Ainda em dezembro de 2019, a chapa recém-eleita do departamento paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/SP começou a planejar a 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, prevista para o segundo semestre de 2021. Tínhamos como desafio tratar e apresentar temas relacionados à cidade democrática propondo um novo modelo de governança do evento e saindo dos limites do Centro expandido.
Naquele momento, lançamos uma apresentação publicada no jornal El Pais – “O que promete a próxima Bienal de Arquitetura de São Paulo” (1) – que anunciava nossas inquietações, nossas diretrizes de trabalho e convidávamos não somente a classe de arquitetos, mas também outros agentes que interagem, fazem e vivem a cidade – líderes comunitários, instituições governamentais e de ensino – a colaborar na apresentação de novos modelos de atuação pela cidade, iniciativas que demonstrassem como administrar territórios vulneráveis, como ocupar espaços públicos e como garantir que nossas cidades fossem mais democráticas.
Não contávamos com a chegada da crise do Covid-19 que nos obrigou a repensar novas relações com nossas casas, com os espaços públicos e com as práticas cotidianas. Diante do isolamento social, do perigo de contaminação, da possibilidade de colapso da rede de saúde pública, de uma iminente recessão econômica, os desafios urbanos mostravam-se maiores e mais complexos do que aqueles previstos quando no início da organização do evento.
A Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo em sua 13ª edição, que ocorrerá em 2022, assume como provocação central inicial a Reconstrução. Parte-se da ideia de reedificar, refundir e renovar as relações dos grupos sociais com seus espaços domésticos, dos cidadãos com os espaços públicos e das tramas pessoais e profissionais, que ocorrem nos espaços de confinamento e nos de usos coletivos, durante e depois da pandemia de Covid-19.
A Reconstrução convoca-nos a repensar problemas e soluções em diversos aspectos. Para melhor compreender essa questão, lançamos eixos norteadores preliminares que nos guiaram na proposta das fundações deste evento nacional. A questão da Democracia (1) propõe uma reflexão crítica sobre como garantir e estimular práticas políticas nos espaços urbanos em um contexto global e em um país que enfrenta ameaças de recessão não só financeira, mas democrática. Pensar como tornar as cidades mais acessíveis, seguras, acolhedoras, convidativas, mas também lugar onde contrastes e conflitos são latentes, discutindo questões sobre a presença das diversas classes sociais, das raças e dos gêneros. Também se propõe que sejam levantadas soluções inovadoras em relação ao planejamento e gestão democrática, a partir de experiências vinculadas ao território.
O eixo Corpos (2) lança a discussão para a relação entre espaço e temas como interseccionalidade, vulnerabilidades e políticas sociais. Sugerimos uma reflexão sobre como garantir práticas coletivas tendo em vista questões de saúde pública, discriminação, violência e violações de direitos, de maneira a repensar como garantir acesso, convivência e circulação de pessoas nas cidades. Além disso, anuncia a urgência de garantir programas específicos para grupos específicos, como crianças, jovens, idosos, portadores de necessidades especiais, especialmente nos territórios vulneráveis em meio à crise imposta, ampliando o debate sobre as vulnerabilidades dos corpos nos fluxos pela cidade. Em relação aos espaços arquitetônicos, propõe ainda uma reflexão sobre a flexibilidade dos espaços domésticos, profissionais e institucionais frente ao desafio de garantir usos diversos e saúde coletiva no contexto de isolamento e de retomada das atividades.
Entendendo a Memória (3) como o agente coletivo que nos confronta diante do estranhamento de um novo mundo e nos conforta em relação às suas permanências, mas também como um processo de reelaboração permanente deste passado no presente e que possui a propriedade de conservar ou de apagar certas informações, lançamos o desafio de compreender como utilizar a pré-existência para a reinvenção do cotidiano nas cidades. Este eixo também visa refletir como a arquitetura e a infraestrutura urbana podem colaborar para a construção de uma memória coletiva que torne mais acolhedor o processo de (re)ocupação, (re) construção e (re) significação das cidades.
