É uma honra e um prazer ter sido convidado para falar hoje por ocasião da publicação da edição brasileira do grande livro de Heliana Angotti-Salgueiro, A casaca do Arlequim. É difícil acreditar que já se passaram quase vinte e quatro anos desde que o livro de Heliana foi publicado na sua versão francesa (1). Vinte e quatro anos é o tempo de uma geração. É obviamente um desafio formidável para uma obra histórica, que tem necessariamente a marca das teorias, obras e debates da época em que foi escrita, reaparecer em um contexto completamente diferente. No longo prefácio que escreveu para a edição brasileira do seu livro, Heliana Angotti-Salgueiro recorda com maestria e profundidade o contexto em que o livro A casaca do Arlequim foi elaborado. Este contexto é antes de tudo o de uma instituição, a École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde brilhantes e diversas personalidades – de Hubert Damisch a Louis Marin e de Marcel Roncayolo a Bernard Lepetit – se cruzavam.
O que me impressiona em retrospectiva é o papel de mediadora que Heliana Angotti-Salgueiro desempenhou em tal contexto e desde então Quando penso neste papel, estou obviamente pensando nas relações entre o Brasil e a França, mas também no fato que Heliana conseguiu articular, de uma forma bastante singular, disciplinas e correntes de pensamento que tendiam a andar juntas, mas sem realmente interagir, mesmo na École des Hautes Études, que é conhecida pela sua interdisciplinaridade. A pesquisa de Heliana situa-se na intersecção da história da arte com a história urbana; traz a marca das reflexões de Hubert Damisch sobre a necessária renovação da história da arte, bem como a obra de Bernard Lepetit sobre a história das cidades. Naquela altura não era tão comum deslocar-se facilmente entre estas disciplinas e abordagens. Com a sua ênfase na prática eclética da arquitetura do século 19, A casaca do Arlequim é também eclética no melhor sentido da palavra, capaz de se apropriar de uma variedade de enfoques. É, portanto, fácil de compreender porque é que a tese da qual o livro derivou foi premiada pela École des Hautes Études. É talvez a melhor homenagem já prestada a esta instituição de ponta nos anos 1980-1990, e à diversidade de disciplinas, pontos de vista e metodologias que ela abrigava.
Na tese e no livro de Heliana Angotti-Salgueiro, esta diversidade é acompanhada por um trabalho meticuloso de teorização. A casaca do Arlequim baseia-se tanto na análise e tratamento de arquivos abundantes como em uma série de elaborações teóricas. De acordo com as reflexões de Bernard Lepetit, o livro baseia-se, por exemplo, em uma reflexão profunda sobre a relação entre as representações e as práticas. Também consegue articular de forma muito convincente a consideração de contextos gerais e os ensinamentos da micro-história, que era muito influente na época em que o trabalho foi escrito.
Mas a contribuição teórica essencial do livro reside sem dúvida na substituição da noção de influência (que tinha prevalecido até então), pela de transferência cultural. Embora Heliana Angotti-Salgueiro não seja a única protagonista desta grande mudança, o seu livro constitui uma das iniciativas mais fecundas no campo da história da cidade e da arquitetura. Ao contrário da influência, que é geralmente vista como uma via de mão única, a transferência é bem mais complexa. É acompanhada por fenômenos de tradução, adaptações criativas e hibridização com outras referências. As análises de Heliana sobre a forma como a arquitetura Beaux-Arts e a Haussmannisation são recebidas e adaptadas em Belo Horizonte são realmente magistrais. Gostaria de salientar a atualidade que elas conservam ainda hoje, para além do carácter pioneiro que tinham no final dos anos 1990. Fala-se muito atualmente de uma história global, uma história que deixou de raciocinar de uma vez por todas em termos de centro e periferia, de influências e modelos centrípetos interpretados de uma forma meramente normativa. Em retrospectiva, parece-me claro que A casaca do Arlequim é uma das primeiras contribuições para esta história global, exemplificada hoje pelo trabalho de Mark Jarzombek ou Kathleen James-Chakraborty. É sintomático que um estudante de doutoramento em história da arte em Harvard se tenha comprometido a escrever uma história global da arquitetura Beaux-Arts. Com toda certeza o livro de Heliana figurará de forma proeminente entre as suas principais referências.
