Depois de muito anunciada, a exposição organizada por Rem Koolhaas, Troy Conrad Therrien, Samir Bantal e grande equipe de colaboradores estreou dia 20 de fevereiro de 2020 no Museu Solomon Guggenheim em Nova York. Antes de completar um mês foi fechada para o público, em 13 de março, em decorrência da pandemia de Covid-19.
Há pelo menos cinco anos Koolhaas vem anunciando em entrevistas e palestras a mudança do seu interesse da metrópole para o campo, alimentando as controvérsias que sempre acompanham suas teorias e projetos: será que a cidade perdeu o protagonismo sobre o papel da arquitetura na cultura contemporânea nas pesquisas do arquiteto? Basta acompanhar qualquer noticiário para que se confirme que a cidade permanece relevante como expressão das disputas políticas, sociais e econômicas em curso e cada vez mais potente (enquanto dimensão física em oposição ao mundo virtual) ao materializar os embates da sociedade contemporânea globalizada.
Para os críticos de sua obra, Koolhaas permanece “surfando nas ondas do capitalismo” (1) e esse seria mais um “produto” de seu alinhamento tácito ao neoliberalismo, agora focando no campo depois de ter esgotado a cidade enquanto fonte de pesquisa. Essa proposição não é negada pelo arquiteto, e a análise da exposição (2) oferece reflexões que discutem justamente essa condição. Será chegada a hora de arquitetas e arquitetos desistirem das cidades e apostarem no campo como possibilidade de projetos para o futuro?
À essa questão, claramente colocada no título da exposição, é apresentada uma ampla pesquisa que considera diferentes áreas do conhecimento e dimensões temporais para a construção da ideia de “campo” em oposição à cidade, construindo um contexto atualizado no qual diferentes fenômenos são analisados. Segundo os curadores, não se trata da apropriação de um “novo recurso natural” repetindo o modus operandi moderno de exploração/extinção/abandono, tampouco da ilusão de que o campo permanece “virgem” esperando a ação da arquiteta e do arquiteto munida/o de estratégias neoliberais: o campo já foi tomado como fronteira tecnológica, como possibilidade de resistência cultural, como investimento inserido no circuito econômico global. Resta às arquitetas e arquitetos tomarem consciência e se posicionarem frente ao fato.
Tendo como perspectiva o desenvolvimento teórico de Koolhaas expresso em seus livros (3), a hipótese é de que essa exposição não representa uma mudança de foco, mas sim a continuidade da investigação iniciada em 1978 com o livro Delirious New York, qual seja, os processos de produção da metrópole (agora atualizada como pós-metrópole) e seus produtos (arquitetura e urbanismo) como expressão da cultura contemporânea vigente.
É a segunda vez que Koolhaas expõe no Guggenheim Nova York: a primeira foi em 1978, ocupando o final da rampa do museu, na ocasião do lançamento do livro Delirious New York. Em vídeos onde comenta a exposição atual, disponíveis na internet, Koolhaas reforça a importância desse museu e a proposta expositiva de Frank Lloyd Wright para o sucesso de sua exposição: o percurso contínuo que captura o visitante na calçada com um sedutor trator e uma miniestufa computadorizada de tomates 24/7 (que continua produzindo durante a pandemia) e o conduz até o fim da rampa, em uma espiral tomada com informação do chão ao teto, proposta espacial cara ao arquiteto (4). Paredes, tetos e pilares, são explorados como suportes expositivos em suas diferentes formas, verdadeiros outdoors carregados de textos, estatísticas, histórias, pesquisas científicas, entrevistas - a linguagem já conhecida de seus livros massivos agora expandida no espaço. A visão da rotunda assim tomada de informação, cria a sensação de total imersão na narrativa densa, que já anuncia no início da rampa “essa não é uma exposição de arquitetura”.
Acompanha a exposição o livro Countryside, a Report, que complementa e expande o argumento proposto na exposição através de relatos, visitas a campo e análise de exemplos. Em um dos poucos textos assinados por Koolhaas, são apresentadas premissas da pesquisa que contextualizam o mergulho profundo em casos tão diversos quanto o permafrost em Yakutsk e pequenas vilas chinesas totalmente devotadas ao crescente comércio on line:
“Desde década de 1990, ficou estabelecida a expectativa complacente de que a civilização metropolitana – orientada pelo capital, agnóstica, ocidental – permaneceria como modelo para o desenvolvimento global, possivelmente para sempre” (5).
