Na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, entre os dias 23 e 25 de fevereiro de 2015, ocorreu um seminário sobre a obra de Manfredo Tafuri (1935-1994) e sua recepção por parte de colegas de sua geração, alunos e estudiosos, com o objetivo de atualizar uma trajetória intelectual à luz dos dilemas contemporâneos. O programa foi organizado em cinco sessões não cronológicas que partem de temas básicos suscitados por seu trabalho. Cada sessão contou com um moderador brasileiro que se incumbiu de fazer uma reflexão sobre o impacto da obra de Manfredo Tafuri no Brasil, revelar a rede de relações e os intercâmbios científicos construídos em torno do seu método historiográfico e produção.
Como escreve Howard Burns, Tafuri criou “um novo e fértil modo de fazer história da arquitetura – ou história tout court – que não ‘explica’ a arquitetura em termos de ‘contexto’, mas identifica a sua função fundamental no âmbito de um dado momento cultural e político e a sua interação com as outras forças culturais, pela qual não é passivamente determinada (1).
Na primeira sessão, intitulada “O projeto histórico e a formação do historiador de arquitetura”, explorou-se a formação do Dipartimento di Analisi Critica e Storica (1976) da Universidade de Veneza que substituiu o antigo Istituto di Storia dell’Architettura, dirigido por Bruno Zevi e depois por Manfredo Tafuri, assim como o debate acerca do denominado Projeto Histórico, buscando explicitar as repercussões de seus estudos por três gerações. A geração pioneira, representada pelo professor Paolo Morachiello, primeiro diretor do Departamento, mapeou fatos, ideias e debates que colaboraram com a sua formação e consolidação, com claro intuito para a formação do historiador de arquitetura.
Dois anos antes de sua morte, Manfredo Tafuri escreveu na introdução do livro La piazza, la chiesa, il parco sobre o método que embasaria as novas pesquisas no âmbito veneziano: a relação entre filologia e análise historiográfica a partir de objetos pontuais – fragmentos, em um arco temporal que se dilata do século 14 ao 19. O eixo que articula todos os escritos desse volume é a complexa relação entre ideia, texto e contexto, a partir de elementos pontualizados, além da busca do método adequado para cada um, no decorrer da sua longa história. Na mesma introdução Tafuri faz indagações importantes de como as pesquisas foram abordadas: “Que filologia para este tema particular? Como submeter a crítica às fontes, uma vez reconhecida a sua historicidade? Como fazer falar monumentos e documentos de arquivo para restituir um cenário significante, não isolado nos seus confins?” (2).
A segunda geração foi representada pelo professor Andrea Guerra, um dos orientandos do primeiro ciclo do Doutorado em História da Arquitetura, e terceira, representada pelo professor Luka Skansi, participante da última turma de alunos de Tafuri antes do seu falecimento, refletiu principalmente sobre a pesquisa comparada e o retorno do nosso personagem ao Renascimento, momento em que a sua produção distanciava-se do projeto contemporâneo e voltava-se para os grandes mestres do passado, como Alberti, Raffaello, Sansovino, Palladio, Borromini e outros. A mediação do grupo foi feita pelo arquiteto e professor Adalberto Retto Jr., ex-aluno da FAU USP que participou como bolsista do CNPq, no doutorado sanduíche na Universidade IUAV de Veneza, na última turma de doutorado do Projeto Histórico.
As outras sessões partiram de dois grandes temas – Renascimento e Arquitetura Contemporânea, que perpassaram os 23 livros de Tafuri. A segunda sessão, intitulada “Renascimento, arquitetura e cidade”, abordou a importância dos estudos comparativos, a partir da elaboração de um mosaico de escolhas que pontuam as pesquisas de Tafuri, suas continuidades e inflexões, e discutiu questões em torno do “Longo Renascimento”, considerado em uma perspectiva crítica que rejeita o marco temporal da maioria dos estudos historiográficos desse período.
Cacciari ressalta que o próprio título do livro Ricerca del Rinascimento: principi, città, architetti é um exercício de filologia viva, pois deixa de trabalhar com a pesquisa sobre o Renascimento para incorporar a “própria visão do Renascimento como pesquisa” (3).
Os estudos de Morachiello e da professora Donatella Calabi, representante italiana no debate, sobre o coração comercial de Rialto e as bases teóricas das técnicas, sobre as relações entre o debate religioso, a vida civil, a expressão artística e o papel da imagem na Veneza dos séculos 15 e 16, fazem parte de um quadro único de referência então trabalhada nessa sessão.