Outra noção chave para a qual o livro contribui para trazer uma profundidade e complexidade frequentemente ausente das obras que a empregam é a de modelo. A história detalhada de Belo Horizonte torna possível avaliar melhor o que constitui um modelo no Haussmannismo. Estamos perante algo muito mais complicado do que a “Paris, capital do século 19” que foi transposta sem matizes para a história urbana, a qual tem sido frequentemente utilizada para compreender a recepção das transformações haussmannianas. Belo Horizonte, e isso acontece em geral no Brasil, é um caso particularmente interessante devido à hibridização entre as contribuições francesas e italianas. Não se trata de uma clara importação definida com precisão, mas sim de um processo de combinação que requer uma grande fineza na análise.
Eu gostaria ainda de enfatizar o cruzamento dos contextos e itinerários de uma série de personagens, entre as quais destacam-se em primeiro lugar o engenheiro Aarão Reis e José de Magalhães. Insisto na importância de tais aportes teóricos porque fui reticente a seu respeito. Em particular, em uma resenha globalmente muito elogiosa ao livro de Heliana publicada em Les Cahiers de la Recherche Architecturale, escrevi que esses aportes apresentavam um “desenvolvimento pesado”! (2) Aproveito, portanto, esta intervenção para fazer o meu mea culpa. Vindo de um campo um tanto diferente naquela época, não havia captado ainda a importância do seu posicionamento teórico.
De um ponto de vista empírico, penso que não há necessidade de relembrar as muitas contribuições do livro. O leitor vê realmente Belo Horizonte nascer diante dos seus olhos no final de um processo que não tem nada de linear. Para além da aventura que deu origem à capital mineira, o livro dá-nos uma pausa para refletir sobre as vicissitudes que quase sempre acompanham o urbanismo voluntarista em grande escala. A utopia depara-se com a realidade. Certamente que a transforma em parte, mas não a domina. Assim, encontramos na obra de Heliana Angotti-Salgueiro algumas das mesmas intuições que levaram Françoise Choay a publicar a sua antologia L'urbanisme, utopies et réalités.
Obviamente, há alguns temas que, na minha opinião, teriam merecido maior desenvolvimento. Como historiador do Saint-Simonismo, não posso deixar de sentir que poderia ter sido dado mais espaço à dimensão utópica, que está presente no trabalho de Reis (3). Outros temas estariam naturalmente mais desenvolvidos hoje, porque assumiram uma importância muito maior na historiografia do que há vinte e quatro anos atrás. A questão da natureza na cidade é uma delas. É certamente um dos grandes interesses do trabalho a forma como Reis lida com a natureza, fazendo novamente empréstimos a Haussmann e aos seus engenheiros e jardineiros – do parque central da cidade à arborização de alinhamento das ruas (4). Seria realmente interessante retomar hoje esta questão à luz dos trabalhos que se multiplicaram sobre este tema.
Qual é o significado de se republicar um livro vinte e quatro anos após a sua publicação? Obviamente, o fato de ser uma tradução neutraliza o peso desta pergunta. Só posso congratular-me com o fato de que o público de língua portuguesa vai poder finalmente tomar plena consciência de uma grande contribuição para a história da urbanização brasileira. Mas sente-se uma certa apreensão por parte de Heliana Angotti-Salgueiro quando ela aborda esta questão, ao terminar a sua apresentação dizendo que “o historiador sabe que entre todos os livros, ele escreve um dos mais efêmeros” (5).
De fato, o paradoxo da produção histórica é que ela pode envelhecer muito rápido, por vezes mais rapidamente do que os textos inscritos na sua época, a ponto de assumirem quase imediatamente o valor de testemunhos incontornáveis relativos a ela. Mas como Heliana nos lembra, o trabalho do historiador é também um testemunho. Fala-nos da época em que foi escrito, bem como do passado. A apresentação da autora à edição brasileira começa por nos informar sobre essa época, os anos 1980-1990 e sobre o clima intelectual que reinava nesses anos, antes de mergulhar nas águas do século 19. Esta dupla perspectiva trazida por Heliana é, como ela observa com razão, ligada ao desenvolvimento da noção de ego-história nas últimas décadas.
