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Alexandre de Freitas Barbosa, professor do IEB/USP, homenageia o grande intelectual e militante de esquerda Chico de Oliveira, comentando alguns dos seus principais textos.

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BARBOSA, Alexandre Freitas. Chico de Oliveira, o marxista furtadiano. Ou o intelectual que viu o Brasil virar um ornitorrinco. Resenhas Online, São Paulo, ano 18, n. 212.04, Vitruvius, ago. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.212/7445>.


Escrever sobre Chico de Oliveira é fácil. Ciente do seu valor e das suas limitações (todos as temos, mas nem todos nos damos conta delas), ele não prometia mais do que entregava. Nunca se jactou da sua obra ou do seu papel como intelectual. Até fazia pouco caso disso.

Generoso e transparente, Chico compartilhava com as pessoas o seu ser no mundo, estando sempre disposto a uma boa polêmica. Em cada momento histórico, era como se perguntasse: “como eu me ponho a analisar ‘isso’ aqui?” Tinha a confiança necessária de quem se abre para o novo, usando de forma criativa e original o repertório que trazia no seu matulão de ideias, sem baixar a cabeça para ninguém e sem cultuar escolas e modos de pensar rígidos. Chico era ele mesmo. Um iconoclasta de si mesmo, eu ousaria dizer. Sempre se reinventava e nos pregava peças.

Não fui amigo próximo de Chico. Mas ele foi meu amigo íntimo, o grande mestre que tive. Essa afirmação merece ser precisada, pois nunca tive aula com ele e tampouco participei dos seus grupos de pesquisa. Mas desde a minha pesquisa de doutorado, quando tive o prazer de tê-lo na banca, fiz-lhe algumas visitas na casa da rua Tito, convidei-o para diversos eventos e o entrevistei outras tantas. Ele me recebia para conversar, hábito que cultivava com maestria. Mestre, portanto, no sentido daquele autor que a gente lê – se sente discípulo, mesmo que jamais autorizado – e com quem pode tirar dúvidas e cogitar hipóteses alternativas. Além de dar boas risadas.

Aos poucos, fui criando confiança e por vezes cheguei a criticá-lo. Ele não se importava, talvez até gostasse. Mas não arredava o pé. Não por defesa das suas ideias. Ele as via como uma espécie de “trabalho vivo” intelectual, pois representavam a maneira pela qual condensara o real “lá atrás” no sentido de transformá-lo. Passado o tempo, caberia aos pesquisadores avaliar o seu devido valor. A sua preocupação era continuar pensando, destrinchando o real que corria adiante sem cessar.

Gostaria de desenvolver três observações sobre Chico e sua obra neste ensaio despretensioso, que escrevo por obrigação com as novas gerações, como uma espécie de dívida que julgo ter com ele, e também porque depois do baque da sua partida me pus a perguntar sobre o seu papel no pensamento brasileiro. Pois bem, qual a particularidade de Chico? Por que ele foi (é e será) tão importante para todos nós e para as próximas gerações?

Celso Furtado e Anísio Teixeira na Sudene
AT Foto/divulgação [CPDOC/Arquivo Anísio Teixeira]

Primeiro, e antes de tudo, nem Chico e nem a sua obra existem sem Celso Furtado. Quando falava do mestre com quem trabalhara por cinco anos (1959-1964) ele se punha solene. Chamava-o de “Dr. Furtado” nos tempos da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene e creio que assim continuou a fazê-lo sempre. Numa das entrevistas que tive a honra de fazer com ele, para o depoimento de 50 anos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, quando perguntado sobre o que representara na sua vida o trabalho junto ao mestre, ele não conseguiu conter o choro: “era uma espécie de pasárgada”, “eu volto pra lá e vejo a minha vida toda”, “foi uma lição de República como eu nunca tinha visto” (1). Devo ter ouvido dele umas cinco vezes, pelo menos, a história de Furtado pedindo para dormir no seu quarto no Hotel da Bahia – quando Chico era chefe do escritório da Sudene em Salvador –, para economizar uma diária do erário público.

