O título desta resenha procura adensar a essência do livro e do filme Konder – o protagonismo da simplicidade, documentos de cultura criados pelo arquiteto e estreante cineasta Igor de Vetyemy que, com palavras e imagens em movimento, capturou os principais fatos da vida e da obra de Marcos Konder Netto. Arquiteto graduado em 1950, Konder nasceu no ano de 1927, em Blumenau, Santa Catarina, é habitante da cidade do Rio de Janeiro desde 1938, foi colega de Antônio Carlos Jobim no início do curso e, ainda estudante, realizou para o compositor a sua primeira obra de arquitetura de interiores.
Igor de Vetyemy, à semelhança de Marcos Konder Netto, é também professor e presidente do Departamento do Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil. No livro e no filme-documentário (1), Vetyemy fundamenta-se nas temporalidades estéticas e políticas em que se desenvolveram as realizações profissionais e pessoais do protagonista, acentuando que a obra de Konder reproduz a modernidade do século vinte. Evidencia-se, dessa maneira, que texto e imagens, organizados com métodos e ferramentas racionalmente ordenados, narram a sintaxe e a arte de (in)certo modernismo, o qual, gerado na vertente das arquiteturas ativistas, traduziu o desejo de compensar enorme e insuperável dívida social.
A pedagogia do humanismo, cuja noção foi sedimentada no século vinte em tempos de guerras e pós-guerras mundiais, mostra a simpatia com que os autores – biógrafo e biografado – reafirmam que a condição humana, apesar do formalismo, deveria superar o peso do desenho arquitetônico. Portanto, para Vetyemy, tempo imaginado e espaço real foram as categorias que definiram projetos e obras de Marcos Konder Netto. Nessa dimensão, experiência e discurso, positivamente afirmados em livro e filme, configuram a arquitetura onde Konder se constrói poeta e personagem.
Arquiteto de atelier, funcionário público, colaborador de Sérgio Bernardes e Affonso Eduardo Reidy, professor de Planejamento de Arquitetura na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil (atual UFRJ), anarquista adorável e comunista de coração, Konder elaborou apropriado entendimento de que a arquitetura não é apenas arte, pois é preciso concretizá-la de modo efetivo e não somente na condição de conceito (2).
Tanto no livro quanto no documentário, desenhos de projetos e fotografias de obras, junto com depoimentos e entrevistas, estruturam as narrativas com as quais Marcos Konder Netto efetivou a concretização de conceitos elaborados ao longo da sua trajetória de sucesso. A diversidade de programas arquitetônicos e as transformações urbanísticas em micro áreas que possibilitaram Konder a experimentar, mimetizar e romper as convenções dos valores modernos afirmam as suas tentativas de adesão e transgressão dos limites modernistas no campo da arquitetura brasileira.
A centralidade de sua participação histórica pode ser apreendida no texto poético que inaugura o livro. “Considerações” nomeia o tempo e o espaço, categorias da arquitetura adotadas na sua geração para superar os rígidos princípios do movimento moderno. Em sua digressão, Konder sugere que o conteúdo tem mais relevância que a forma. Torna-se óbvio, assim, que os afetos e os movimentos teóricos ali expressos demonstram que, para objetivar singular autorreflexão, ele aplica os fundamentos primeiros da dialética, criticamente construindo, destruindo e reconstruindo aqueles fundamentos.
Similar movimento, ou seja, uma espécie de “metodologia do processo” (3) pode ser encontrado no pensamento konderiano impresso no poema “O que me desagrada nos mortos”. Nesses versos livres, que poderiam ser analogias aos elementos de arquitetura do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, o arquiteto diz da rigidez e da cor. Para ele, na conjunção de verdade e ilusão, travestidas em rigidez e cor, estrutura e acabamento, estaria a consciência da necessidade de, ao mesmo tempo, celebrar e lamentar a ambígua relação entre a objetividade e a subjetividade existentes na produção diversa que caracterizaria o movimento moderno. Enfim, a realidade imaginada explicaria a prática ideológica.
