos arquitetos e às arquitetas.
nota
1
Dor e Glória (“Pain and Glory”, Universal Pictures, 2019, 1h53m). Direção de Pedro Almodóvar. Com Antonio Banderas, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Penélope Cruz.
sobre a autora
Ethel Leon é jornalista, pesquisadora, professora na área de história do design brasileiro e autora dos livros Memórias do design brasileiro, IAC – Primeira Escola de Design do Brasil, Michel Arnoult, design e utopia – móveis em série para todos e Design brasileiro – quem fez, quem faz.