A cidade de Nova York é mais que cinematográfica. O que tem o caminhar em suas ruas, direcionado pelo norte-sul de seu grid? O que tem sua música, celebrada cotidianamente em cada pequeno jazz bar? O que tem o entusiasmo do imigrante que chega sem saber onde chegou? É difícil transmitir o caráter de uma cidade que todo o mundo e, ao mesmo tempo ninguém, chega a apreender. “Um retrato é sempre uma representação idealizada de seu sujeito” (1), diz Michael Sorkin.
Michael Sorkin, ativista, escritor, professor, arquiteto e urbanista, foi o fragmento mais colorido do pensamento urbano de sua era em Nova York. Assim como a cidade, Michael era ao mesmo tempo enigmático e explícito. Sua voz, sempre provocadora e crítica, reunia de maneira aberta e acolhedora a polifonia das demandas de sua cidade, e do mundo inteiro que ela sempre, pretensiosa, acredita conter. A crise mundial de saúde que nos acomete, leva dia-a-dia a vida de muitos. Para a comunidade de arquitetos e urbanistas formados e enraizados culturalmente na cidade de Nova York, a guerra que mal começou já está pra lá de perdida.
Com o olhar sobre uma Nova York dura e imperfeita, que leva o coração do mundo e aprisiona por paixão, escrevo sobre Michael Sorkin, para equilibrar, com as cores e a beleza de seu pensamento, o peso e o abandono que seu falecimento em 26 de março de 2020 por Covid-19 deixou em nós. Apesar de seus 71 anos, não podemos dizer que sua saúde fosse frágil. Pelo contrário, sua força vital era tamanha que nunca se rendeu às crises de uma doença grave que o assombrou repetidas vezes. Essa mesma doença, o fazia extremamente consciente da vida. Sua vivacidade tinha certo magnetismo.
Entre 2017 e 2018 nos encontrávamos às quintas-feiras, em reuniões do corpo docente da Spitzer School of Architecture (The City College of New York – City University of New York), onde Michael Sorkin coordenava o programa de mestrado em Urban Design. O contexto era crítico: a única faculdade pública de arquitetura da cidade de Nova York estava sem decano. Os professores mantinham suas disputas departamentais de maneira não menos pública nem menos pessoal do que observamos nas universidades brasileiras. Naquele momento, a cidade e a comunidade do City College se via ameaçada pelas novas políticas de imigração implementadas por Trump. Várias reuniões eram tomadas por essa temática e se desdobravam em instruções sobre como prosseguir se a polícia invadisse a sala de aula para deportar seu aluno. Michael tinha sempre um papel múltiplo: era o filósofo e o comediante, o professor e o aluno, quem provocava e quem resolvia. Sua expressividade era sempre literária. Michael falava como quem desenha. O sentido de seu humor era não só indissociável de seu inglês, impecável e profundo, mas também da cultura da cidade. Certa informalidade protege a cultura americana de seu individualismo. Naquelas reuniões, as falas de Michael sempre equilibravam as dores das feministas, o ego dos arquitetos e as preocupações administrativas. Com ou sem decano, a identidade da Escola se afirmava na inteligência de Michael Sorkin, que representava, sempre com orgulho, os ideais democráticos que a instituição defendia desde sua origem. Em 2020, já não se pode dizer que “o público” lá não seja público aqui. Ainda que os direitos de cidadania sejam regulamentados (e violados) localmente, as pessoas se movimentam com tal agilidade transnacional, que todas as culturas e Escolas podem hoje ser entendidas como complementares e indissociáveis. O legado de Michael a Nova York, é também nosso.
Uma das características mais únicas de sua prática profissional é a concomitância de quatro vocações, todas potentes na mesma escala e indissociáveis em seu pensamento: a prática projetual, o ativismo político, a escrita literária e o ensino.
No ambiente acadêmico, Michael sempre vestiu a camisa da universidade pública, mas transitou entre muitas universidades renomadas, como Cornell, Harvard, Yale e também na Europa a Academia de Belas Artes de Viena (onde ensinou por quase dez anos) e Architectural Association em Londres. Sua relação com o City College era intensa e sempre crítica. Lesley Lokko, atual decana da Spitzer School of Architecture do City College, e porta-voz da tragédia na quinta-feira dia 26 de março de 2020, descreveu a participação de Michael no ambiente acadêmico como “anti-estilística” e “poli-sinfônica”:
"Ele dirigiu a escola para longe de tendências, estilos e silos disciplinares, para uma missão profundamente poli-sinfônica de criar formas e tecnologias novas, equitativas, bonitas e sustentáveis para a cidade e a vida urbana. Sua impressionante produção na escola, em sua organização sem fins lucrativos, Terreform, em sua prática e, como crítico e escritor, foi acompanhada por sua generosidade sem limites para todo o departamento e além. Michael contribuiu incansavelmente para a carreira de muitos sem hesitar e imbuiu todos os eventos da faculdade com uma inteligência e um humor alegres e travessos" (2).
