A leitura deste texto revela, desde suas primeiras páginas, tensão, busca persistente de sentidos nem sempre visíveis a olho nu, escavação à procura de nexos articulados numa outra herança, num outro modo de contar a história, numa trama que foi se tornando subterrânea a partir das narrativas hegemônicas e canônicas. Essas mesmas narrativas que produziram uma suposta pureza das leituras e proposições estéticas, desdobraram-se e/ou conjugaram-se às leituras e proposições urbanas tecidas igualmente numa concepção hegemônica da modernidade e dos processos de modernização. Impurezas, contaminações, tramas, nexos são postos à luz ao longo dessa construção ao mesmo tempo inédita e rigorosamente fiel a todo trabalho de pesquisa de Paola Berenstein Jacques. Essa fidelidade a si e ao seu próprio trabalho permite pensar o texto construído ao mesmo tempo como tese e como diálogo reflexivo com temas e objetos, com um modo de olhar e de ler já presentes em sua trajetória intelectual, nos livros e textos que a testemunham. O resultado desse esforço de proporções gigantescas se articula, assim, a uma trajetória intelectual e seus temas: a deriva como exercício crítico, a estética como outro modo de olhar, a aesthesis como possibilidade crítica e como chave de uma intervenção urbana sempre avessa a uma razão instrumental e tecnicizada, a uma racionalidade proveniente das relações promíscuas entre verdade e poder. A autora de Montagem de uma outra herança, ao longo de seus temas e questões, pergunta sempre insidiosamente: qual verdade? Produzida por quem? A partir de quais pressupostos? Para quem? Contra quem?
O esforço de costura – “quase um bordar” – entremeando esforços de compreensão dispersos por produções intelectuais e estéticas foi enorme. O leitor é conduzido a perguntar incessantemente quem entra e quem sai dessa trama, desse trabalho de dobradura, do esforço de produção e de busca de conexões com os outros, nublados ou encobertos pela centralidade da construção de uma herança moderna transformada em cânone pela produção de um regime de verdade, uma verdade permanentemente enovelada e produzida como efeito das relações de poder, tal como alertava Michel Foucault.
Essa outra herança, esse outro – também moderno, radicalmente moderno – talvez devesse ser nomeado em sua pluralidade não redutora: outros que comparecem em uma montagem que lhes confere nexos. Os outros que fazem parte dessa montagem tornam visíveis – pelo olhar de quem monta – afinidades, coexistências, traços e referências comuns que vão ganhando a luz, que são postos em evidência ao longo das páginas desse esforço de pesquisa e de leitura que tem o sabor de um presente generoso, já que é o resultado de um enorme dispêndio de energia crítica, de um enorme esforço de recuperação e de resgate. O texto que Paola Berenstein Jacques produziu é, ele também, uma montagem que se sabe e se reconhece como montagem, marcado pelo olhar sensível de quem recorta, escolhe, justapõe, constrói vizinhanças, reconhece, constela e redesenha sentidos. Esse olhar – radicalmente moderno – essa postura que preside reflexivamente a montagem, diversa da colagem, já que é sempre provisória e sempre inacabada, jamais concluída de fato, conduz o leitor ao longo do período que vai do final do século XIX até nossos dias e passeia pela Europa, viaja pelas Américas, vai à Ásia – especialmente à Índia com Geddes (vol. 1) – e chega ao Brasil de Mário e Oswald de Andrade (vol. 2), ao Brasil da Tropicália como o outro de Brasília.
