A contribuição de Mariza Veloso em seu livro O tecido do tempo – o patrimônio cultural no Brasil e a academia Sphan. A relação entre o modernismo e o barroco é relevante principalmente no entendimento de uma visão acerca do surgimento do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, instituição federal responsável pelo tombamento em nível nacional, com foco nas relações pessoais entre seus idealizadores que tiveram como resultado práticas de preservação no Brasil. A autora é cientista social com doutorado em antropologia, além de docente na Universidade de Brasília. A expressão Academia Sphan cunhada pela autora, de acordo com Maria Cecília Londres Fonseca (1), é adequada para caracterizar a função que o Sphan também exerceu no campo da produção do conhecimento sobre história do Brasil.
A pesquisa é resultado de sua tese de doutorado de 1992 e foi publicado em 2018 como livro. O livro é caracterizado por uma visão antropológica da criação do Sphan, pois leva em consideração, além da conjuntura política e social da época – década de 1930 –, o grupo de intelectuais que se envolveu efetivamente no projeto, especificamente sua visão sobre o que deveria ser reconhecido como patrimônio e por quais motivos.
O caráter antropológico aparece na pesquisa de Mariza Veloso quando a autora lida com os valores apreciados pelo grupo de intelectuais, trazendo para o debate o processo de entendimento das memórias e histórias dos membros do grupo fundador do Sphan. As fontes utilizadas na pesquisa, além de documentos oficiais do órgão público, alcançam a representação pessoal do grupo, abrangendo também crônicas, cartas e escritos. O destaque é dado a dois integrantes do grupo de intelectuais: Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade, ambos figuras emblemáticas do modernismo brasileiro e da criação do Sphan. Rodrigo foi seu primeiro presidente e forte símbolo da denominada fase heroica, enquanto Mario é um dos mais expressivos nomes do modernismo brasileiro. Além deles, outros personagens aparecem para contar uma história do Sphan, como Gustavo Capanema, Abgard Renault, Ascânio Lopes, Carlos Drummond de Andrade, Francisco Campos, João Alphonso, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Alcides da Rocha Miranda, Cândido Portinari, entre outros. Eles eram o grupo de intelectuais aos quais a autora se refere, alguns com mais relevância do que outros, no que diz respeito às iniciativas pessoais que inventariaram um certo pensamento do que representou os primórdios do patrimônio nacional. A história desse grupo é colocada pela autora mostrando suas articulações e movimentação política durante o Estado Novo, o que caracterizou um estudo pioneiro sobre os bastidores do Sphan por meio da memória de seus fundadores.
O trabalho da autora aborda temáticas específicas de interesse de estudiosos em patrimônio brasileiro, apresentando um caráter historiográfico em que se valorizam as relações pessoais entre o grupo de intelectuais que fez parte da criação do Sphan. O livro apresenta linguagem clara, objetiva e a leitura é fluida. Por vezes, devido em parte à intenção da autora em entender as relações pessoais dos fundadores, o leitor pode ter a impressão de estar diante de uma descrição quase biográfica acerca do grupo de intelectuais tratado pela autora, cuja abordagem traz a intimidade da vida de representantes desse grupo. Essa abordagem é colocada a partir da apresentação de uma narrativa normalmente contada pelo próprio grupo, um membro fazendo referência ao outro, por meio de material produzido e divulgado pelo próprio grupo. O Capítulo II, intitulado “Narrativas e testemunhos: monumentos e biografias”, é emblemático nesse sentido, pois são trazidas crônicas, cartas e memórias de membros do grupo para contar, por exemplo, como eles se encontravam em sua juventude, como se divertiam e o papel de Minas Gerais e do Rio de Janeiro no imaginário de seus representantes mineiros e cariocas.