Há muitos anos, visitei-o em seu estúdio, quando ele trabalhava um mesmo contexto urbano paralelamente com alunos em Harvard e no City College. Michael me mostrou dois desenhos, um de cada universidade. O de Harvard era impecável: preciso, bem impresso, convincente, claro, propriamente legendado. O do City College era colorido, ambíguo, parecia sujo por umas 20 mãos e tinha duas camadas sobrepostas que não coincidiam. Michael sorriu, apontou para o desenho do City College com orgulho. Eu, ex-aluna de ambas, me senti igualmente mais identificada com o segundo grupo.
Uma característica marcante em Michael era sua generosidade e prontidão. Respondia mensagens de todos com enorme consideração. Estava sempre mergulhado em uma lista de trabalhos que superava o passar de suas horas. Trabalhava todos os finais de semana (pelo menos aos sábados) e, como bom nova-iorquino, estava sempre “on to something”. Tinha um conhecido limite de atenção, sua mente se movimentava com tanta agilidade entre assuntos, que era difícil acompanhá-lo e mesmo entretê-lo por mais de cinco minutos. Estava sempre na frente, sem pretensão, era sincero em seu hábito de desconversar. Nos últimos anos, parecia administrar uma crescente ansiedade e inquietude, se fazia cada vez mais impaciente aos academicismos e qualquer forma de pompa ou ritual de auto-afirmação. Aos setenta anos mantinha intensa energia revolucionária. Direcionava seus interlocutores ao bar mais próximo e acreditava que um martini era excelente mediação intelectual. Um favorito seu era o bar Ear Inn, no bairro onde morou e trabalhou nos últimos quem sabe quarenta anos de sua vida em Manhattan. Michael reconhecia todos os detalhes daquele cenário autêntico da ilha, um bar escuro e bagunçado desde 1817, que no verão permite o consumo de álcool na calçada, ao redor de uma árvore grande, protagonista da última quadra antes do Rio Hudson na Spring Street.
Em 2018, no texto de abertura da exposição Metrophysics no City College, Michael reafirma a aproximação entre o pensamento arquitetônico e a escala urbana, tão característica de sua obra. O estabelecimento do Masters in Urban Design nos Estados Unidos (um programa de pós-graduação em projeto iniciado pela Harvard Graduate School of Design no final da década de 1950), registra uma convergência disciplinar que em muitos países, como Brasil, Espanha e França foram lentamente divididos entre “arquitetura” e “urbanismo”. No pensamento de Michael, os dois domínios são um só e se aproximam sempre em suas descrições através do par “equidade” (social) e “beleza”.
“A arquitetura vive como objeto e agregaçãoo: edifícios e cidades. Se a busca de um ambiente sustentável, equitativo, bonito e rico em diferenças é comum em todas as escalas, a valência desses valores varia de acordo com a situação” (3).
Os projetos apresentados, tinham intenções “tanto práticas quanto polêmicas”, como o conjunto do trabalho de uma equipe que opera às vezes como um escritório de arquitetura tradicional (que responde a um cliente específico) e às vezes como uma prática de pesquisa que formula sua própria meta de investigação e intervenção. Em 2005, o Michael Sorkin Studio passou por uma “mitose" com a fundação de Terreform. Em sua trajetória de trabalho de ativismo, Michael Sorkin buscava estabelecer um modo de prática profissional que fosse mais transparente com relação ao não-comercial em projetos de ambições provocativas e utópicas.
“Sem querer desistir da perspectiva de construção ‘comum’, formalizamos a divisão conceitual em uma prática arquitetônica ‘direta’ e em uma organização que realiza pesquisas, intervenções não solicitadas, publicações e proposições. O estúdio trabalha em um único espírito, com foco nas questões da cidade, em sua morfologia, sistemas de equidade e comportamento metabólico” (4).
A virada, que levou à fundação de Terreform em 2005 e Urban Research em 2015, tratava de apresentar a prática de um arquiteto que se liberava das demandas do cliente e escolhia seus terrenos de atuação de maneira crítica. Os projetos de ativismo aparecem às vezes no portfólio do escritório com a localização “anywhere”. Como House of the Future e Retirement Community 2030. Outros são extremamente enraizados em uma localidade, como South Side Stories e Open Gaza, publicação em processo de conclusão, que reúne estudos na região promovidos ao longo de muitos anos pelo arquiteto, colegas e alunos.