Ganham densidade e significação alteridades, deslocamentos, viagens, na construção e nos deslizamentos dos objetos, mas também – e talvez sobretudo – nos deslocamentos dos sujeitos em meio a dobraduras, em meio a objetos que escapam e se instabilizam continuamente tornando-se, eles também, outros. Pensando a escritura como passagem e como travessia, o sujeito que monta se mostra também deslizante, continuamente atravessado pelo procedimento de montagem, permanentemente desafiado a se encontrar com seus outros, com seus dibbuks fantasmáticos que voltam para se redefinir e redefinir os viventes. Esse vivente instabilizado e cambiante pode, ele também, se tornar tão fantasmático como as figuras que o assombram. Talvez seja possível e necessário reconhecer, no sujeito que monta, o objeto desse mesmo procedimento: montagem/desmontagem do sujeito e do seu olhar, montagem de tempos não simultâneos, anacronicamente urgentes, constituído de agoras e de outroras, nas palavras de Paola Berenstein Jacques. Esse descentramento e instabilização do sujeito da montagem – do sujeito que se torna outro na investigação e na escrita etnográfica, do si mesmo se tornando outro, sendo contaminado e transformado pelas devorações do outro, pela constatação e reconhecimento de presença desses outros em si – vai se desenhando pelo encontro com assombrações, tão distantes e tão próximas, cujas relações por certo são reais, mas também montadas a partir das boas vizinhanças de Warburg (vol. 1). O resultado dessa montagem e da reflexão por ela conduzida em direção à pluralidade de heranças modernas se assemelha, assim, à biblioteca de Warburg, devidamente devorada e incorporada pelas boas proximidades e diálogos improváveis possibilitados por uma operação a um só tempo complexa e delicada, em busca de um objeto sempre impuro, encoberto por uma pureza artificializada que se constitui como mito, como falseamento, como ilusão necessária.
Uma entre as muitas questões que atravessam a escritura vem exatamente da pureza/impureza das montagens. Dessa perspectiva, um sem número de vezes, Paola Berenstein Jacques agrega à palavra montagem a palavra que a adjetiva: montagens impuras. Curiosa associação, já que não há – tal como se lê desde as primeiras considerações sobre esse procedimento – montagens puras. Talvez a insistência na impureza só se explicite inteiramente quando o texto se encaminha para o seu final brasileiro, tropical, antropofágico (vol. 2). O texto vai, então, revelando seus próprios nexos como caleidoscópio a um só tempo moderno e melancólico, já que desvela a potência do que poderia ter sido na aproximação entre o que não foi mais – o anacrônico – e aquilo que não foi ainda. Revela-se também a um só tempo como passagem, tradução e descrição de outras relações que se estabelecem no avesso de uma cientificidade que desvela positividades, no avesso do tempo linearizado. Assim, o primitivo sobrevive se transmutando em selvagem; cada fantasma, cada presença/ausência se transmuta, numa outra narrativa, no atravessamento e deslocamento de fronteiras e de limites, numa porosidade, num borrar das linhas que separam tempos e espaços. Confundem-se, numa operação surpreendente e maravilhosa, a produção do conhecimento e o trabalho de rememoração que se entrelaçam e se aproximam, em uma homologia tantas vezes evocada por Benjamin.
Ainda um tema, entre tantas evocações presentes no texto, testemunha sua fidelidade à trajetória intelectual de Paola Berenstein Jacques. Em meio à espiral de questões que se entrelaçam na escritura, ganha centralidade a questão das leituras e narrativas urbanas. As cidades se revelam aqui e ali, entre as múltiplas contribuições esquadrinhadas e recuperadas ao longo dos capítulos, como labirintos ao revés da modernização e do progresso, como testemunho sempre póstumo, como passado, como um emaranhado de rastros do passado, como sobrevivências e, de certo modo, exatamente por isso, como anúncio de futuros possíveis. Ao longo dos capítulos uma homologia forte entre cidade e história se desenha: os surveys de Geddes encontram as bibliotecas construídas por vizinhanças de Warburg, cruzam-se ainda com os atlas, com cartografias que revelam sentidos, conformando montagens que encontram nas diferenças as ênfases que só se explicitam por meio de justaposições improváveis, por meio de aproximações nem sempre usuais. As cidades, suas sobrevivências, seus tempos, suas camadas em palimpsestos são – elas também – montagens que desafiam as políticas, o policiamento e as fronteiras intelectuais e disciplinares. O texto que resulta desses esforços de pesquisa e de leitura replica e desdobra esses mesmos desafios, ultrapassa os limites bem comportados dos campos disciplinares e de seus ordenamentos. O próprio texto se tece como montagem necessariamente impura mas também como palimpsesto contaminado, assim como os objetos, leituras e imagens que nele se constelam. Todas as camadas temporalmente sobrepostas em cada palimpsesto foram contaminadas; todas as montagens, inclusive o texto que delas resulta, são, necessariamente, impuras.