Em “Eurodrive: Repopulation Utopia”, Niklas Maak visita diversas cidades e regiões desde a Alemanha até o sul da Itália revelando desenvolvimentos alternativos que escapam do modelo de dependência/exploração entre cidade e campo. Em Tarnac, na França, uma comuna anarquista vive de agricultura de subsistência, do comércio de madeira e de doadores desconhecidos. Todos escaparam das grandes cidades, de seus empregos e universidades em busca do campo mais remoto como plataforma para questionar o modo de vida urbano dominante, baseado no capitalismo. Riace e Camine, duas pequenas cidades do sul da Itália que estavam a ponto de desaparecer devido ao êxodo dos jovens em busca de trabalho iniciado após a 2aGuerra Mundial, estão renascendo com a chegada de refugiados que trazem suas crenças e costumes, mas também reavivam tradições locais.
“Hoje, mesmo uma cidade ‘nova’ é familiar: uma acumulação previsível de torres, estradas e ícones... Mas, assim que deixamos o urbano para trás nos confrontamos com o novo e o profundamente não-familiar”. Em “TRIC: Post-human Architecture”, Koolhaas não esconde seu espanto com o maior parque industrial do mundo em Reno, EUA, onde edifícios habitados por robôs que ficam no escuro ou minimamente iluminados por luzes artificias colocam a incômoda questão sobre uma arquitetura que não é feita para os humanos.
Assim, “em 2020, duas tarefas permanecem urgentes: a inevitabilidade da urbanização total deve ser questionada e o campo deve ser redescoberto como lugar de reassentamento, de permanecer vivo”. Ironicamente, com a pandemia, temos visto muitos relatos de pessoas que se sentem mais seguras morando fora dos grandes centros urbanos, mantendo suas atividades remotamente, assim como pessoas pensando em colocar em prática projetos de morar no campo, anteriormente destinados à aposentadoria. A pandemia e a necessidade de distanciamento social revelaram a dissolução da distinção historicamente construída entre cidade e campo.
A exposição “Countryside, the Future” é efetiva ao evidenciar as condições atuais dessa “nova” frente de atuação para a arquiteta e o arquiteto, considerando as estratégias políticas e econômicas já em curso. A conscientização desses processos mostra-se essencial para o sucesso de qualquer proposta que não deseje repetir os erros de planos que serviram como instrumentos políticos e econômicos ignorando suas consequências e não se responsabilizando por elas. Na condição ambiental dramática em que nos encontramos, em face da necessidade de adoção de ações sustentáveis do ponto de vista social, econômico e ambiental, a aposta dos curadores é que a arquitetura deve reivindicar seu protagonismo, consciente e comprometido, através de projetos que considerem em sua totalidade complexa a última fronteira aberta ao futuro da (devastadora) ocupação humana. O “Countryside” tem que ser “now”.
notas
1
Alusão à discussão de Roemer Van Toorn sobre a relação entre arquitetura contemporânea e neoliberalismo. Ver: TOORN, Roemer Van. Acabaram-se os sonhos? A paixão pela realidade na nova arquitetura holandesa... e suas limitações. In SYKES, Krista. O campo ampliado da arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2013, p. 222-241.
2
A autora visitou a exposição em 25 de fevereiro de 2020.
3
Para uma discussão sobre as ideias de Koolhaas através de seus livros, ver: MARTINS, Patrícia. Poder e ética na obra de Rem Koolhaas. Risco – revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo (online), n. 21, IAU USP São Carlos, 2015, p. 6-16 <https://bit.ly/2QIlm5W>.
4
Ver projeto para a Biblioteca de Jussieu (1992) e a Biblioteca de Seattle (1999-2004).
5
Koolhaas, Rem / AMO. Countryside, a Report. Taschen, Koln, 2020, p. 2-3.
sobre a autora
Patrícia Pereira Martins é arquiteta (FAU PUC-Campinas), mestre (Architectural Association Londres), doutora (Fecau Unicamp) e pós-doutora (FAU USP). Professora de História e Teoria da Arquitetura na FAU Mackenzie e pesquisadora com foco nos seguintes temas: arquitetura contemporânea, arquitetura de museus e expografia.