A presente resenha crítica traz à baia a discussão conceitual sobre gestão social a partir de artigos de autoria de Ana Paula Paes de Paula, de 2005 (1), Leo Kissler e Francisco Heidemann, de 2006 (2), Airton Cardoso Cançado, Fernando Guilherme Tenorio e José Roberto Pereira, de 2011 (3), e Luis Moretto Netto; Vanessa Marie Salm e Victor Burigo, de 2014 (4). Para tanto, emerge como questão norteadora, a seguinte inquietação: estudos do modelo de gestão social tem avançado de modo a contribuir para sua consecução?
Sendo assim, admite-se como tese a proposição: a imaturidade do modelo de gestão social, tem gerado na academia certos esforços que não escapam ao ceticismo de matriz crítica nos estudos organizacionais. Sendo em grande parte, relegados às abstrações teóricas inaplicáveis em estudos empíricos, e caracterizados como utópicos. Os poucos disponíveis, limitam-se a discussão semântica, do que com seu conteúdo propriamente dito.
Cançado e colegas evidenciam suposições de Fernando Guilherme Tenório – professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública, Ebape/FGV – acerca dos significados do termo gestão social. Dentre elas, postula-se que “o conceito é uma utopia dada a sua pretensão antinômica ao de gestão estratégica”.
Nesse limiar, Paula enaltece o quão tentador é dizer que a gestão (vertente gerencialista) e o termo social (vertente societal) se complementam, pois, resultaria em uma análise reducionista, ao passo que se desconsidera o modo que as origens históricas repercutem nas práticas de gestão de cada país. Ou seja, insistir nessa suposição, revela não só ceticismo quanto a consecução da gestão social, mas também demasiada preocupação semântica do autor.
Voltando a Cançado e equipe, outra suposição de destaque, é a de que “o conceito é subserviente à realidade não-republicana brasileira”. E que o Brasil “ainda não possui uma cultura decisória voltada para o bem comum, por isso os interesses particulares se sobrepõem aos interesses coletivos, inviabilizando a gestão social” (5).
Tal argumento não revela nenhuma novidade, pois é sabido que interesses particulares permeiam em qualquer local que se habite seres humanos, pois trata-se de uma característica inerente ao ser, ou seja, não é fenômeno único e exclusivo de determinada nação.
Na verdade, argumenta-se que tal suposição é injusta e descabida ao contexto brasileiro, sobretudo por desconsiderar o processo de formação do Estado, em especial a nítida sobreposição dos interesses portugueses no período de colonização, considerado suficientemente traumático ao povo brasileiro. Assim, como reflexo, nada mais natural do que se tenha resquícios dessa sobreposição no cotidiano brasileiro. Mas também dizer que não há uma cultura de decisões coletivas, é de pronto insensato. Se assim fosse, não se falaria em democracia, tampouco em sistema representativo.
Nesse sentido, descabe considerar tal inviabilidade à consecução da gestão social no país, uma vez que o próprio termo não oferece um manual com requisitos mínimos e países aplicáveis e exequíveis do conceito. Inclusive tal prescrição, tem sido temida por Boullosa e Schommer a qual chama de “conjunto de metodologias pré-fabricadas” (6).
Em outras palavras, não faz sentido exigir a aplicação do termo na administração pública somente em determinado momento, tampouco se determinar o cumprimento de certos requisitos – como por exemplo ter uma realidade republicana –, pelo contrário, se tem justamente um processo de construção conceitual ocorrendo inclusive em momentos de transição do modelo gerencial ao de gestão social. Ou seja, os modelos de administração pública não operaram e não se operam em momentos isolados da história, mas paralelamente.
Nessa esteira, se encontra em no artigo de Ana Paula Paes de Paula reforço para tal argumento, ao apontar como desafio à concepção do modelo de administração societal, “a necessidade de alterar as históricas restrições impostas pela lógica de funcionamento da máquina estatal e a tendência à cultura política autoritária e patrimonial” (7), ou seja, é nítido que há resquícios de outros modelos de administração ainda operando na esfera pública.