A predominância de projetos comerciais desenvolvidos na China é notável entre 2010 e 2020. Michael colaborou ativamente em uma série de convocatórias comerciais para formular visões para cidades, edifícios e regiões. A região de Wuham na China, local de início da epidemia Covid-19, aparece no portfólio de Michael Sorkin Studio 3 vezes: Houguan Lake Ecological City (2010), Wei River Ecological Corridor (2011) e Wuhan Qingtan Lake Ecological Tech Park (2014).
A formulação de um pensamento urbanístico comprometido ecologicamente é uma de suas pautas há muito tempo. No entanto, desviava o atual sobre-uso dos termos sustentabilidade e ecologia a princípios de convívio e sociabilidade, promovendo um urbanismo baseado em características específicas, não genéricas, do meio ambiente físico e cultural. Uma de suas iniciativas mais importantes e ativas recentemente é New York (Steady) State. Nela, Michael buscava promover a concepção de uma cidade autônoma, capaz de “cooperativamente se defender em áreas cruciais para sua própria respiração” (5). O arquiteto enfatiza a importância das escalas urbanas para evitar que uma concepção de urbanização “grande demais” impeça o sucesso do planejamento urbano como um todo.
“Estamos executando esse experimento, no entanto, para tentar superar a redução muito geral da ‘sustentabilidade’ a uma série de problemas físicos a serem resolvidos por meios técnicos, isolados de sua interação contingente entre si e de seu papel estrutural de reforçar e expandir a comunidade humana. Imaginando uma vizinhança completa que coloca todos os requisitos básicos da vida cotidiana – trabalho, recreação, cultura, comércio etc. – do perímetro do caminhar perto de casa, resultam certos efeitos indiretos. […] O foco particular de nossa pesquisa tem sido a escalabilidade – e a sociabilidade potencial – de várias formas de metabolismo urbano, incluindo nutrição, energia, mobilidade, fornecimento de ar e água, gerenciamento térmico, construção, circulação de recursos, resíduos e manufatura” (6).
Outra atuação frequente de Michael em seus escritos e projetos é a crítica sobre o papel da tecnologia e a manipulação de informações sobre os indivíduos e seus comportamentos na cidade, a atuação obscura de um grande “big brother”, como se referia a Google, que substitui por interesses capitais (de venda de perfis mercadológicos) a possibilidade de uma tecnologia “produzida socialmente” no cotidiano da cidade. Michael atacava o conceito de smart city, difundindo às vezes o que chamava de wise city.
“Mas qual é o sonho? Como a resistência a essa manipulação desestabilizada pode ser libertadora e criativa? E como as cidades podem salvar suas próprias singularidades importantes e a viabilidade do planeta que compartilham? Acredito que agora, mais do que nunca, a cidade verdadeiramente sábia deve começar com uma profunda apreciação de seus fundamentos imemoriais, individuais, com as especificidades de suas situações culturais e bioclimáticas, e olhar criticamente para a tecnologia para reforçá-las e ampliá-las. Isso exige o reconhecimento de que a tecnologia é produzida socialmente e nunca neutra, uma escolha em ambos os lados, invenção e implantação” (7).
Michael foi escritor do jornal Village Voice na década de 1980, um espaço no qual alcançou grande prestígio em meio aos debates do alto pós-modernismo do final do século 20. Recentemente escrevia em The Nation. Dos livros que publicou, vale destacar “Twenty Minutes in Manhattan” e "Exquisite Corpse”. Ambos navegam o ambiente construído, arquiteturas e seus autores com um olhar que sempre se movimenta poeticamente entre a história, a ética, o estético e o político.
Em 2018, em sua última visita ao Brasil, Michael descreveu São Paulo em poucas palavras: “A colisão das estruturas esclarecedoras da modernidade com uma vontade de caos forçada pela indiferença ambiental do capital e pelas múltiplas corrupções do político” (8). Sua visão sobre a cidade era crítica, seu desdém sobre a ordem do automóvel, incontrolável, o incomodava. Seu amor por Nova York aparecia em todas as suas falas, quando comentava sobre outras cidades carregava sempre a certeza de estar no lugar certo. Se interessava por outras culturas com a humildade de quem nunca poderia abandonar sua especificidade, principalmente seu idioma. Seu cotidiano, no entanto, era bastante duro, como o da maioria das pessoas ali. Seu ativismo, custava caro. Seu bairro, há muito tempo expulsava seus moradores. Professor em uma escola pública, ativista que dedicava a maior parte de seu tempo a projetos sem fins lucrativos, Michael se entregava incessantemente a construção de sua cidade e a recuperação do imaginário das novas gerações. Acreditava nos jovens e acompanhava um grupo enorme de pessoas que tinham afinidades com seus ideais. Michael me acompanhou de volta ao Brasil, e me impulsionou a contribuir a cidade do Rio de Janeiro e a Universidade Federal do Rio de Janeiro com a fé de um grande amigo, visionário guia que inspirava em cada um aquilo que lhe é mais autêntico. A guerra agora é muito solitária, mas a aura do mundo que Michael tornava possível imaginar une pessoas que seguirão juntas, em todos os países, para defender a possibilidade de cidades mais igualitárias e mais bonitas.
