Democracia em vertigem, filme de Petra Costa (1), está suscitando uma discussão acalorada. Antes de ser lançado, eram os minions e robôs que propuseram um boicote ao filme esquerdista. Depois de lançado foi a esquerda que se dividiu entre aqueles que se identificaram com o ponto de vista melancólico da diretora; os críticos de seu fracasso em assumir a vertigem na narrativa, tida como excessivamente coesa, didática ou cômoda; e os detratores do discurso em primeira pessoa de uma cineasta branca, de ascendência tradicional e, para alguns, um tanto ingênua.
Um amigo, Leandro Saraiva, que é do ramo, em sua leitura política do quadro retratado, salvo engano levantou duas questões a seu ver positivas a respeito da recepção ruidosa: não é fantástico que um debate tão amplo e intenso esteja se desenrolando a partir de um documentário? Seu eco internacional não seria também um elemento definidor de sua estrutura, vocação e potência?
Não vou disputar a análise desse filme. Não porque não seja crítico de cinema, nem porque – como se proclama nas redes sociais – ache por bem reafirmar meu direito sagrado a opinar sobre tudo e qualquer coisa. Mas o debate está animado demais para ficar de fora. E de cara confesso que gostei muito do filme, achei-o inteligente, tocante e necessário à resistência e à reflexão sobre o que estamos vivendo, apesar de todo o desconforto que tem me produzido esse passo a passo do golpe que não se fecha, como se não pudesse chegar ao fim, passar de vez para os anais da história.
Não me refiro exatamente às circunstâncias de sua difusão. Não resta dúvidas de que, produzido pela Netflix, acessível por streaming, exibido em inúmeros festivais e disponibilizado para downloads e projeções públicas de caráter não comercial, a sua fortuna foi amplificada a um patamar ao meu ver inexistente no cinema brasileiro. Mas se parte expressiva de suas virtudes vem da potência dos meios e estratégias de circulação, uma série de opções formais e narrativas parecem-me nutrir e alimentar-se de tais circunstâncias.
Uma delas tem sido muito observada – e criticada. O tom do narrador em off por vezes tido como personalista, confessional, ensimesmado, apocalíptico até, que atravessa o documentário de ponta a ponta, e que a certa altura se reconhece – para alguns, constrangedoramente – ser a voz da própria diretora. A ela some-se o rebatimento entre sua própria vida e o último ciclo democrático no país, nascidos ambos nos anos 1980, tal como enunciado nos primeiros minutos do filme. Ou entre as biografias de sua mãe e Dilma Rousseff, que nasceram em Minas no seio da burguesia, e que ainda jovens, no contexto do golpe de 1964, mergulharam na militância de esquerda, na luta armada e na clandestinidade e em todas as paixões, sofrimentos e heranças que isso implicou. Ou ainda, entre a história de sua família, ligada à poderosa construtora Andrade Gutierrez, e o comportamento de rapina da burguesia nacional, da Brasília de JK e dos militares de 1964 à Brasília de 2016. A suposta inflação do eu-lírico da diretora, sua incapacidade de afastar-se do biográfico, o timbre melódico de sua voz, a teriam impedido ao mesmo tempo de enxergar a real natureza do drama brasileiro e embarcar na vertigem que dele emana.
Talvez tenha aí boas questões para pensar. Mas a primeira coisa que me chamou a atenção foi justamente a elaboração exemplar desse jogo de rebatimentos no interior do filme. Sinuoso histórica e autobiograficamente, pleno de cortes e atalhos temporais entre a vida nacional e a vida individual, de justaposições entre materiais (e achados) jornalísticos e os arquivos e memórias familiares, obstinadamente garimpados, entre registros de terceiros e gravações pessoais, em nenhum momento temos dúvida do foco procurado: a democracia em vertigem, no limiar, em queda livre, sua agonia, sua salvação.
Ora, na última eleição, à medida que a inclinação para a extrema direita se enraizava no eleitorado, o que mais se ouvia nos meios de esquerda era a necessidade de cultivar a empatia, o comum, o diálogo, rompendo o abismo que parecia não parar de se cavar entre dois mundos cada vez mais hostis um ao outro. Do começo ao fim do filme, é essa cisão – de classe, de ideias, de valores, de sentimentos – na sociedade que está em cena, e ainda que o fio narrativo seja assumidamente fiel a um deles, o trabalho de escuta e sondagem do outro avança. Em uma das cenas finais, vemos uma faxineira do Palácio da Alvorada, após a queda da presidenta eleita, confessar nela não ter votado mas lamentar com a mesma sinceridade o desrespeito ao voto popular como demonstração de que a democracia no Brasil é uma farsa.
Fico me perguntando até que ponto o apelo ao pessoal e ao familiar, à história de vida, a opinião comum e aos afetos políticos no filme de Petra Costa não é exatamente uma de suas fraquezas, mas antes um vetor de aproximação à vertigem do real, ao estranho-familiar que nos ronda e aterroriza, à dificuldade de compreendê-lo e agir com consequência sobre a marcha das coisas. O encontro de um ponto de vista plausível não se fazendo senão por essa sondagem corajosa, e empática, dos enfrentamentos, rupturas e rebatimentos entre o pessoal e o político, o eu e o outro, a esquerda e a direita, o presente e o passado. Não vejo aí nada de narcísico, como também se apontou, mas um esforço cuidadoso de elaboração estética de circunstâncias privilegiadas de observação de um real cuja história ainda está em disputa. E por ser contada. E de um lugar de fala – já que a questão também contra ela foi lançada – absolutamente legítimo, bem municiado e dos mais eloquentes.
Elaboração estética, diga-se de passagem, por parte de uma cineasta que há anos vem investindo no universo da memória, da autobiografia, da narrativa de si, da busca de seu papel nos filmes que faz. Basta ver o lindo curta “Olhos de Ressaca”, sobre o amor entre seus dois avós maternos, ou o mergulho ainda mais delicado, e pungente, na existência breve de sua irmã “Elena”, não por acaso um dos documentários mais vistos no mundo no ano em que foi lançado. Dedicados à história íntima de sua própria família, eles não deixam de falar de temas humanos de máximo alcance: a velhice, os sonhos de juventude, as lembranças, o coração, a paixão radical pela arte, pela poesia, a dança, o teatro, a gestação, o suicídio, o desconsolo, o luto, o sorriso, a passagem do tempo, e não menos os papéis femininos, como os de Vera, Elena, Marília, Petra, Sofia, Dilma. Fico assim me perguntando se não é em narrativas assim, atentas ao assunto tanto quanto a si mesmas, atentas às grandes e pequenas forças, pomposas e sorrateiras, íntimas e políticas, históricas e efêmeras, que haveremos de encontrar as chaves de uma história futura, e de um tempo outro, menos assoberbado, mais terra-a-terra, mais humano demasiadamente humano?
nota
1
Democracia em vertigem, direção de Petra Costa (documentário, Netflix, 2019, 2h02’). Edição de Karen Harley, Felipe Lacerda, Jordana Berg, Tina Baz le Gal, David Barker e Joaquim Castro Produção: Joanna Natasegara, Shane Boris e Tiago Pavan. Música composta por Lucas Santtana e Gil Talmi. Com Jair Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva, Michel Temer, Dilma Rousseff, Eduardo Cunha e outros.
sobre o autor
José Tavares Correia de Lira é professor titular do departamento de história da arquitetura e estética do projeto da FAU USP e ex-diretor do Centro de Preservação Cultural da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e O visível e o invisível na arquitetura brasileira (DBA, 2017), e organizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2004, com Rosa Artigas).