Como se explica então a crítica ácida ao que ele chamou de “dual-estruturalismo” de Furtado em Crítica à razão dualista (2), livro de 1972? Ensaio uma hipótese abaixo. Antes, cabe lembrar que, como o próprio Chico menciona, ele era um fruto da escassez. Formado em Ciências Sociais no Recife virou economista porque era o que país precisava na época. Fez dois cursos especialização para “técnico em desenvolvimento econômico” com financiamento da Capes: um em parceria com o BNB, em 1955; e outro, no BNDE, em parceria com a Comissão Econômica para a América Latina – Cepal, em 1957. Passou por esses “dois fornos” e “sua cabeça deu um giro de 180 graus”. O terceiro “forno” foi o Cebrap, no qual ele se engajou depois de 1970 a convite de Octavio Ianni. É neste momento que ele se encontra com os marxistas uspianos e lê pela primeira vez Marx com rigor e método. Faz a crítica a Furtado para entender a experiência fracassada da Sudene e do governo Jango. Mas o Marx que ele maneja é um Marx à sua maneira, que lhe permite processar o significado das batalhas que travara junto com seu mestre.

Por que a nação não é mais possível depois de ter sido superada dialeticamente pelo reino do capital? – esta é a pergunta que ele parece fazer. Portanto, um Furtado virado de cabeça para baixo, mas ainda Furtado, com as mudanças estruturais, os ritmos assincrônicos da história, as tensões sociais e o papel do Estado a empolgar agora um capitalismo marcado pela desigualdade, onde as incompletudes se cristalizavam, abrindo espaço para o atraso vitaminar o moderno.

Certa vez lhe perguntei: “Chico, alguma vez o Celso fez menção ao seu livro, à sua crítica?” Ele olhou pra mim, sem esconder a sua frustração, e passou a sua mão em frente dos lábios como quem simula o silêncio e disse: “jamais”. No fundo, era como se tivesse buscado ao longo da vida um comentário, mesmo que negativo, daquele que dera sentido à sua trajetória.

Quando lhe pespeguei a alcunha de “marxista furtadiano”, ele concordou comigo, o que era raro. Talvez porque aquele que pretendera superar o mestre, com ele se re(encontrara) ao fim da travessia, depois de ter agregado o seu mais-valor marxista.

E aqui chego à minha segunda observação. Diferente de muitos dos seus pares do Cebrap, ele ligava pouco para a teoria no sentido “puro”. Gostava era de fazer a sua “teoria”. Certa vez ele disse, “eu estudei com os melhores caras da Cepal, depois só faltava só o Marx, aí era o céu”. O aprendizado com Furtado lhe aprumara o sentido para ver o mundo. As categorias marxistas e a dialética tornaram o seu olhar ainda mais aguçado, dando-lhe asas para voar e conquistar a sua autonomia. Raros os livros de Chico em que ele cita Marx. Mas o velho barbudo lhe corria nas veias. A grandeza de Chico estava em agregar valor ao real – sentido, sofrido e auscultado – por meio de sua lucidez analítica.

Talvez dos intelectuais da sua geração fosse o menos apetrechado teoricamente. Mas o que ele fazia com as ferramentas à disposição – em ensaios geralmente curtos e certeiros, destilando a narrativa com ironia, poesia e vivência cotidiana – produzia abalos sísmicos, desconcertando muitos acadêmicos refestelados na própria pompa teórica. Criava categorias próprias – esculpidas por sua dialética ágil, pouco sutil, por vez até corrosiva – que logo alteravam as possibilidades de leitura do mundo, abrindo novas oportunidades de ação. A teoria era uma prática constante para ver/transformar a sociedade. Como em Furtado. Como em Marx. Assim imprimiu a sua marca no pensamento brasileiro.