Identificar, reconhecer e nomear essas impurezas e contaminações ao longo da escritura densa parece mostrar aos leitores que a produção do conhecimento é, tanto quanto a produção das montagens impuras que atravessam cada capítulo, uma aventura. A tarefa da escritura que incorpora autores e procedimentos justapostos e contrapostos é um aventurar-se na busca de cada fantasma, de cada fantasmagoria, de cada apagamento de suas promessas, em um percurso marcado por perguntas que não têm repouso, nem poderiam ter, que não têm fim, nem poderiam ter. A cada momento o leitor se depara com questões que se deslocam. São deslocamentos epistemológicos que apontam novas leituras, reinventando o que estava dado, com a liberdade e a indisciplina de usar dos restos e farrapos, com uma inspiração que evoca mais uma vez Benjamin – um caçador de pérolas nas profundezas invisíveis do mar (1). Fabricando seu próprio texto como montagem, Paola Berenstein Jacques escancara a coexistência das formas de ver, a impossibilidade de redução do heterogêneo a uma homogeneidade falseada pela construção de uma pureza mitificada. Então, no esforço de apreender a desordem do mundo, a cidade – lugar mesmo dessa desordem – se desenha e se mostra como montagem necessariamente impura exigindo o desafio de uma epistemologia urbana que contemple a multiplicidade de narrativas, a multiplicidade das leituras em disputa, em sua polifonia, em seus conflitos e contraposições, em seus sentidos em confronto. Talvez por isso o maior presente desse texto seja a perspectiva da produção de um novo conhecimento pelo embate não pacificado, apreendendo tempos perdidos e encontrados, nexos e atualizações, sem reduzir ou aplacar a desordem do mundo, para além das polaridades entre caos e ordem, entre essência e aparência, entre anacronismos e simultaneidades.
Com esses mesmos procedimentos – a montagem, o palimpsesto, a busca da impureza e das contaminações, encontramos não um ponto de repouso, mas um ponto de chegada que recoloca e redesenha as inquietações que atravessam o texto e sua produção: as narrativas sobre o Brasil a partir de viagens e viajantes, a partir do embate etnográfico que parte dos Tristes Trópicos (2) para enfrentar como continuidade e como contranarrativa (a contrapelo, como propunha Benjamin) a Alma selvagem e as Metafísicas canibais (3). Entre os relatos e manifestos mais ou menos literários de Oswald e Mario de Andrade e o relato etnográfico de Lévi Strauss e Viveiros de Castro, o leitor encontra um Brasil mais inventado que descoberto, um Brasil que aponta para a força conflitiva e tensa que nasce das devorações antropofágicas como experimento de descolonização, como olhar que desvela o avesso do progresso e de um moderno visto como triunfante, mitificado, europeizante. O texto (vol. 2) termina com a possibilidade de devoração do tempo presente, um tempo de barbárie que evidencia a impossibilidade do relato linearizado de um Brasil moderno cuja expressão purificada se espelha no desenho de Brasília, um tempo a ser devorado no reencontro com os outros, os que foram derrotados, arcaizados, supostamente deixados para trás. Talvez a devoração desse presente ainda possa apontar para uma saída política, para um devir que recoloque no horizonte de possibilidades, uma perspectiva de emancipação, vigorosamente dissociada das resoluções tecnicizadas ou instrumentalizadas, fortemente afastada de uma razão da conciliação, homogeneização e redução que teria construído as narrativas canônicas e lineares que encobrem e falseiam o enigma brasileiro e o enigma de suas cidades.
notas
NE – Texto originalmente publicado como prefácio da primeira edição do livro: JACQUES, Paola Berenstein. Fantasmas modernos. Montagem de uma outra herança, 1. Salvador, EDUFBA, 2020.
1
A metáfora é de Arendt. Ver: ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo. Companhia de Bolso, 2008.
2
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo, Cia das Letras, 1996.
3
Respectivamente VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac Naify, 2002; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais, São Paulo, Cosac Naify 2015.
sobre a autora
Cibele Saliba Rizek é professora titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – IAU USP São Carlos.