Após três meses de sua abertura, o balanço possível da 12a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (1) deve destacar sua perspectiva de confronto com o star system da arquitetura, dominante nos áureos tempos de globalização. A exposição priorizou mostrar novas formas de atuação dos arquitetos, mais coletivas, plurais na sua estética, engajadas em causas políticas e sociais contemporâneas.
Escolhida em concurso promovido pelo Departamento de São Paulo do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/SP, a proposta curatorial “Todo dia” estrutura-se em três eixos: “relatos do cotidiano”, “materiais do dia a dia” e “manutenções diárias”, as quais deixam claro o posicionamento anti-monumental dos curadores (2). Posição provocativa representada pelo enorme painel dedicado a mostrar a área de serviço da Casa de Vidro, ambiente que não consta dos roteiros de visitas à icônica casa de Lina Bo Bardi. Contudo, a exposição não se limitou a revelar os desconhecidos esforços que viabilizam o funcionamento de obras famosas.
Selecionados por chamada aberta de trabalhos, vários participantes tratam de temas de urgência política global, que podem ser enquadradas na categoria de liberal democrática. Um cemitério com muros na forma do Mediterrâneo lembra o morticínio dos refugiados da África e Oriente Médio (3); a carência de moradias nas grandes cidades é tratada em painel manifesto defendendo o modelo de cooperativas habitacionais; gráficos e maquetes ilustram as quantidades de recursos naturais utilizadas na construção das grandes obras da arquitetura moderna brasileira (4).
Nesse quadro internacional, o diálogo entre as pautas de países classificados como “norte-ocidental” e “sul-global”, transparece nitidamente, aflorando algumas especificidades da pauta brasileira.
A sequência de equívocos que levou ao incêndio do edifício Wilson Paes de Almeida é resumida em três desenhos de Philippe Rizzoti, Pablo Georgieff e Marcos da Silva. O painel recupera a proposta realizada pelo trio em 2008, que pretendia transformar o edifício, então desocupado, em um “laboratório sociocultural”. Abrindo as fachadas de vidro, o espaço do edifício moderno se estendia para novos terraços repletos de vegetação. O mesmo incêndio é tratado em outro painel, onde um vídeo produzido por Gabriel Sepe e Nathália Cariatti resgata a memória da ocupação do edifício através de depoimentos dos moradores e vizinhos.
As duas abordagens poderiam ser contrapostas: a primeira sugere que o uso e a arquitetura da intervenção proposta evitaria a ocupação e a tragédia subsequente, o que beira uma certa ingenuidade, enquanto que a segunda traz a densidade das narrativas dos sobreviventes. O vídeo gera um significado pertinente à condição paulistana, na qual os ícones arquitetônicos do período de crescimento econômico são ocupados pela massacrante pobreza contemporânea. O tema tem um significado global, mas o sotaque nacional domina na segunda interpretação.
Diferentes técnicas de cartografia são agenciadas para entender cidades a partir de categorias invisíveis. “Outro público” usa fotos, mapas e diagramas para apresentar os territórios onde ocorrem o “Cruising”, encontros sexuais casuais entre homens realizados em parques públicos de São Paulo e Buenos Aires (5). Em contraponto a tais “refúgios efêmeros”, o georreferenciamento das chamadas 156 de serviços municipais de manutenção urbana, constrói um mapeamento abstrato da distribuição da vulnerabilidade social na cidade de São Paulo (6).
Novos modos do fazer o projeto arquitetônico, bastante diverso daqueles exemplos historicamente consolidados, marcam a exposição. O coletivo Arquitetura na periferia (7) reproduz uma mesa de trabalho dos arquitetos junto a autoconstruções; o painel “Contribuições para outra narrativa” (8) revela a importância da atuação de arquitetos projetando reformas das casas diretamente com os moradores no Jardim Colombo, em São Paulo. Já o “Coletivo Mouraria 53” (9) se dedica a demolir e reconstruir um sobrado em Salvador, um processo de transformação longo e experimental que utiliza sobras, materiais e culturais, da arquitetura. Exemplos distantes das modalidades de atuação do arquiteto como profissional liberal ou como escritório empresa de projetos.
