Hoje, nem o tempo é mais o que era. Antigamente, reconhecia-se o passado como algo que dizia respeito ao que havia acontecido, o presente ao que estava acontecendo e o futuro ao que iria acontecer. Como aqui demonstra a artista e pensadora Giselle Beiguelman, a partir de ensaios textuais e visuais, a presumida linearidade do tempo explodiu, e a temporalidade parece estruturar-se numa nuvem de fragmentos com espessuras e velocidades distintas e em direções desencontradas. Sobre esse caráter essencialmente contraditório, a autora lembra que a mesma cidade onde foi inaugurado o Museu do Amanhã, instituição que quer nos fazer crer que o amanhã já é hoje, transformou em cinzas o Museu Histórico Nacional, um patrimônio de 20 milhões de itens. Rasurou irreversivelmente uma parte significativa do passado não só brasileiro e português, mas da humanidade.
Nunca se produziu tantos registros como atualmente, ao mesmo tempo em que nunca foi tão difícil ter acesso ao passado recente. O tsunami de informações tem o esquecimento como efeito colateral. Não é isso o que sentimos quando, na inspeção arqueológica de gavetas e armários, encontramos disquetes obscuros?
O tema está na ordem do dia, mas não na chave tratada por este livro. Em lugar de um conjunto de leituras teóricas, de natureza generalizadora e abstrata, Beiguelman nos oferece cinco capítulos, cinco ensaios visuais, cada qual um desdobramento do tema da memória, da amnésia e das políticas em curso referentes ao que deve ser esquecido.
Os capítulos são introduzidos por um ensaio crítico, modalidade de texto lamentavelmente pouco praticada na academia e defendida por Jean Starobinski como fruto de uma escrita movida pelo prazer, aquela que não sufoca o leitor com citações e comentários excessivos.
O primeiro deles, “Beleza convulsiva tropical”, título extraído de uma sentença de André Breton, traz um registro fotográfico de uma intervenção realizada pela artista em 2014 na Antiga Casa de São Cristóvão, hoje conhecida como Quinta dos Tanques ou Quinta dos Lázaros – nome que também abrange o vizinho e mais antigo cemitério de Salvador. Lá, funciona o Arquivo Público da Bahia, o segundo mais importante do país. Repleto de estantes e caixas com documentos únicos e preciosos, o casarão está semiarruinado. A verdura das samambaias viceja nas frestas, varando as velhas construções. A natureza, à força do sol e da umidade, vai melando os papéis e tomando para si a arquitetura. O trópico conspirando contra a memória. Deixando-se de lado a melancolia preservacionista, vê-se o espetáculo da matéria em movimento, da história do tempo em ação, ao mesmo tempo em que há uma curiosa identificação entre túmulos e arquivos, cadáveres e documentos.
“Memória da Amnésia” refere-se a uma exposição realizada por Beiguelman em 2015 no Arquivo Histórico Municipal, em São Paulo. Depois de visitas ao Depósito do Canindé, um legítimo repositório de esquecimento da prefeitura da capital, selecionou, em função do que representavam e como representavam, um significativo número de esculturas de heróis, musas, outros temas, retiradas dos espaços que outrora ocuparam na cidade. Quem decide o que deve ser esquecido, como deve ser esquecido, quando deve ser esquecido? Instaladas no saguão do Arquivo Histórico, elas, coerentes com sua desgraça, foram relegadas ao chão.
O ensaio fotográfico “Já é ontem?” resultou do perplexo acompanhamento da construção do Porto Maravilha, de responsabilidade da prefeitura do Rio de Janeiro que, entre outras realizações, desmanchou o elevado da Perimetral, construiu museus etc. O futuro, pela força dos outdoors, das maquetes eletrônicas e dos vídeos institucionais, parecia finalmente haver chegado. Veio, então, a avalanche dos escândalos, o desmoronamento da cidade e do país, levando consigo o futuro tão celebrado. A sequência visual de excertos desse empreendimento traz imagens distorcidas, próprias às máquinas defeituosas.
Os dois últimos ensaios se complementam, dirigindo-se aos museus, às instituições dedicadas à preservação da memória. “Livro depois do livro”, obra de net art realizada por Beiguelman em 1999, tem como foco narrativas não lineares, e traz as maneiras pela qual a máquina altera a leitura e a escritura, em um processo de velocidade exponencializada pelas novas tecnologias e que, paradoxalmente, torna praticamente inviável sua conservação em um museu de arte. Quanto ao segundo ensaio, “Beleza compulsiva tropical”, trata-se de um registro fotográfico sobre o já mencionado incêndio criminoso do Museu Histórico Nacional.
Enquanto o primeiro texto sinaliza o perigo da tecnologia levar à paralisia, o segundo aborda um “Memoricídio”, neologismo criado pelo croata Mirko Grmek e que significa a “intenção deliberada de destruir todos os traços de existência cultural e histórica de uma nação em um determinado território”. Considerando o ódio que perpassa nosso país, com seu racismo, seu preconceito e sua misoginia cada vez mais escancarados, as formas que Giselle Beiguelman encontra para debater o tema da memória merecem ser analisadas com atenção.
sobre o autor
Agnaldo Farias é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e crítico de arte.