Em meados de 2010, após fazer referência ao formalismo de Niemeyer, ao brutalismo de Artigas, às experiências estruturais de João Filgueiras Lima, ao regionalismo inteligente de Severiano Mário Porto e ao revivalismo de Zanine, Marcos Konder Netto escreveu: “No momento, entendo que a arquitetura contemporânea brasileira deve procurar seus caminhos valendo-se das melhores facetas das tendências anteriormente citadas, sem dogmatismos, num quadro de saudável pluralidade, o que poderá redundar numa abertura conceitual que leve os arquitetos brasileiros a exercer plenamente sua criatividade, sem necessidade de recorrer permanentemente e sem senso crítico, aos exemplos oriundos dos países desenvolvidos, onde as condições econômicas e o meio físico e social são bastantes diversos dos nossos” (4).
Do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, certamente a obra-prima de Marcos Konder Netto, diz-se que contém a cidade e a paisagem. Até mesmo a voo de pássaro, a baía de Guanabara e o Pão de Açúcar parecem render-se à invenção de Konder, pois a monumentalidade da escala do pórtico, relativamente às dimensões da moldura urbana, subjugaria as medidas dos marcos naturais à ousada transformação da paisagem. O jogo articulado de volumes é produto de um discurso modernista disciplinado, cujo referencial demonstra que o tratamento da composição e das superfícies não pode ser ilusionista. Entretanto, apesar dos limites do modernismo, é no Monumento aos Mortos onde Konder resume a visão do próprio métier, cuja essência distingue o fato de que é preciso que a arquitetura reintegre à arte o determinante simbólico para, assim, transcender o mero formalismo (5).
Quando Vetyemy desfia sequências de imagens, exibindo a grande escadaria, o elemento vertical e os percursos horizontais até o subsolo onde repousam as inertes lápides referentes à principal função do lugar, dispõe o drama do espaço que relaciona o programa e o significado simbólico. Tal intenção se mostra clara no documentário e no livro quando a plataforma elevada é exibida em cortes. Em detalhes, o desenho técnico permite melhor perceber os resultados espaciais do elemento que constitui o plano horizontal dominante. A plataforma, que é também o plano essencial de suporte, possibilita a apreensão livre da luz de onde emerge a baía de Guanabara. Nas alturas, os movimentos tridimensionais das figuras de Alfredo Ceschiatti e das linhas abstratas de Julio Catelli Filho, ora integradas ora destacadas do pórtico, traduzem os verdadeiros problemas da representação moderna. Simplicidade e complexidade aí contidas definem as reações que cercaram os momentos da Arte e da arquitetura moderna na década de 1950. Portanto, na lisa superfície da plataforma, Marcos Konder Netto, ao iludir a composição racionalista dos volumes do memorial, faz com que a pureza e a autonomia da Arte estejam a demolir a especificidade da arquitetura.
Conjugar o plano de suporte horizontal e a linha ascendente foi estratégia que Marcos Konder Netto reproduziu em outros projetos. A plataforma, embora em menor altura, e as superfícies denteadas no Restaurante Rio’s; a estrutura do pavilhão do posto Motonáutica; o movimento dominante da leve escultura espiralada que dá forma ao Monumento a Auschwitz; a resistência da envoltória em linhas horizontais que subestima a verticalidade do volume no edifício Peugeot; e o contraste das verticais marcantes no conjunto Cidade Nova do Rio de Janeiro representam as escolhas decisivas do arquiteto no sentido de opor divergências espaciais em um mesmo sistema.
Utilizar a técnica na condição de recurso e se preocupar com as verdades da beleza são as atitudes que explicam a liberdade racional de Marcos Konder Netto. Desde o quarto do casal Jobim até o espaço de desenvolvimento infantil Sarita Konder, agregando aos projetos e obras antes comentados, a sua residência, o Oleoduto Orbel, e o desenho urbano da Selva de Pedra, Konder oferece os temas, os conteúdos e os atributos para o juízo crítico da história. Para dar continuidade às referências à tradição, os deslocados planos de telhados e os rebaixos imprimem personalidade aos volumes interiores e exteriores das residências Konder e Sumares, e do Restaurante Rio’s.
No modo híbrido e, portanto, contemporâneo em termos de linguagem arquitetural, certas aproximações indicariam ainda a essência brutalista em sua obra. Na medida em que foram testemunhos de uma artisticidade supostamente livre, os projetos não-construídos articulam muitas referências e definem espécie excepcional de sintaxes de incorporação. Embora perdedores, o conjunto demonstra que esses projetos são fatos positivos. Em casos assim, técnica e arte, objetividade e subjetividade são categorias e atributos que permanecem passíveis de revisão. Beleza e precisas possibilidades construtivas prevalecem sobre os defeitos, pois as evidentes qualidades expressivas independem das deficiências constatáveis em discursos críticos predeterminados.
