“Eu invento o meu mundo e cada de vocês tem que inventar o seu. [...] Como inventor que sou, eu uso esse direito de inventar, que é um direito que nasceu comigo e nasceu com qualquer um de vocês que estejam me assistindo ou participando deste mesmo mundo que eu”.
Sérgio Bernardes (1919-2002)
Vincular arquitetura e política remete-nos a problemas de ordem epistemológica, científica e... política. Houve momentos em que o caráter político da atividade arquitetônica foi muito evidenciado: os anos de 1920, para não retroceder mais, com a Bauhaus, o futurismo e o construtivismo, quando os arquitetos mais importantes abordaram explicitamente a construção de um novo mundo ou de uma nova ordem; e, mais tarde, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, anos de contestação, onde os sucessores daqueles movimentos alegaram querer “mudar a cidade para mudar vidas”. Nos dois casos, além das diferenças e posições sobre o tipo de sociedade a ser promovida e os meios para alcançá-la, o conceito de política tinha algo a ver, mesmo que apenas de maneira antitética, com o de emancipação.
A mostra Três pavilhões de Sérgio Bernardes (1) – sob curadoria de Abilio Guerra e Fausto Sombra – nos possibilita não apenas um mergulho nesses temas centrais, como também preencher uma lacuna na história da disciplina, iluminando trajetórias individuais sombreadas pela historiografia. A mostra é fruto de um doutorado e, portanto, pode ser entendida como um esforço amplo de revisão historiográfica, do qual o orientador é um dos protagonistas (2), e que visa abrir um parêntese sobre um período cuja sombra se estendeu até o terceiro milênio.
A delimitação do arco temporal, a partir das três obras, insere o personagem naquilo que a curadoria denomina de “segunda geração” de arquitetos modernos, e nos remete a uma geração em que trajetórias individuais de arquitetos engajados em um campo como no outro, em liberdade ou em cativeiro, trouxeram contribuições cuja pesquisa e inovação técnica baseavam-se na transmissão de saber científico comum, que se tornou paradigma de um pensamento de época, mas também de uma ação política. Não esqueçamos que a guerra, longe de ser um vazio obscuro na história da arquitetura do século 20, é um processo complexo de transformação, que envolve todos os componentes da arquitetura em sua totalidade.
Essa articulação, que embasou o percurso narrativo da mostra, é evidenciada pela unidade programática de três obras: os pavilhões expostos nas exposições internacionais colocavam-se, muitas vezes, como reflexo da vontade política de demonstrar a capacidade de realizar operações emblemáticas e reais e, também, de criar lugares imaginários de possíveis utopias. A partir da Exposição de Paris de 1867, os países participantes são convidados a construir edifícios que representam seu caráter nacional, numa época em que a evolução desses eventos estava mudando substancialmente. A princípio eram concebidos como recipientes para objetos a serem exibidos no mundo, e posteriormente, os próprios edifícios transformam-se em objetos a serem expostos pelos Estados participantes.
O ambiente intimista da sala de exibição, como em um gabinete de leitura do século 18, na França, na Grã-Bretanha, nos países nórdicos e de língua alemã, na Itália e, mais tardiamente, no Brasil (3), não visa somente comunicar o conteúdo trabalhado, mas estimular uma experiência cognitiva entre pesquisa, inovação técnica e conjuntura política, na qual o observador é levado a construir uma imagem sintética do tema tratado. Como meio de comunicação, a exposição organiza-se através da síntese de diferentes linguagens: a escrita, em quatro painéis; a dos objetos, com as maquetes dos três pavilhões e de detalhes estruturais; a da arquitetura, nas mesas de estudos; e a audiovisual, ao final do percurso.
A iluminação do ambiente da pequena sala localizada no Campus da Universidade Mackenzie, fora da qual a capacidade comunicativa dos objetos seria radicalmente diferente, acentua a dicotomia da arquitetura moderna. Seu caráter universal com maquetes diáfanas em flutuação, quase desterritorializadas e, no silêncio da mesa de leitura, uma história da arquitetura voltada para o conhecimento e a compreensão de como, em diferentes contextos espaciais e temporais, os componentes antrópicos interagiram de maneira variada e articulada com o geográfico, com o ambiental etc., para organizarem o espaço físico.
As raízes disciplinares e conceituais da arquitetura moderna são, de fato, fundamentadas precisamente nos detalhes, que não são de estilo ou ornamento – pois esses eram delitos –, mas são parte essencial de uma tão elevada sabedoria de construção, que é capaz de ser lida na montagem final do percurso, pela apreensão da singularidade das obras, seus componentes e seus fragmentos. Essa é a história que se destaca como um dos componentes essenciais da cultura do desenho de arquitetos e urbanistas, na lógica das intervenções que surgem de um profundo conhecimento das complexas realidades em que se opera.
