Há algum tempo, ouvir o termo passe livre despertava, apesar do ceticismo inicial, certa inquietação, curiosidade e abertura para uma discussão com enorme potencial de abarcar questões fundamentais à vida nas cidades. Para as pessoas da nossa geração, que estiveram nas ruas em 2013 contra o aumento da tarifa de transporte, o passe livre surgia como ferramenta de democratização da sociedade. Na contramão dessa percepção otimista, após a aparente sedimentação das manifestações de 2013, tal debate passou a ser encarado com desconfiança, como questão encerrada e pauta esgotada. O que acontecia neste meio tempo para que algo potencialmente tão transformador fosse deixado de lado? Principalmente pelo campo progressista?
Não é sequer necessário recorrer aos liberais ou aos grupos conservadores que emergiram na esteira – ou no vácuo – dos protestos daquele ano para encontrarmos posições contrárias. Para estes o passe livre desde o início representava um modelo “estatista” e antiliberal de transportes. Antiliberal evidentemente que sim. A própria esquerda, que já se dividia sobre o tema antes de 2013, parece hoje relembrar o assunto como um episódio traumático, com enorme desconfiança, algo irreparável e um erro estratégico de grupos autonomistas que conduziram os protestos em torno do Movimento Passe Livre.
Esta posição encampada por parte da esquerda, que nunca eximiu uma suposta culpa de tais movimentos nos episódios que se sucederam nos anos seguintes – do golpe de 2016 ao recrudescimento do conservadorismo – acabou, praticamente, por findar as discussões sobre a tarifa zero como política pública de planejamento das cidades. Neste período, empreendeu-se um considerável esforço de interpretação daqueles eventos por parte de intelectuais e acadêmicos, muitas vezes em publicações escritas no calor do momento, buscando um significado para os acontecimentos que se desdobravam de forma acelerada. Estes eventos forneceram uma quantidade imensurável de material para pesquisas acadêmicas que investigam os impactos e os reflexos destes eventos históricos para a sociedade brasileira, consolidando o tema no campo das ciências humanas (1).
A questão do passe livre como política pública de planejamento para as cidades pareceu, no entanto, uma discussão deixada à margem do debate público, tanto na sociedade de um modo geral, como na academia. Sem dúvida, a pouca distância temporal dos eventos colabora para este quadro. Mesmo assim, tendo como recorte a Universidade de São Paulo, não são muitas as pesquisas e investigações dedicadas ao passe livre como política urbana no campo da Arquitetura e do Urbanismo (2).
Os motivos para este reduzido espaço ocupado por tais pesquisas é, sem dúvida, diverso, não cabendo aqui a busca por uma resposta definitiva. Todavia, é relevante notar a recepção conturbada com as quais proposições autonomistas historicamente se defrontaram nos mais diversos ambientes, o que certamente refletiu a recepção do passe livre pela esquerda mais institucionalizada e, de certo modo, também pela academia. Como ilustração, vale lembrar o enorme embate que se fez em torno das visões radicais de Sérgio Ferro sobre as relações de produção envoltas no ofício do arquiteto, com um alto teor autonomista, na FAU USP, no final dos anos 1960, e o tardio e lento reconhecimento de sua obra no ambiente acadêmico (3).
O objetivo aqui não é acusar uma possível incompatibilidade teórica entre academia e passe livre como política urbana, mas, sim, indicar a marginalidade destinada ao tema nos últimos anos e reafirmar sua importância e seu potencial, inclusive acadêmico.
A boa notícia é, sem dúvida, o livro do jornalista Daniel Santini, publicado em 2019 pela editora Autonomia Literária. Em Passe Livre: as possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização, Santini mobiliza uma ampla bibliografia, entrevistas, visitas de campo, dados e documentos pesquisados ao longo de dez anos, articulados de modo construtivo e esclarecedor (4). O resultado é um texto que desmistifica os argumentos óbvios e automáticos contrários ao tema, habitualmente proferidos até mesmo por progressistas, que nos impedem de avançar em direção a uma nova forma de pensar a mobilidade nas cidades. O autor torna claro que mobilidade não é uma questão simplesmente técnica, mas sim política, que envolve escolhas e definição de prioridades.
A grande contribuição do livro está em atualizar a discussão (5). Na esteira dos debates e pesquisas sobre a consequência das novas tecnologias na reformulação das relações de trabalho, processo conhecido pelo termo uberização, Santini opõe a precarização e o avanço da mobilidade individualizada à urgência de uma política verdadeiramente democrática, que valorize o trabalho e avance na contramão da deterioração urbana provocada por décadas de hegemonia das políticas rodoviaristas.
Neste sentido, destaca uma das faces mais cruéis desta marcha que se desdobra em ritmo acelerado: a financeirização e controle da mobilidade por grandes empresas de atuação global, que gerenciam os deslocamentos das pessoas e controlam dados que poderiam orientar políticas universais de mobilidade. Em suma, expõe o fortalecimento do poder exercido por grandes corporações no cotidiano das pessoas, algo que parece fundamentar as recentes revoltas urbanas como as vistas no final de 2019 na cidade de Santiago no Chile, relembrando junho de 2013 no Brasil. Ambas refletiam a financeirização dos transportes, da habitação e da vida nas cidades.
