Quanto faças, supremamente faze.
Mais vale, se a memoria é quanto temos,
Lembrar muito que pouco,
E se o muito no pouco te é possível,
Mais ampla liberdade de lembrança
Te tornará teu dono
Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis (1)
Existe um difundido gênero da história da arquitetura moderna cuja obsessão fundamental consiste em esforçar-se em descobrir as dívidas, as filiações, as heranças, enfim, tudo o quanto há na obra de seus protagonistas daqueles que viveram antes. Quem participa dele se pergunta quanto há de classicismo em Le Corbusier ou Mies, quanto de neoclassicismo nas arquiteturas modernas latino-americanas, quanto de Gunnar Asplund em Alvar Aalto, quanto de Louis Sullivan em Frank Lloyd Wright, quanto de Wright no primeiro Vilanova Artigas, quanto de Le Corbusier no segundo, e assim sucessivamente. Geralmente, essa estratégia não decepciona seus autores: permite ancorar personagens e objetos em uma história de aparência sólida, satisfazendo estes historiadores, que desfrutam felizes do resultado. Nessa maneira de fazer história, mais próxima da comprovação superficial do que da verdadeira genealogia e recordação respeitosa, os personagens não parecem ser arremessados, como o Angelus Novus de Walter Benjamin, em direção a um futuro incerto, voltando seus olhares para a catástrofe da qual fogem, mas nos são apresentados como lentos caminhantes, incapazes de perder de vista esse passado. Tal modo implacável de ver o que alguma vez foi novo ou inovador como projeção de alguma epopeia pretérita nos furta a outra importante metade, a que nos permite perguntarmos quanto ha via de porvir nessas propostas que a alguns incomodava e a outros preenchia de vertiginoso prazer.
Um dos méritos que encontramos na pesquisa (2) de Marcio Cotrim, agora convertida em livro, sobre a obra de Vilanova Artigas entre 1967 e 1985 – os quase vinte últimos anos de sua vida – é o distanciamento desse coro de historiadores sempre seguros do que afirmam. Evitando mecanismos apriorísticos, o autor trabalhou com uma grande quantidade de material original do período analisado disponível no arquivo de Vilanova Artigas, visitou e experimentou suas casas, conversou com seus proprietários e recolheu valiosos depoimentos. Além disso, realizou um trabalho de análise metodologicamente impecável no qual se destacou o interesse pela obra e a necessidade de revelar o modus operandi do autor, buscando recordar o “muito no pouco”, como diz o poema de Fernando Pessoa citado pelo próprio Artigas em seu texto O desenho, de 1967. E devemos reconhecer que não é tarefa fácil o desafio de analisar obras e projetos estilisticamente tão diferentes como as casas Elza Berquó, José Mário Taques Bittencourt III, Ariosto Martirani, Alfred Günther Domschk e, Juvenal Juvêncio, Elias Calil Cury ou José Vieitas Neto. Na confrontação com a doxa arquitetônica de sua época, expressada pela jovem crítica brasileira desencantada frente aos dogmas modernos reinantes, Artigas parece eleger dar um passo atrás, talvez para não ficar completamente isolado.
Construir a casa paulista também pode ser interpretado como construir o futuro paulista. Além do rigor e da clareza que expressam as análises gráficas dos projetos, Marcio Cotrim demonstra um evidente interesse em vincular o personagem com seu devir e com o mundo que o rodeia. No fundo, não se oculta uma intenção de restaurar, de recuperar valores perdidos e transmiti-los para que ninguém os esqueça. E dentro dessa preocupação – saudável em um pesquisador muito jovem – é possível ver como estão latentes perguntas que tornam esta obra novamente atual. Se Artigas desenhava e construía “a casa paulista” para uma sociedade futura, qual era sua ideia desse futuro? Esse porvir era um ou vários possíveis? Era necessariamente bom? Era como o regresso ao passado consolador de Notícias de lugar nenhum, de William Morris, ou como o “futuro ” de 1984, de Orwell? Com que singular paixão olhava em seu tempo os conflitos políticos do pós-guerra, ou os avanços tecnológicos como a física nuclear ou a exploração espacial, ou os movimentos sociais e urbanos que se seguiram a 1945, enfim, o mundo que o rodeava no momento em que seus projetos começavam a falar com voz própria? Como pensava Artigas o porvir, em particular o do “país do futuro” anunciado por um Stefan Zweig, que se suicida no Rio de Janeiro no mesmo ano 1942 em que Artigas constrói sua primeira obra, a casinha em São Paulo, e Oscar Niemeyer, o Yatch Club em Pampulha? Que companheiros de rota imaginava Artigas – esse irmão mais velho ao qual aludia Fábio Penteado em 1970 – em sua marcha em direção ao porvir?