Ainda podemos ler essa operação nas intensas capacidades expressivas de muitas obras do século 20, conscientes da função crucial dos detalhes, os quais sempre derivavam de um conhecimento cuidadoso dos materiais. Dessa forma, a mostra não opta por ser uma aula de história da arquitetura deste século, mas uma verificação factual das sínteses verdadeiras entre as artes, nas quais o momento da ideia e o ato de construir têm valor igual e vigoroso. Não é esse também o talento de um arquiteto? Captar o usuário diante dos detalhes de um gesto construtivo, diante da dignidade que emerge do material, seja ele aço, pedra ou concreto?
Portanto, ler a arquitetura a partir de seus detalhes significa reconhecê-la em sua essência mais sofisticada, não necessariamente apenas na concepção tecnológica. Em diversas ocasiões, seja no projeto dos pavilhões seja nas residências de seus clientes burgueses, às vezes resultado de excesso de complacência formal, os requisitos elegantes de Sérgio Bernardes levaram-no a pensar – mesmo em escala urbana – em detalhes, que conseguiram estabelecer uma reflexão geral sobre a modernidade: o que se entende por moderno e sobre as possibilidades de ser moderno, também através da cultura do particular e com a completude do processo ideacional. Para essa geração, essa era a essência da construção: um novo espírito que conseguia entender a reciprocidade das peças, uma relação harmoniosa entre espaços e volumes através de um jogo de escadas e planos sempre diferentes, harmonizados e refinados.
Explorar a arquitetura a partir de seus próprios detalhes não parece mais estar na ordem contemporânea digna de interesse. A velocidade técnica e tecnológica dos atuais processos de fabricação geralmente impõem o esquecimento da atenção aos detalhes. A conscientização de hoje, esperançosa e responsável historicamente em direção a uma nova leitura dos acontecimentos do panorama arquitetônico do moderno, utópico, de vanguarda ideológica ou vernacular que era, deveria nos levar a propor a pergunta: o que a arquitetura pode fazer para transformação do mundo?
Seria necessário responder com outra pergunta: de que mundo e de que transformação se fala? Do mundo capitalista? Sem dúvida, já que não há outra proposta hegemônica no planeta. Resta ver em que sentido deve-se interpretar sua necessidade de transformação, pois aquilo que muitos especialistas (incluindo arquitetos, urbanistas e paisagistas) estão falando sobre dar sentido à urbanização de um mundo, simultaneamente em decomposição social e devastação ecológica, é mais do que nunca capitalista.
notas
NE – Ver a outra resenha sobre a exposição: QUEIROZ, Rodrigo. Três pavilhões de Sérgio Bernardes: a geometria da tensão. Resenhas Online, São Paulo, ano 18, n. 214.01, Vitruvius, out. 2019 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.214/7498>.
1
Exposição “Três pavilhões de Sérgio Bernardes”, curadoria de Abilio Guerra e Fausto Sombra. Centro Histórico e Cultural Mackenzie, Ruas Itambé, 135 ou Maria Antônia, 307 – Prédio 1, Higienópolis, São Paulo SP. Helen Yara Altimeyer (coordenadora) e Luciene Aranha Abrunhosa (curadora). De 18 de setembro de 2019 a 18 de outubro de 2019, das 09h às 21h (segunda a sexta) e das 10h às 16h (sábados). Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Apoio à pesquisa Benefício Capes-Proex. Patrocínio de Bernardes Arquitetura, Practica Maquetes, Arali Móveis, Dix Arte & Metal e FEG Brasil. Produção de Fausto Sombra e Abilio Guerra.
2
Ver: GUERRA, Abilio (Org.). Textos fundamentais sobre história da arquitetura moderna brasileira – partes 1 e 2. Coleção RG bolso, volumes 1 e 2. São Paulo, Romano Guerra, 2010.
3
MARTINS, Ana Luiza. Gabinetes de Leitura: cidades, livros e leituras na Província de São Paulo. São Paulo, Edusp, 2015.
sobre o autor
Adalberto da Silva Retto Júnior, professor na Universidade Estadual Paulista – Unesp, é doutor (FAU USP e Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IAUV, 2003) e pós-doutor (IAUV, 2007). Atual coordenador do curso internacional de especialização lato sensu “Planejamento urbano e políticas públicas: urbanismo, paisagem, território”, foi professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).