notas
1
SORKIN, Michael. Hamburg City Portrait. Hamburgo, Alemanha, 1999 <http://www.sorkinstudio.com/hamburgcityportrait>. Tradução livre da autora.
2
“He steered the school away from trends, styles, and disciplinary silos to a deeply poly-symphonic mission of creating new, equitable, beautiful, and sustainable forms and technologies for the city and urban life. His staggering productive output at school, at his nonprofit, Terreform, at his practice, and, as a critic and writer, was matched by his boundless generosity to the entire department and beyond. Michael contributed tirelessly to the career of many without hesitation and imbued every faculty event with a joyful, mischievous wit and intellect”. LOKKO, Lesley. Remembering Distinguished Professor Michael Sorkin. Nova York, The Bernard and Anne Spitzer School of Architecture at The City College of the City University of New York, 2020 <https://ssa.ccny.cuny.edu/blog/2020/03/27/distinguished-professor-michael-sorkin>. Tradução livre da autora.
3
“Architecture lives as both object and aggregation: buildings and cities. If the pursuit of an environment that is sustainable, equitable, beautiful, and rich with difference is common at every scale, the valence of these values varies by situation”. SORKIN, Michael. Metrophysics. Nova York, The Bernard and Anne Spitzer School of Architecture at The City College of the City University of New York, 2018 <https://ssa.ccny.cuny.edu/events/metrophysics>. Tradução livre da autora.
4
“Not wanting to give up the prospect of “ordinary” building, however, we formalized the conceptual split into a “straight” architectural practice and an organization doing research, unsolicited interventions, publishing, and propositions. The studio works in a single spirit with a focus on questions of city, on its morphology, systems of equity, and metabolic behavior”. SORKIN, Michael. Metrophysics (op. cit.). Tradução livre da autora.
5
SORKIN, Michael. New York City (Steady) State <https://www.terreform.info/nycss>. Tradução livre da autora.
6
“We’re running this experiment, however, to try to overcome the too general reduction of “sustainability” to a series of physical problems to be solved by technical means in isolation from their contingent interaction with each other and from their structural role in reinforcing and expanding the human community. By imagining a complete neighborhood that places all the basic requirements of everyday life – work, recreation, culture, commerce, etc. – within walking compass of home, certain knock-on effects result. […] The particular focus of our research has been on the scalability – and potential sociability – of various forms of urban metabolism, including nutrition, energy, mobility, air and water supply, thermal management, construction, resource circulation, waste, and manufacturing”. SORKIN, Michael. Artigo sem título, 2018. Texto não publicado enviado a autora, apresentado oralmente em 27 de novembro de 2018 em São Paulo. Tradução livre da autora.
7
“But what’s the dream? How can resistance to this destabilized manipulation be both liberating and creative? And how can cities save both their own important singularities and the viability of the planet they share? I believe that now, more than ever, the truly wise city must begin with a deep appreciation of its immemorial, individual, fundamentals, with the specifics of its cultural and bio-climatic situations, and look critically to technology to reinforce and extend them. These demands recognizing that technology is socially produced and never neutral, a choice on both ends, invention and deployment”. SORKIN, Michael. Artigo sem título (op. cit.).
8
“The collision of the clarifying structures of modernity with a will to chaos forced by the environmental indifference of capital and the manifold corruptions of the political”. A palestra de Sorkin em São Paulo ocorreu em novembro de 2018, no seminário "São Paulo: evolução radical", no Insper, quando foi lançado o livro que conta com sua participação: CORREA, Felipe (Org.). São Paulo – uma biografia gráfica. São Paulo/Austin, Romano Guerra/University of Texas Press, 2018.
sobre a autora
Marina Correia é arquiteta (The City University of New York, 2006), mestre em arquitetura (Harvard University Graduate School of Design, 2013), doutora (FAU USP, 2018), e professora de projeto de arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 2018.