As dúvidas e dilemas que cercam a trajetória de Artigas durante o principal período enfocado pelo livro, de 1967 a 1985, mantêm correspondências profundas com a complexidade e as ambiguidades presentes no desenvolvimento da arquitetura brasileira, imbricada no processo de desenvolvimento do próprio país. O protagonismo ocupado pela obra do arquiteto é tão expressivo que vai torná-la paradigmática a ponto de se espraiar por várias regiões para além das fronteiras paulistas. Edificações com características da “escola paulista” – muitas vezes resumidas a aspectos formais e estruturais, estando ausente o vigor ideológico do mestre – vão surgir em estados do Nordeste, na região central, em especial Goiânia e Brasília, no sul, principalmente no Paraná, e até mesmo no Rio de Janeiro. Dos arquitetos envolvidos, alguns são do próprio local, quase sempre após estudarem arquitetura em São Paulo, mas a maioria é formada por paulistas migrantes que buscam oportunidades de trabalho em outras cidades e regiões, em um momento de expressivo desenvolvimento econômico no país.
A arquitetura muitas vezes transformada em fim, com o recalque de sua ambição transformadora, é modalidade adequada à burocracia e à tecnocracia vigentes no período do milagre econômico promovido pela ditadura militar. Em ritmo acelerado, as grandes empreiteiras surgidas nesse momento erguem por todo o país construções de grande porte – edifícios empresariais, sedes bancárias, obras de infraestrutura, barragens etc. –, processo vigoroso e impactante, mas incapaz de soterrar a face obscura do fenômeno: o contraste entre duas cidades equivocadas. De um lado, o inferno urbano constituído pela periferia amorfa e sem fim; de outro, o encastelamento das camadas abastadas em guetos guardados por grades e câmeras de vigilância. Assim, as grandes estruturas em concreto armado exprimem, no contexto social da época, a pujança e o progresso econômicos promovidos pelo regime autoritário, situação que dá solo à crítica de Sérgio Ferro, que enxerga na arquitetura defendida por Artigas uma lógica de organização do canteiro de obras adequada à exploração e alienação do trabalho promovida pelo capital.
O texto de Marcio Cotrim tenta escapar das armadilhas presentes nas leituras antípodas, que louvam ou criticam Vilanova Artigas, e busca compreender os movimentos do arquiteto no período como uma alternativa de atuação com dimensão coletiva, onde fosse possível a conciliação entre as apostas no desenvolvimento e na luta necessária pela democracia, mesmo que esta fosse feita no recolhimento e na escala pequena de sua obra residencial. Assim, não é casualidade que seus clientes fossem professores universitários, amigos, companheiros de militância, com os quais compartilhava desejos e valores existenciais próprios de toda uma geração, agora no refluxo devido à repressão em curso.
Com o golpe militar de 1964, todos experimentaram suas consequências, a ameaça de exílio, a repressão, a sensação de vergonha de viver em uma sociedade que parecia rendida ou a frustração de não poder dar respostas. Ainda que Marcio Cotrim verifique que nas obras de Artigas posteriores a estas datas permanecem vivos conceitos que seguem caminhos abertos pelo racionalismo – os dispositivos distributivos, a nitidez estrutural, as separações funcionais ou a clareza da circulação –, seu trabalho se aplica a indagar sobre o que é novo e específico. Ele permite apreciar as distintas camadas expressivas e as mudanças no modo de vida: desde a maneira de fechar-se à rua e ocupar a parcela, modular a composição, proteger e formalizar os espaços, utilizar as rampas ou as envolventes estruturais únicas, controlar o movimento das sombras nas fachadas ou emoldurar o que veem seus ocupantes. Nos coloca, assim, diante da pluralidade de significados presentes no substantivo “casa” na obra de Artigas, e da obrigação de percorrê-los como a melhor homenagem ao seu legado.
notas
NE – Texto publicado originalmente como apresentação do livro. ALVAREZ PROZOROVICH, Fernando; GUERRA, Abilio. Construindo a casa paulista. In: COTRIM, Marcio. Vilanova Artigas. Casas paulistas 1967-1981. São Paulo, Romano Guerra, 2017. p. 6-11.
1
PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Apud ARTIGAS, Vilanova. O desenho. In: Caminhos da arquitetura. Vilanova Artigas. Organização Rosa Artigas e José Tavares Correia de Lira. 4ª edição ampliada. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 118.
2
O presente livro é baseado no seguinte trabalho acadêmico: COTRIM, Marcio. Construir a casa paulista: o discurso e a obra de Vilanova Artigas entre 1967 e 1985. Orientadores Fernando Alvarez Prozorovich e Abilio Guerra. Tese de doutorado. Barcelona, ETSAB UPC, 2008.
sobre os autores
Fernando Alvarez Prozorovich é arquiteto, professor de História da arte e da arquitetura da ETSAB UPC, de Bardelona, diretor do Master Restauración de Monumentos. É autor, dentre outros livros, de La Ricarda (1996), Antonio Bonet 1913-1989 (1996), Bonet Castellana (Barcelona, 1999), e responsável pelo restauro da Casa La Ricarda, projeto do arquiteto Antoni Bonet Castellana.
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora. É coautor de Rino Levi – arquitetura e cidade (com Renato Anelli e Nelson Kon, 2001), e autor de O primitivismo em Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Raul Bopp (2010) e Arquitetura e natureza (2017).