O segundo palestrante, o professor Christoph Frommel, diretor emérito da ‘Biblioteca Hertziana’ de Roma, aprofundou-se no diálogo de Tafuri com os estudiosos da denominada Scuola Romana e do Centro Internazionale di Studi di Architettura ‘Andrea Palladio’, na rediscussão de estudos clássicos como aqueles de Rudolf Wittkower e Jacob Burckhardt. A mediação coube ao professor Mário Henrique Simão D’Agostino, estudioso do Renascimento italiano e que, desde cedo, estabeleceu um diálogo intelectual com Manfredo Tafuri e sua obra.
A terceira sessão, intitulada “Cidade e arquitetura no século 20”, foi um aprofundamento sobre o historiador e sua análise da produção arquitetônica contemporânea, explicitada nos livros Architettura italiana 1944-1981 (1986), Teorie e storia dell’architettura (1968), Progetto e utopia (1969 e 1972) e, ainda no Storia dell’architettura contemporanea, escrito com Francesco Dal Co, em 1976.
Oito anos depois de sua chegada ao IUAV, Manfredo Tafuri fundou, em 1976, o Dipartimento di Analisi Critica e Storica sobre as cinzas do Istituto di Storia dell’Architettura dirigido por Bruno Zevi. A mudança sucessiva do nome do departamento que voltou à antiga denominação de Storia dell’Architettura mostra que os dois adjetivos, “critica” e “storica”, constituíam uma tautologia. Como sustentava Tafuri, “a história sempre teve uma função crítica”, logo “não existem críticos, somente historiadores” (Non ci sono critici, solo storici). De fato, a nova denominação marcava a passagem para uma fase em que a “fecunda incerteza da análise” se contrapunha à certeza do projeto da denominada Storia operativa de Zevi” (4).
Por sua vez, segundo Retto Jr., Jean Louis Cohen, que seguiu atentamente o âmbito intelectual veneziano – Italophilie (1984), Dall’affermazione ideologica alla storia professionale (1999) –, explicita que, ao superar a questão da operatividade da história, a “Scuola di Venezia” consegue passar do estudo das conjunturas àquele das estruturas, posta como fundamento da historiografia dos “annales”: sem subscrever a causa da longa duração per se stessa, mas propondo-lhes rearticulações diacrônicas que fazem aparecer os ciclos estruturais segundo os quais a crise do capitalismo e da arquitetura se compõem e se correspondem (5).
No mesmo artigo, Retto Jr explicita que, nos anos de 1970, década que recebeu de Guido Zucconi a denominação de ‘os anos de ouro da história urbana na Itália’, “um grupo de professores começa a delinear um modo novo e autônomo de se fazer história, no qual o termo ‘análise urbana’ deixa de ser sinônimo da “análise operantiva”, protagonizada por Saverio Muratori em seu “Studi per una operante storia urbana di Venezia” (1953).
As reflexões de Tafuri sobre as correntes artísticas do século 20 foram consideradas como uma ruptura epistemológica no corpus da história da arquitetura contemporânea. Ao movimento moderno ele agregou um conjunto de dúvidas que, vistas a partir das análises precedentes de Argan, Rogers e Paci, privilegiou os conflitos e destacou as aporias dos discursos das vanguardas, cujo poder desestabilizador foi descoberto depois dos anos de 1960: ele enfatizou as contradições entre as intenções e os projetos, as ideologias e as práticas.
Nessa sessão, utilizou-se novamente uma cronologia geracional com colaboradores diretos de Tafuri: professor Marco De Michelis e professor Guido Zucconi.
A moderação da sessão coube ao professor Carlos Martins, do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP de São Carlos, que não somente é um leitor de Manfredo Tafuri como representa um importante grupo de pesquisa e reflexão sobre a arquitetura moderna no Brasil.
A quarta sessão, denominada “Tafuri e os arquitetos”, explorou o diálogo entre os profissionais. É fato que o encontro de Tafuri com Bruno Zevi foi determinante para as suas novas escolhas, e que o confronto entre os dois assumiu grande importância em meio à discussão da denominada história operativa. Nesse sentido, apesar de a formação de Manfredo Tafuri ter sido iniciada como colaborador de grandes arquitetos do cenário italiano e de, em 1960, ele assumir a cadeira de professor assistente universitário ao lado de Salvatore Greco – docente do curso de Composizione Architettonica, em momento posterior, ele motivou os arquitetos-historiadores a tomarem distância do metiê de projetista, como forma de evitar que a “fecunda incerteza da análise” fosse maculada pela certeza da proposição projetual. Manfredo Tafuri encorajou e promoveu a formação de especialistas em materiais, estruturas, métodos arqueológicos, história das técnicas e das representações, de modo a obter figuras competentes às quais delegaria, também, trabalhos de restauro e preservação do patrimônio.