Neste sentido, a Informação (4) abre horizontes para o debate de políticas urbanas e sociais a partir de uma temática que toca todos os aspectos da vida contemporânea, mas ainda está restrita a especialistas. Propomos lançar luz sobre as questões de privacidade e proteção de dados, bem como às experimentações com modelos de governança de dados públicos e privados no gerenciamento dos corpos e das práticas cotidianas, estimulando o debate sobre cartografias colaborativas, reconhecimento facial, discriminação algorítmica, internet das coisas e ciência de dados urbanos em uma perspectiva de governança de cidades.
Fechamos os eixos norteadores desta Bienal com a questão da Ecologia (5), fundamental para o equilíbrio entre homem e natureza, áreas urbanas e naturais, a discussão sobre ecologia propõe a reflexão sobre o planejamento de cidades atentas ao equilíbrio ambiental e ao desenvolvimento de atividades produtivas, voltados para a qualidade de vida de sua população a partir de temas como mudanças climáticas, cidades de baixo carbono, agricultura urbana e segurança alimentar.
No convite a este amplo debate, assumimos o compromisso de dar continuidade ao processo seletivo acompanhado da figura de uma curadora residente que possa pensar na edição atual, e na construção de um modelo para as edições seguintes, de maneira a tornar o processo de construção do evento ainda mais aberto e representativo. Atuarão ainda um Conselho Consultivo a ser configurado pelo IAB – Departamento São Paulo, com regras para conferir representatividade e um Comitê de Acompanhamento no Conselho Superior do IAB, que congrega todos os Departamentos estaduais.
O evento deve, ainda, priorizar núcleos da cidade para conectar e integrar ações: uma rede de equipamentos públicos e comunitários onde estão desenvolvidos projetos integrados de transformação urbana e ambiental em diálogo com as comunidades locais (Jardim Guarani, Jardim Pantanal, Parque Pinheirinho D’Água, Jardim Lapenna e Parque Novo Mundo) em parceria com o Pacto Pelas Cidades Justas (2); e, também, equipamentos culturais e espaços públicos no eixo da Avenida Paulista. Lugares para abrigar exposições, debates e atividades que envolvam as populações na cidade, entendendo que as manifestações múltiplas devem ser acolhidas e discutidas neste evento.
Organizamos para os meses de julho e agosto de 2020 três debates preparatórios para o concurso de co-curadoria (3) com temas relacionados à própria essência de exposições de arte e de arquitetura que propunha pensar o papel dos arquitetos, urbanistas e de tantos outros profissionais na construção de cidades mais justas e democráticas. Estão previstas para o segundo semestre de 2021 chamadas abertas para selecionar projetos, atividades e intervenções vinculadas à Bienal.
O novo modelo a ser experimentado é planejado para um formato replicável nas próximas cinco edições (2022-2032) e busca contribuir com o fortalecimento de uma rede de colaboração – envolvendo universidades, instituições culturais, movimentos sociais, entre outros – que atuem frente a um pacto social para compartilhar projetos, narrativas, experiências, ferramentas que possibilitem compreensão, atuação e transformação do ambiente e da cultura urbana.
notas
1
TÚLIO, Fernando; MATOS, Gabriela; FONTENELE, Sabrina. O que promete a próxima Bienal de Arquitetura de São Paulo. El País, 12 dez. 2019 <https://bit.ly/3acZ6df>.
2
Pacto Pelas Cidades Justas, website oficial <www.cidadesjustas.org.br>.
3
Debates preparatórios 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo – Reconstrução <https://bit.ly/3fJCPF1>.
sobre a autora
Sabrina Fontenele é arquiteta e urbanista pela UFC, com mestrado e doutorado pela FAU USP, onde realizou pesquisas publicadas sobre arquitetura, cidade e preservação. Finalizou em 2019 o pós-doutorado no IFCH Unicamp com apoio da Fapesp. Autora dos livros Edifícios modernos e o traçado urbano no Centro de São Paulo (2015) e Restauro da Faculdade de Medicina da USP: estudos, projetos e resultados (2013). Foi pesquisadora Centro de Preservação Cultural da USP (2012-2018), onde atuou ainda como editora científica da Revista CPC e como curadora da exposição “Tempo das Construções” (2013-2014). Colabora desde 2018 como professora na Escola da Cidade, onde é coordenadora de pesquisa do Conselho Científico. Diretora de Cultura do IAB-SP (gestão 2020-2022) e curadora residente da 13a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.