Outro ponto nebuloso para Tenório acerca do termo, é que tal processo teria a pretensão de apenas sinalizar aos gestores a necessidade de pautar suas ações na sociedade e não no mercado. Tal sinalização é incompatível com os arranjos de governança pública, que embora tenham sido pensados no contexto alemão por Kissler e Heidman, para fins de discussões teóricas se mostra cabível.
Conforme estes autores, trata-se de considerar a possibilidade de se operar arranjos institucionais híbridos na governança pública, caracterizado por “diferentes mecanismos de gestão (controle hierárquico, concorrência, confiança e solidariedade)” (8). Contudo, ainda que se transforme o setor público em um empreendimento econômico, há caminhos possíveis para a consecução da gestão social. Conforme Kissler e Heidman, os atores “devem sujeitar-se aos processos de negociação, aceitar os resultados negociados e ajustar-se uns aos outros” (9) de modo a sobreviver às dinâmicas dos espaços concorrenciais. Nessa esteira, se faz necessário estabelecer a confiança entre os atores, viabilizado pela cooperação.
No entanto, Kissler e Heidman apontam cinco fatores limitantes da governança pública, dentre eles, destaca-se o que diz que “sem regras de jogo, o sucesso da governança pública se torna antes “obra do acaso” de pessoas engajadas, mas sem papéis vinculantes” (10).
Porém, ainda que se trace regras para o jogo e se conduza as relações sociais dos atores de modo substancialmente linear, exigir forçosamente seu estabelecimento, contrapõe-se à base que se assenta o consenso – colocado pelos autores como uma habilidade a ser desenvolvida pelos atores tanto em desenvolvimento de alianças, quanto em redes – qual seja, de que seu desenvolvimento ocorre por meio do diálogo e relações sociais entre os indivíduos.
Nesse sentido, como poderia se exigir regras para o jogo e ainda se preservar uma relação de confiança mútua entre esses atores. Na verdade, seria o oposto, de modo que ao se exigir dispositivos expressos, contratuais, regras claras, pontuais e bem definidas, se revela automaticamente o grau de desconfiança que se tem no processo de construção da confiança. Nesse sentido, é preciso considerar também que se trata de um processo que exige tempo, ou seja, não se constrói confiança do dia para a noite.
Considera-se que a necessidade de regras para o jogo se admitiria em caráter emergencial, uma vez que não se dispõe de tempo para tal construção. No entanto, argumento que provavelmente o autor se refira não às regras do jogo propriamente dita, mas aos princípios/pressupostos éticos universais que se espera serem cumpridos por todos os agentes da rede e/ou aliança construída.
Dentre eles, se espera a transparência dos atos, identificado como categoria de análise por Luis Moretto Neto e parceiros (11) como algo que deve operar sem restrições no modelo de gestão social. E nesse curso, o consenso seria então aprimorado e viabilizado pela Teoria da Ação Comunicativa (TAC) de Jürgen Habermas por “um acordo alcançado por meio da discussão crítica, da apreciação intersubjetiva” (12) entre os atores.
Outro fator que a princípio contribui para o ceticismo do termo, é que uma via possível para sua consecução, seria promover a participação social dos atores por meio da educação, porém isso não tem sido confirmado na prática (13). Aqui cabe ressaltar que mesmo os atores sendo dotados de capital cultural, não se tem garantias de que se terá os comportamentos esperados, tampouco se garante oportunismos – sobretudo relacionados às questões éticas. Sendo assim, para Paula esse gap “contribui para a permanência da proposta gerencial” (14) como também revela a não capacidade de consolidar alternativas para se estudar o modelo de gestão social.
Por isso argumento que é só a princípio, pois não se recomenda petrificar o status quo dos estudos em gestão social em decorrência de pesquisas que nem representativas são. Entretanto, não se objetiva com isso, prescrever caminhos futuros de pesquisas para a área, postula-se tão somente que há demasiado silogismo a partir de estudos de uma área que é ainda embrionária. Contudo, resta respeitar seu processo de amadurecimento e contribuir cientificamente para tal.