Embora o livro tenha sido finalizado na metade de 2019 e não retrate diretamente o caso chileno, é curioso que a obra seja contemporânea às revoltas contra o aumento da passagem que questionaram o modelo econômico vigente há décadas no país. O caso do Chile só amplia a atualidade da questão e aponta a urgência em retomarmos a discussão sobre o modelo de transporte que queremos para as nossas cidades.
Em tempos de crise do neoliberalismo a questão do passe livre se apresenta, em todo seu potencial disruptivo, como possibilidade de questionar, não somente o modelo de transporte urbano, mas todo o processo de mercantilização dos elementos fundamentais à sociedade que se tem presenciado nas últimas décadas. Portanto, é urgente pensar em novos modos de organização social e enxergar além do binarismo programado de que investir em transporte público significa apenas uma ampliação dos gastos. É preciso pensar o transporte como solução para a crise urbana, como direito e não como mercadoria. No livro, Daniel Santini recorre a uma citação do escritor português Valter Hugo Mãe, que se aplica rigorosamente a essa forma de entender a mobilidade:
“Aprendi que o dinheiro tem interesse na troca das coisas, mas não todas. De qualquer modo meu avô ensinou que não devemos dar tanta atenção ao preço, mas ao valor. Ele acreditava que faltava ao mundo mais coisas sem preço devido ao valor que tinham. Na verdade, quanto maior o valor mais indecente se torna que sejam vendidas. Aquilo que há de mais valioso deve ser um direito de toda a gente e distribuído por graça e segundo a necessidade” (p. 127).
Pensar o transporte como direito e como política pública universal deve ser o mesmo que pensar um modelo que enfrente problemas ambientais, as mortes provocadas pelo trânsito, a precarização do trabalho e a especulação desenfreada sobre a terra urbana, a poluição e a decadência dos espaços públicos ocasionados pela proliferação de viadutos e grandes obras viárias, garantindo, sobretudo, o direito à cidade. Uma postura necessária ao campo progressista em tempos de letargia, para que voltemos a entender o termo Passe Livre como sinônimo de cidade democrática.
notas
1
A título de citação, Pablo Ortellado foi um dos que se dedicaram, desde os primeiros atos de 2013, a produzir pesquisas e coletar dados sobre as manifestações contra o aumento da tarifa em São Paulo. A série de artigos escritos por Vladimir Safatle, como colunista no jornal Folha de São Paulo, é representativa deste esforço de interpretação produzido no decorrer das manifestações. Ver: SAFATLE, Vladimir. Onde tudo começou. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 jul. 2013 <https://bityli.com/7RCre>
2
No breve levantamento feito para este texto, através do repositório de teses da USP, destaca-se a dissertação de Milene de Lima, que retoma as políticas de transporte da gestão de Luiza Erundina na cidade de São Paulo entre 1989 e 1992. Ver: SILVA, Milena de Lima e. A gestão Luiza Erundina (1989-1992): participação popular nas políticas de transporte. Dissertação de mestrado. Orientadora Cibele Rizek. São Carlos, IAU USP, 2016.
3
Ver: ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo, Editora 34, 2002. No livro, Pedro Fiori Arantes retoma outros episódios de embates envolvendo a emergência de ideias autonomistas ou de autogestão. Um destes embates foi a perseguição ao Laboratório de Habitação implantado por jovens professores na Faculdade de Belas Artes de São Paulo em 1982, fechado em 1986. Outro, foi a atuação de Ermínia Maricato como Secretária de Habitação do governo de Luiza Erundina entre 1989 e 1993, que, através da Superintendência de Habitação Popular, a época dirigida por Nabil Bonduki, regulamentou e instituiu os mutirões autogeridos como parte central da política de habitação do município, esforço prontamente interrompido pela administração posterior.
4
Curiosamente, boa parte da bibliografia mobilizada por Daniel Santini vem de fora do Brasil, o que corrobora a marginalidade do tema na academia brasileira, apesar dos casos exitosos de cidades que adotaram políticas de passe livre. Caso da cidade de São Paulo, que – embora exemplo de uma metrópole com claros sinais de mobilidade insuficiente – apresenta políticas de passe livre para determinadas faixas da população, como idosos, estudantes e trabalhadores desempregados, além de outras diversas cidades pelo país que adotam a tarifa zero no transporte público.
5
Apesar do já citado entrave do debate no campo progressista, não são poucos os tópicos de discussão sobre o passe livre, muitos já levantados pelo próprio MPL em seus muitos anos de atuação, amparados por experiências históricas como a de Lúcio Gregori, ex-secretário de transportes da gestão de Luiza Erundina no início dos anos 1990, que enfrentou grande resistência nos esforços de implantação de políticas de tarifa zero em São Paulo. Lúcio Gregori também escreve a apresentação do livro. A urbanista Raquel Rolnik assina a contracapa.
sobre o autor
Luiz de Lucca Neto é arquiteto urbanista, graduado em História pela FFLCH USP, mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU USP.