A urgência da política encontra interlúdios na mostra, como na exposição das pontes de raízes vivas de Meghalaya, na Índia (10). Ao longo de décadas as raízes de árvores ficus elastica são conduzidas por sobre cursos d’água até formarem redes densas o suficiente para suportarem a travessia de cargas. A técnica ancestral, que exige o trabalho cooperado de diversas gerações, confunde-se com o tempo da própria natureza. A longa duração corporificada em infraestrutura viva.
A temporalidade da ponte de raízes pode ser compatível com aquela que seria necessária para transformar os rios paulistanos no anel hidroviário planejado por Alexandre Delijaicov e alunos do seu laboratório na USP. Concebido como exercício de meta-projeto, o hidroanel é objeto de pesquisa experimental que permite vislumbrar concretamente uma outra urbanidade. A implantação dessa infraestrutura força a pensar a transformação técnica da cidade, para a qual o laboratório de pesquisa em projeto explora todos os seus aspectos, criando um sistema arquitetônico urbano alternativo ao atual.
Em escala oposta, a da casa, o painel “Terras” mostra três construções com materiais produzidos em pequenas manufaturas a partir do solo (11). O suporte das maquetes com os próprios materiais – taipa de pilão, tijolos moldados manualmente e tijolos produzidos por sistema semi-mecanizado – acentuam o caráter telúrico dessas intervenções singelas, enquanto o vídeo mostra construção e uso como parte de uma mesma cultura enraizada na região.
A ducha em forma de bica, projeto discreto de Angelo Bucci, transforma a pobreza do ato de banhar-se diretamente sob o jorro d’água de um simples cano em um sofisticado objeto de design. Revela a distância do design contemporâneo em relação ao moderno, pois as famosas cadeiras de Marcel Breuer foram concebidas para serem produzidas em série industrial para equipar os conjuntos de habitação social da República de Weimer. Esgotado aquele projeto político social, tornaram-se produtos de design sofisticado e elegante, a preços elevadíssimos. Ao tornar-se design, a bica de cano cortado adquire sofisticação distante da sua origem moderna. Dilema que cerca a persistência das formas modernas na contemporaneidade.
A exposição teve inicialmente uma segunda sede, o Sesc 24 de Maio, que abrigou instalações e uma séria de conferências. Ali procurou-se interagir com a arquitetura e o entorno urbano. Um borrifador de nuvem junto à piscina (12), os quadros na torre de escadas (13), as cores nos vidros ao longo da rampa (14), intervenções que trouxeram novas visões do edifício e sua vizinhança.
Talvez a mais discreta delas tenha sido a mais oportuna, pois enfoca as renovações urbanas propostas para o centro da cidade: na instalação Calçadão, de Andrés Sandoval, o espelho situado junto ao piso do calçadão alertava para a qualidade de um pavimento projetado por arquitetos da Emurb na década de 1970, em vias de dar lugar a pavimentos mais “acessíveis”. A mais visível das intervenções, o projeto Nova República, do antropólogo Hélio Menezes e da dupla Wolff Architects, destaca a vizinhança da “Galeria do Reggae”. Contudo, ficamos sem conhecer a obra desses arquitetos sul-africanos, como o centro Watershed, construído em 2014 na Cidade do Cabo, o que procura dialogar com o Sesc Pompéia de Lina Bo Bardi.
A mostra é rica na diversidade de meios expositivos, tais como vídeos, quadrinhos, instalações, modelos, tapeçarias, mas econômica em meios convencionais, desenhos técnicos e fotos. Pela complexidade do exposto, sua compreensão exige a leitura de textos explicativos, dificuldade superada pelo auxílio do serviço educativo. Pelo relato dos educadores, talvez seja mais simples para o leigo apreciar os painéis e instalações do que para muitos arquitetos, que esperam encontrar na bienal uma amostra ampla da produção dos escritórios de arquitetura.
