Aproxima-se o final da XII Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (1), cuja proposta curatorial foi selecionada através de um concurso promovido pelo IAB de São Paulo. “Todo dia” é o título da mostra que, segundo os próprios curadores, reconhecendo a “atual vulnerabilidade de suas disciplinas (a arquitetura e o urbanismo) em relação às transformações globais e aos desafios de um futuro automatizado”, vislumbra na “esfera cotidiana” uma possibilidade de atuação profissional que desafiaria a “finalidade central do projeto” (2).
Tanto o tema quando o questionamento que o incita têm pertinência incontestável, apesar de nenhum deles ser muito novo. A autoridade e normatividade do desenho de projeto está escancaradamente em questão desde pelo menos às três e meia da tarde, do dia 15 de julho de 1972. Mas mesmo antes da traumática demolição do conjunto Pruitt Igoe, a necessidade de um olhar mais sensível às particularidades e especificidades dos usuários da arquitetura era debatida.
Essa reflexão tangenciou com frequência a temática do cotidiano, objeto de estudos especialmente caro ao filósofo francês Henri Lefebvre que, ainda em 1947, lançara o primeiro volume de sua Crítica da Vida Cotidiana. Em sua obra mais citada, o livro O Direito à Cidade, publicada em 1968, Lefebvre aponta que com a modernidade e o desenvolvimento urbano, o potencial revolucionário emancipatório não mais se deflagrará no chão da fábrica – como proposto pelas linhas marxistas mais ortodoxas –, mas no cotidiano das cidades. Ele identifica naquilo que chama de “sociedade urbana”, não obstante suas novas modalidades de alienação, as possibilidades de recomposição das forças produtivas e das relações de produção. Para o filosofo é no cotidiano das cidades que a potencialidade desse movimento emancipatório repousa. Sua ativação dependeria do tal direito à cidade que reivindica e que não se reduz a um direito de institucionalização política, nem mesmo a um direito de visita aos centros urbanos ou à construção de equipamentos culturais. O que Lefebvre propõe é um direito radical à diferença e à heterogeneidade fundamentada na compreensão da cidade enquanto obra coletiva capaz de ativar no cotidiano da sociedade urbana a sua potencialidade transformadora.
Mesmo que discordemos do projeto revolucionário de Lefebvre, acredito que tanto a noção de direito à cidade enquanto direito à diferença e heterogeneidade quanto a compreensão da cidade como obra coletiva permanecem extremamente atuais, especialmente à luz do contexto político contemporâneo. Esse entendimento necessariamente transcende o campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo, trazendo em si o questionamento do projeto moderno de normatização e universalização, ou seja: a “finalidade central do projeto em um mundo supero-projetado”. Sendo assim, a proposta curatorial eleita pelo júri parece ser, como declarado à Folha de São Paulo em agosto do ano passado: “um momento de crítica” (3).
Pois bem, aproveitando o ensejo, considero oportuno chamar a atenção para algumas particularidades da ementa divulgada pela curadoria por ocasião da chamada aberta de trabalhos para a exposição. A começar pela menção de Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha e Oscar Niemeyer. Em que pese a qualidade e a importância da arquitetura produzida, não é possível tomar suas obras como uma expressão do cotidiano brasileiro. Mesmo àquelas destinadas ao acesso público e que foram radicalmente apropriadas por ele são inegáveis exceções no contexto urbano, seja por conta de sua escala ou pelas atividades que abrigam.
Se por um lado a excepcionalidade da obra de Lina, Oscar e Paulo são um testemunho do potencial que a arquitetura tem para amparar a diferença e a heterogeneidade que balizariam o direito à cidade proposto por Lefebvre, por outro, levando em conta suas frequentes extravagancias estruturais, sua localização em bairros de classe média e alta e a insistente temática do museu/centro-cultural, são também fortes marcadores da distinção social que o campo da arquitetura erudita conserva. Seu refinamento formal é também expressão de uma brutal desigualdade, o que compromete seu potencial transformador.
Além do mais, estamos novamente tratando de algumas das personagens mais consagradas pela historiografia da arquitetura brasileira. Talvez a Bienal de 2019 devesse buscar os exemplos do cotidiano das cidades e não as referências cotidianas dos próprios arquitetos. Se a exposição propõe que questionemos a centralidade do projeto arquitetônico no cotidiano, seria pertinente considerar componentes que estão fora do “todo dia” do campo disciplinar. Não se trata, portanto, de um mero questionamento das referências trazidas pela proposta curatorial da mostra – a qualidade da arquiteta e arquitetos mencionados não está em questão –, contudo, uma mostra que toma as exceções como regra e se foca exclusivamente nas perspectivas consagradas pelo campo disciplinar perde qualquer força crítica. Se o cotidiano é entendido como mediador da produção arquitetônica, deve estar aberta uma via de mão dupla, caso contrário a exposição não passará de um catálogo de soluções para o adestramento do cotidiano pela técnica.
Isto posto, vale considerar como os temas centrais da XII Bienal foram apresentados. Os Relatos do cotidiano pretendem examinar as “inúmeras maneiras pelas quais os arquitetos e outros profissionais relacionados reinterpretam o todo dia”. Apesar desta temática incluir uma fundamental abertura aos debates sobre conflitos de raça e gênero, a proposta crítica da exposição não se esvaziaria se apenas o olhar do produtor do objeto arquitetônico for considerado? Serão dos arquitetos os relatos sobre o cotidiano de quem vive na vasta espacialidade informal das cidades?
Em contrapartida, os temas Materiais do dia-a-dia e Manutenções diárias pretendem abordar a cadeia produtiva da construção de forma questionadora, com um acertado olhar para a questão ecológica e para a readaptação do uso dos edifícios. É preciso, no entanto, cuidar para que o foco no objeto construído seja considerado também a partir da perspectiva do usuário e extrapole a mera admiração da engenhosidade de soluções. Como aponta Lefebvre, o avanço da técnica é condição necessária, mas não suficiente para uma transformação do cotidiano no sentido da realização do direito à cidade. Quanto às manutenções diárias: que sejam sempre num sentido dinâmico de atualização dos usos e não de uma conservação paralisadora que privilegie o objeto em detrimento da complexidade das relações sugeridas pelo tecido social.
A proposta curatorial da XII Bienal e os temas em que se dividirá não são apenas oportunos, são urgentes para o enfrentamento das crises urbanas da contemporaneidade. Só colocando em questão a centralidade do projeto arquitetônico e os paradigmas do campo disciplinar que se poderá enxergar o cotidiano em sua real complexidade e nele intervir com sensibilidade. Dito isto, talvez antes de “trazer a arquitetura a uma perspectiva da vida cotidiana de todos” como propôs o júri, seria melhor trazer à arquitetura uma perspectiva da vida cotidiana de todos.
notas
1
XII Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo – “Todo dia”, curadoria de Vanessa Grossman, Charlotte Malterre-Barthes e Ciro Miguel. Centro Cultural São Paulo – CCSP, 13 de setembro a 08 de dezembro de 2019; Sesc 24, 10 de setembro a 29 de setembro de 2019.
2
Extraído de: GROSSMAN, Vanessa; MALTERRE-BARTHES, Charlotte; MIGUEL, Ciro. Chamada aberta internacional. Disponível em: http://bienaldearquitetura.org.br.
3
ANGIOLILLO, Francesca. Influência do dia a dia será tema da 12a Bienal de Arquitetura de SP, em 2019. Folha de São Paulo, São Paulo, 31 ago. 2018.