Terceira observação: foi o grande pensador da questão regional que tivemos. Justamente por ter acreditado na reinvenção furtadiana da federação e na transformação do Nordeste, foi o primeiro a destrinchar porque o capitalismo no Brasil levara à “desregionalização da economia regional”, como antes dele já apontara Ignácio Rangel. Seu livro de 1977, Elegia para uma re(li)gião: Sudene, Nordeste, planejamento e conflito de classes, começa assim: “esse trabalho foi escrito sob o signo da paixão: paixão de Orieta, do Nordeste, paixão dos operários, trabalhadores e camponeses do Nordeste. Paixão no mais amplo e estrito sentido. Paixão no sentido de Gramsci: de colocar-se em uma posição e, mediante essa colocação e por causa dela, tentar entender uma tragédia” (3).

Desde então, escreveu dezenas de artigos sobre o Nordeste, até Noiva da revolução (4), seu ensaio afetivo sobre a Recife em que viveu, pelo menos até a cidade ter sido abandonada pela noiva (a revolução) no altar. Fica a deixa aos editores: publicar a obra reunida de Chico com os inúmeros artigos dispersos sobre o Nordeste, o capitalismo no Brasil e a questão regional.

Certa vez me disse que “o Nordeste não existia mais”, eu retruquei que concordava, mas achava que existia de outro jeito. Ele disse que não. Não era fácil convencê-lo. Quando escreveu o “Ornitorrinco” (5), todos ficaram estupefatos. Mas aí veio o governo Lula. Eu disse, “Chico, o Ornitorrinco não cabe no governo Lula?”. Ele disse: “você pode estar certo, mas não é isso o que vejo”. Nunca vi o mestre usar argumento de autoridade. Ele costumava acertar. Tinha uma espécie de bússola do processo histórico, por mais que a relação que travara com FHC e Lula no passado talvez impedisse o distanciamento analítico necessário para destrinchar esses governos em toda a sua complexidade.

Chico de Oliveira (1933-2019)
Foto divulgação [blog Editora Boitempo]

No dia 22 de fevereiro deste ano, fiz-lhe a última visita. Estava tranquilo e lúcido. Perguntei-lhe sobre o governo Bolsonaro. “Como você explica, Chico?”. “Como assim?”, ele retrucou. Para então concluir: “não há nada de novo. Isso é o capitalismo brasileiro”. “Não sei se concordo, Chico”, respondi, e conversamos por duas horas.

O sociólogo Richard Sennett, aluno de Hannah Arendt, refere-se a ela como exemplo de professora: “em vez de fornecer uma explicação satisfatória, ela nos desorganizava, gerava inquietações que exigiam um contra-argumento” (6). Assim foi o Chico. Deixou-nos a tarefa de decifrar e desmontar o “Ornitorrinco” por ele antecipado; de mostrar que o animal comporta, sim, dialética, ao contrário do que o mestre pensava.

notas

1
MOURA, Flávio; MONTEIRO, Paula (Org.). Retrato de grupo. 40 anos de Cebrap. São Paulo, Cosac Naify, 2009, p. 157.

2
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. In OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003. O ensaio “A economia brasileira: crítica à razão dualista” foi publicado pela primeira vez em Estudos Cebrap, n. 2, de 1972, depois reeditado em Seleções Cebrap, n. 1, em 1975 e 1976, e transformado em livro pela editora Vozes, em 1981.

3
OLIVEIRA, Francisco (1977). Elegia para uma re(li)gião: Sudene, Nordeste, planejamento e conflito de classes. In OLIVEIRA, Francisco. Noiva da revolução / Elegia para uma re(li)gião. São Paulo, Boitempo, 2008, p. 125.

4
OLIVEIRA, Francisco. Noiva da revolução / Elegia para uma re(li)gião. Op. cit.

5
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003. O ensaio “O ornitorrinco” foi incorporado a esta edição de “Crítica à razão dualista”, assim como o “Prefácio com perguntas”, ensaio de Roberto Schwarz.

6
SENNETT, Richard. The Craftsman. New Haven, Yale University Press, 2009.

sobre o autor

Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB/USP.

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resenha dos livros

Crítica à razão dualista / O ornitorrinco

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