Estamos distantes das bienais realizadas entre 1993 e 2009 no Pavilhão da Bienal, no Ibirapuera, que cumpriam esse papel. Nos anos seguintes a bienal encolheu e mudou-se para a Oca (2011), para o CCSP (2013), e espalhou-se pela cidade em pequenas mostras e atividades (2017). A bienal perdeu assim a referencia espacial de uma sede, arriscando diluir-se ao tentar ampliar sua abrangência para o espaço urbano em busca por maior interação com a população.
Ao optar agora por uma bienal compacta, proporcional aos recursos disponíveis, o IAB/SP realiza um recuo estratégico necessário, que pode consolidar o Centro Cultural São Paulo – CCSP como sua sede. Já os concursos para curadoria podem mantê-la representativa dos novos caminhos trilhados pela arquitetura contemporânea. São conquistas preciosas em um período político de incertezas e retrocessos, especialmente na área cultural. Caberá às próximas edições ampliar seu escopo e seu espaço.
notas
1
XII Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo – “Todo dia”, curadoria de Vanessa Grossman, Charlotte Malterre-Barthes e Ciro Miguel. Centro Cultural São Paulo – CCSP, 13 de setembro a 08 de dezembro de 2019; Sesc 24, 10 de setembro a 29 de setembro de 2019.
2
Os arquitetos Ciro Miguel, Charlotte Malterre-Barthes e Vanessa Grossman formam grupo atuante no Instituto Federal de Tecnologia – ETH, de Zurique.
3
Cemitério, de Salottobuono, Matteo Ghidoni, Gabriel Biselli e Luiz Solano.
4
A destruição do meio-ambiente de todo dia, de Fernando Lara, Universidade do Texas em Austin.
5
Outro público / Cruising, de Darío Graschinsky, Joaquina Echaide, Pablo Manrique, Carolina Cui Xiao e Lucia Legarreta.
6
Cidadão 156, de Carolina Passos.
7
Coletivo Arquitetura na periferia, formado por Carina Guedes, Mariana Borel, Rafaela Dias, Cenir da Silva, Cheyenne Miguel, Lívia Cristina Gonçalves, Luciana da Cruz e Aline Costa.
8
Contribuições para outra narrativa, de Ester Carro Bashalidis.
9
Coletivo Mouraria 53, formado por Alan dos Anjos, Flora Tavares, Milena de Abreu, Pedro Alban e Rodrigo Sena (organização).
10
Pesquisa realizada pelo grupo Green Technologies in Landscape Architecture da Universidade Técnica de Munique, coordenado por Ferdnand Ludwig
11
Terras, de AR Arquitetos, Arquipélago, Messina Rivas, Federico Cairoli, Luis Fernando Tavares, Rodrigo Quintella Messina, Francisco Rivas, Marinho Velloso, Helena Pessini, Marina Acayaba, Juan Pablo Rosenberg.
12
Apanhador de nuvens, do escritório Bruther, de Paris.
13
Desenhar, imaginar, desenhar, do Studio Jan De Vylder.
14
Rampante, de Wellington Cançado, Renata Marquez e Tande Campos.
sobre ao autor
Renato Luiz Sobral Anelli é Arquiteto Urbanista (PUC-Campinas 1982), mestre em História (IFCH Unicamp) 1990, e doutor (FAU USP, 1995). Professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos e Professor Visitante do Department of Art History da Columbia University, Nova York (2016). Foi Secretário Municipal de Obras e Serviços Públicos de São Carlos (2001-04). Pesquisador do CNPq e da Fapesp, desenvolve a linha de pesquisa Infraestrutura como Estratégia Urbanística desde 2005. Autor de Rino Levi, arquitetura e cidade (Romano Guerra, 2001, com Abilio Guerra e Nelson Kohn), Architetura Contemporanea Brasile (Il Sole 24 Ore, Milão, 2008) e Casas de vidro (Romano Guerra, 2018).