Dessa forma, Tafuri estabeleceu intenso diálogo com arquitetos do IUAV vinculados à escola morfológica, com raízes no trabalho de Saverio Muratori, como Aldo Rossi e Vittorio Gregotti, entre outros, e além-mar, como Rafael Moneo e Peter Eisenman, que o levaram a tecer algumas definições, tais como: “Eisenman é um terrorista formal”; Meyer é um “mecânico das funções”; Graves é um “polissígnico”. A moderação da quarta sessão foi feita pela professora Anne Marie Sumner, que trouxe Paulo Mendes da Rocha, arquiteto e prêmio Pritzker 2006, para falar do historiador italiano.
A quinta e última sessão dividiu-se em dois tipos de leitores externos ao contexto veneziano: os primeiros tiveram uma interlocução direta com Manfredo Tafuri, como Jorge Liernur , da Universidad Torcuato Di Tella de Buenos Aires, Carlos Sambricio, da Escuela Técnica Superior de Arquitectura da Universidad Politécnica de Madrid, Rafael Moreira, da Universidade Nova de Lisboa – CHAM, Centro de Humanidades – NOVA FCSH UA; os segundos correspondem a estudiosos que não tiveram uma relação direta com Tafuri, mas que trabalharam alguns aspectos do seu percurso intelectual e da sua abordagem em relação à história da arquitetura contemporânea: professor Marco Biraghi, do Politecnico di Milano, o professor Daniel Sherer (Columbia University), e no contexto brasileiro, o professor Rafael Urano Frajndlich (FEC Unicamp), autor do mais recente trabalho, no país, sobre o historiador romano, intitulado “Manfredo Tafuri: o tempo da cidade longínqua”.
A mediação da mesa coube à professora Maria Cristina da Silva Leme, da FAU USP que, além de trabalhar com circulação de ideias na área de urbanismo, estabeleceu um efetivo intercâmbio com o IUAV, pela assinatura de convênio entre as duas instituições. A segunda sessão foi mediada pela professora Cibele Saliba Risek, do IAU-USP de São Carlos.
O fechamento do evento contou com a presença de dois dos maiores intelectuais da atualidade: o professor Alberto Asor Rosa, da Universidade de Roma La Sapienza, que abordou o tema “Entre Política”, e a professora Otília Beatriz Fiori Arantes, FFLCH USP, com o tema “A Dialética Negativa de Tafuri”.
notas
NA – Tradução Thiago Tomassine Duarte Vieira; revisão Anita de Marco e Ann Puntc.
NE – Texto de apresentação da publicação: D'AGOSTINO, Mário Henrique S.; JúNIOR, Adalberto da Silva Retto; URANO, Rafael (Orgs.). A construção de um programa. Manfredo Tafuri: seus leitores e suas leituras. São Paulo, FAU USP, 2018. Download do livro.
1
RETTO JR., Adalberto; BOIFAVA, Barbara. Donatella Calabi. Entrevista, São Paulo, ano 04, n. 015.01, Vitruvius, jul. 2003. Disponível em <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/04.015/3335>.
2
RETTO JR., Adalberto. Os saltos de escala no estudo (e no projeto) da cidade e do território: indagações à luz do debate veneziano. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 132.03, Vitruvius, maio 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.132/3897>.
3
RETTO JR., Adalberto. Marco Biraghi. Entrevista, São Paulo, ano 07, n. 028.01, Vitruvius, out. 2006. Disponível em <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/07.028/3300>.
4
RETTO JR., Adalberto; BOIFAVA, Barbara. Donatella Calabi. Entrevista, São Paulo, ano 04, n. 015.01, Vitruvius, jul. 2003. Disponível em: <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/04.015/3335>.
5
RETTO JR., Adalberto. Jean-Louis Cohen. Entrevista, São Paulo, ano 06, n. 024.01, Vitruvius, out. 2005. Disponível em <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/06.024/3312?page=1>.
sobre os autores
Mário Henrique S. D’Agostino é arquiteto (FAU PUC-Campinas, 1985), mestre e doutor (FAU USP, 1991 e 1995). É professor associado (livre-docente) da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Estética e História da Arquitetura e do Urbanismo, atuando principalmente nos seguintes temas: tratados de arquitetura, arquitetura clássica, perspectiva e arquitetura do renascimento.
Adalberto da Silva Retto Jr. é professor na Universidade Estadual Paulista – Unesp. Coordenador do Curso Internacional de Especialização Lato Sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território. Pós-doutor no Istituto Universitario de Arquitetura de Veneza Italia (2007); Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitario de Arquitetura de Veneza (2003).
Rafael Urano Frajndlich é professor no curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp desde 2015. Sua tese de doutorado (FAU USP), centrou-se num estudo da obra do historiador de arquitetura Manfredo Tafuri e sua relação com os círculos filosóficos italianos. Desenvolve pesquisa sobre arquitetura moderna brasileira, sob o recorte da relação estreita entre a formulação estética de Oscar Niemeyer e o projeto político de Juscelino Kubitschek, desde a prefeitura de Belo Horizonte até a inauguração de Brasília.