Por outro lado, cabe ressaltar os esforços de Airton Cardoso Cançado, Luis Moretto e seus respectivos parceiros, que, ao se despirem do teor prescritivo, estabeleceram bases teóricas por meio da identificação de categorias de análise para os estudos do modelo de gestão social.
Airton Cardoso Cançado, Fernando Guilherme Tenorio e José Roberto Pereira, em síntese, apontam que “a gestão social pode ser apresentada como a tomada de decisão coletiva, sem coerção, baseada na inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e no entendimento esclarecido como processo, na transparência como pressuposto e na emancipação enquanto fim último” (15).
Nessa via, Luis Moretto Netto; Vanessa Marie Salm e Victor Burigo contribuem ao dizerem que sua operacionalização é social, com a devida igualdade de condições de participação, sobretudo objetivando o “interesse coletivo de caráter público”, tendo como valor a cooperação intraorganizacional e interorganizacional e racionalidade substantiva/ comunicativa. No entanto, reconhecem que “é necessário aprofundar a sua elaboração conceitual e teórica” (16).
Com isso, afirmo que embora se reconheça o valor das contribuições das discussões teóricas sobre o tema, é fundamental o acúmulo também de estudos empíricos em um espaço temporal justo para o contexto brasileiro. Dizer que o modelo de gestão social é embrionário e pouco elaborado, é também atentar-se que ainda o é devido a poucos estudos que empregam esforços essencialmente nesse sentido. Já os outros tantos, tecem precocemente análises determinísticas e céticas que circundam os estudos em gestão social.
notas
1
PAULA, Ana Paula Paes de. Administração pública brasileira entre o gerencialismo e a gestão social. Revista de Administração de Empresas – ERA, v. 45, n. 1, São Paulo, FGV, jan./mar. 2005, p. 36-49 <https://bityli.com/5IIhA>.
2
KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade? Revista de Administração Pública, v. 40, n. 3, Rio de Janeiro, FGV, mai./jun. 2006, p. 479-499 <https://bityli.com/h1mM1>.
3
CANÇADO, Airton Cardoso; TENORIO, Fernando Guilherme; PEREIRA, José Roberto. Gestão social: reflexões teóricas e conceituais. Cadernos Ebape.br, vol.9, n. 3, Rio de Janeiro, FGV, set. 2011, p. 681-703 <https://bityli.com/2nAIF>.
4
NETTO, Luis Moretto; SALM, Vanessa Marie; BURIGO, Victor. A coprodução dos serviços públicos: modelos e modos de gestão. Revista de Ciências da Administração, v. 16, n. 39, Florianópolis, UFSC, ago. 2014, p. 164-178 <https://bityli.com/PGyfh>.
5
CANÇADO, Airton Cardoso; TENORIO, Fernando Guilherme; PEREIRA, José Roberto. Op. cit., p. 689, ambas.
6
Idem, ibidem, p. 695.
7
PAULA, Ana Paula Paes de. Op. cit., p. 44.
8
Kissler e Heidman p. 485
9
KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Op. cit., p. 494.
10
Idem, ibidem, p. 497.
11
NETTO, Luis Moretto; SALM, Vanessa Marie; BURIGO, Victor. Op. cit.
12
CANÇADO, Airton Cardoso; TENORIO, Fernando Guilherme; PEREIRA, José Roberto. Op. cit., p. 688.
13
Idem, ibidem, p. 693.
14
PAULA, Ana Paula Paes de. Op. cit., p. 43.
15
CANÇADO, Airton Cardoso; TENORIO, Fernando Guilherme; PEREIRA, José Roberto. Op. cit., p. 697.
16
NETTO, Luis Moretto; SALM, Vanessa Marie; BURIGO, Victor. Op. cit., p. 173 e 176, respectivamente.
sobre o autor
Jorge Leal da Silva é graduado em Administração pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Mestrando em Administração pelo Programa de Pós-graduação em Administração (PPGADM) da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Membro Pesquisador de Grupo de Pesquisa registrado no CNPQ “Direito e Política na América Latina – Dipal. Bolsista Capes.