Essa narrativa proposta pela autora evidencia como o grupo constrói a relação entre modernismo e barroco e, em consequência, como essas referências pessoais ficam latentes na gestão inicial do Sphan e na construção da concepção de cultura brasileira a partir do patrimônio. É interessante notar que, de fato, nossas bases culturais foram interpretadas pelo Sphan tendo como referência principal o barroco, expresso principalmente no tombamento de Igrejas do século 17 e de centros históricos como Ouro Preto. Em seguida, o modernismo entra em cena com o reconhecimento como patrimônio de exemplares desta vanguarda, como o edifício do Ministério da Educação e Saúde – MES no Rio de Janeiro. Mariza revela como as impressões expressas pelos intelectuais são, por vezes, carregadas de paixão e envolvimento pessoal por essas expressões artísticas, e a autora demonstra que justamente a valorização pessoal do barroco e posteriormente do modernismo pelo grupo está presente na criação e construção biográfica do Brasil pelo viés do patrimônio promovida pelo Sphan. Deste modo, o livro busca atrelar atitudes pessoais e profissionais do grupo de intelectuais, o que traçou sua atuação e caracterizou em parte a relação entre modernidade e tradição que se fez presente na construção simbólica da historiografia do Sphan, estudo que foi abordado na literatura por outros autores – Márcia Chuva, Maria Cecília Londres Fonseca, José Carlos Reis, Thiago Pereira Perpétuo etc.
São cinco capítulos que compõem o livro, que possui um total de 457 páginas. O primeiro capítulo, chamado Arqueologia da modernidade no Brasil, traz uma análise detida nas formações discursivas que caracterizaram o modernismo brasileiro, levando à construção de uma história patrimonial do Brasil que teria tido início com o barroco mineiro. O segundo capítulo apresenta um caráter biográfico, trazendo documentos e testemunhos que têm como enfoque mostrar a relação de amizade e comprometimento entre os representantes do grupo de intelectuais. Não há, entretanto, uma análise crítica mais detida a partir desses dados biográficos, tendo estes uma característica discursiva. O capítulo 3, intitulado Nasce a Academia Sphan, supre em parte esta carência do capítulo anterior. As articulações existentes dentro do grupo de intelectuais, os conflitos observados e a estruturação que foi sendo feita no Sphan conta uma história de como se estabeleceu um pensamento que relaciona modernidade e tradição, esta representada pelo barroco.
Os Capítulos 4 e 5 são dedicados respectivamente a Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade. A intenção da autora é aprofundar a análise no conhecimento dessas figuras, que foram de extrema relevância para a construção do patrimônio brasileiro. Ambos os capítulos são escritos de modo a conhecer esses personagens por meio de descrições, poemas, testemunhos ou publicações sobre eles. Por vezes, entretanto, a análise tem um caráter elogioso. Um exemplo é o fechamento do capítulo 4, sobre Rodrigo, em que a autora coloca que “finalizando este capítulo, recorremos a Lucio Costa, que, pela intensa e permanente convivência que manteve com Rodrigo, consegue realizar uma síntese precisa sobre a lição que nos legou” (p. 334, grifos nossos). Ainda assim, a autora deixa claro na maior parte do tempo a origem das opiniões e impressões por ela colocadas acerca de ambos, que vão sempre no sentido de enaltecer as figuras de Rodrigo e de Mário. Sua intenção foi a de mostrar a relevância desses personagens na esfera pública enquanto cidadãos, enquanto amigos e enquanto intelectuais, lançando mão de uma análise que, nas palavras da autora, tem o intuito de “tornar visível” traços de personagens da cultura brasileira.
As considerações finais de Mariza Veloso Motta Santos focam na retomada de como um conjunto de valores foi articulado pelo grupo fundador da instituição Sphan para construí-la aos moldes de seus interesses, além de destacar o processo de consolidação do patrimônio brasileiro a partir de referências tidas como importantes pelo grupo, com destaque para a análise de suas memórias. A argumentação de Mariza busca auxílio de autores consagrados como Jacques Le Goff e Michel Parent para tratar o tombamento como um rito social, colocando a questão da transmissão de valores às gerações futuras como um importante legado da Academia Sphan.
notas
NA – A resenha foi produto da disciplina História e Historiografia da Cidade, do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, no primeiro semestre de 2019, lecionada por Maria Fernanda Derntl.
1
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2017.
sobre a autora
Daniela Pereira Barbosa é doutoranda em arquitetura e urbanismo na Universidade de Brasília, mestre e graduada em design pela mesma universidade.