Mas embora reconheça o valor desta postura da ego-história, quero permanecer mais optimista do que Heliana, ao ir além da noção de testemunho de uma época que já passou. Os trabalhos históricos passados mantêm uma relevância proporcional à sua contribuição para a disciplina. Quando são da qualidade do livro que hoje celebramos, deixam de ser efêmeros. A este respeito, vale a pena recordar que a história só se pode afirmar científica se conservar a memória das etapas pelas quais passou a reflexão histórica, especialmente porque esta reflexão é apresentada como um todo estratificado. Como resultado, A casaca do arlequin não é certamente um testemunho do passado, mas uma etapa importante, um estrato da história urbana e arquitetônica em que se baseiam os trabalhos de hoje. Mais uma vez, estou muito contente que o público deste trabalho seja consideravelmente aumentado com a sua tradução para o português.
notas
NE – Versão em português do texto em francês apresentado por Antoine Picon durante o lançamento virtual do livro A casaca do Arlequim, de Heliana Angotti-Salgueiro. Tradução e notas de Heliana Angotti-Salgueiro. O evento, ocorrido em 08 de março de 2021, foi organizado no âmbito do “Curso internacional de especialização em planejamento urbano e politicas publicas: urbanismo, paisagem, território”, promovido pela FAAC UNESP, Campus de Bauru, do qual a autora é professora-colaboradora. O lançamento contou com sua apresentação ao livro e os comentários dos professores Antoine Picon (Harvard Graduate School of Design), Donatella Calabi (Istituto Universitario di Architettura di Venezia), Alicia Novick (Universidad de Buenos Aires) e Maria Lucia Bressan Pinheiro (FAU-USP).
1
Cf. ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana. La casaque d’Arlequin. Belo Horizonte, une capitale ecléctique au XIXe siècle. Paris, Éditions de l’Ecole de Hautes Études en Sciences Sociales, 1997.
2
PICON, Antoine. Resenha à La Casaque d’Arlequim. Belo Horizonte, une capitale ecléctique au XIXe siècle, sessão “Lectures”. In: Les Cahiers de la Recherche Architecturale et Urbaine, n. 2/3, nov. 1999, p. 203-204.
3
Assinale-se que com a abertura dos arquivos de Aarão Reis no Museu da Republica, após ter sido escrita A casaca do Arlequim, a autora buscou ampliar as relações entre os textos de Aarão Reis e suas leituras do socialismo utópico e outros temas, na biografia intelectual: ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana. Engenheiro Aarão Reis, o progresso como missão. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro/Crea, 1997.
4
O tema foi abordado dentro dos limites documentais e bibliográficos da época, no capitulo “A arquitetura e seu lugar” (cf. A casaca do Arlequim..., p. 257-268), em que o entorno paisagístico dos projetos ou a relação arquitetura-natureza é mencionada; quanto ao cuidado pioneiro de Aarão Reis em Belo Horizonte com a arborização urbana e o papel de Paul Villon (que fora discípulo de Alphand e Barrilet-Deschamps na França), contratado por ele para trabalhar na Comissão Construtora, é questão relevante a ser retomada à luz de documentação hoje organizada nos arquivos de Belo Horizonte, bem como da historiografia recente, pois afinal “a pesquisa é uma dinâmica sem fim”. A expressão é de LEPETIT, Bernard. Arquitetura, geografia, historia: usos da escala. In: ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana (Org.), Por uma nova historia urbana. São Paulo, Edusp, 2001, p. 223 (na reedição de 2016, p. 258).
5
LEPETIT, Bernard. Tentons l’expérience. Annales ESC, vol. 44, n.6, Paris, nov./dez. 1989, p. 1317. Frase retomada pela autora na sua apresentação oral do livro, na live de 08 de março de 2021.