Na iconografia do livro e no filme, as imagens das mãos e a voz são significativas ferramentas das quais Vetyemy se utiliza para ‘descrever’ os componentes simbólicos que transcendem o mero formalismo na arquitetura criada por seu personagem arquiteto. Com a exploração dos temas que também mereceram maior profundidade, depoimentos de colegas e familiares foram registrados em tempo real, criando curiosas narrativas a serem transformadas em novos documentos. Croqui, desenhos técnicos, fotografias e comentários do protagonista a respeito dos seus trabalhos projetados e construídos se misturam a tais sequências de falas, indicando à compreensão dos leitores e espectadores, as ideias livres e premeditadas de Marcos Konder Netto.
A esse respeito, no filme-documentário, se destacam oportunamente os depoimentos de Hírcio Firmo de Miranda e Edison Musa. Colegas e colaboradores, esses arquitetos relatam fatos e registram comentários de interesse sobre o processo projetual e os papeis que desempenharam na execução de algumas obras de Konder. Para não esquecer o valor da tradição pedagógico-acadêmica, dentre outros, o depoimento de Carlos Eduardo Nunes Ferreira, professor-arquiteto, busca encontrar, na personalidade e na obra de Konder, os reflexos e as influências das teorias contemporâneas que não seguem a forma pura. Entremeadas imagens mostram Ana Lúcia, a segunda mulher de Konder, amigos e amigas, e admiradores e admiradoras elaborando narrativas em camadas. As sequências vinculam afetiva e politicamente a crença de que a obra de Marcos Konder Netto, gerada numa cultura de premissas quase-modernistas, estabeleceu um lugar humano na história da arquitetura brasileira.
o vento sopra frio esta noite
é um vento frio
e eu penso nos
garotos na miséria.
espero que eles tenham uma garrafa
de vinho.
é quando você está na miséria
que percebe que
tudo
tem um dono
e que os cadeados estão por toda
parte.
este é o modo como funciona a
democracia:
você pega aquilo que pode,
tenta manter o que pegou
e acrescentar mais ao acumulado
se possível.
é esta também a maneira de agir uma
ditadura
a diferença é que elas destroem ou
escravizam seus
dissidentes.
nós simplesmente esquecemos
os nossos.
nos dois casos
o vento segue
frio e
cortante (8).
Artista ciente que as escolhas são deliberadas, Marcos Konder Netto, o arquiteto, formula o próprio juízo crítico por meio da inspiração e da inteligência que geram a forma poética. Jovem mestre desde sempre, Konder usa a luz, a perspectiva e o plano para, sem pretextos, dar relevância ao espaço arquitetural do seu tempo.
notas
1
O cineasta Gabriel Mellin é codiretor do filme Konder – o protagonismo da simplicidade.
2
Ver: COELHO NETTO, José Teixeira. A construção do sentido na arquitetura. 3aedição. São Paulo, Perspectiva, 1977, p. 173.
3
Expressão usada em: FLORES, Laura Gonzalez. Fotografia e pintura: dois meios diferentes? São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011, p. 37.
4
KONDER NETTO, Marcos. Setenta e cinco anos de arquitetura moderna brasileira. In: GUIMARAENS, Cêça (Org.). Arquitetura e movimento moderno. Rio de Janeiro, Rio Books, 2006, p. 34.
5
Marcos Konder Netto ressalta, no filme, que a sua concepção do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial mereceu o primeiro prêmio em concurso público no ano de 1956, destacando ainda que a sua ideia inicial foi desenvolvida em parceria com o colega Hélio Ribas Marinho.
6
Expressão usada em: NETTO KONDER, Marcos. Lendo Bukowski. In: VETYEMY, Igor de. Konder – o protagonista da simplicidade. Rio de Janeiro, Rio Books, 2019, p. 104.
7
Expressão usada em: COELHO NETTO, José Teixeira. Op. cit, p. 173.
8
BUKOWSKI, Charles. Vidas na lata do lixo. In: BUKOWSKI, Charles. Charles Bukowski 1920-1994. Textos autobiográficos. Organização de John Martin. Porto Alegre, L&PM, 2013, p. 482.
sobre os autores
Cêça Guimaraens é arquiteta, professora da UFRJ e pesquisadora do CNPq.