A decisão da Universidade Estadual Paulista – Unesp, campus Bauru, em conceder o título de Doutora Honoris Causa (1) a Adélia Borges não poderia ser mais acertada.
Como destacam na proposta ela vem há trinta anos estudando, documentando, expondo, escrevendo sobre design no Brasil.
Sua ação tem robustecido o ego cultural dos designers do país e tornando visível pelo mundo afora a qualidade da nossa produção em suas palestras e livros que circulam pela Europa, Estados Unidos, Índia, Japão, Austrália, Grã-Bretanha (não incluída na Europa depois do Brexit) etc. Embora seja lida e reconhecida pela cultura e história hegemônica europeia, Adélia desenvolve conceito e abordagens decoloniais sobre o design no Brasil. Defino o decolonialismo como a constante análise crítica de importação de modelos do código europeu e norte-americano brancos. Adélia valoriza a produção autóctone e popular não apenas como cultura material, mas como design. A prova são as inúmeras exposições das quais ressalto a dos Bancos indígenas: entre a função e o rito; Puras misturas, no Pavilhão das Culturas Brasileiras (o qual concebeu) e por último a que celebrou trabalho de artesãs de São Paulo dedicadas a produção têxtil, realizada no Sesc Vila Mariana em 2019, intitulada EntreMeadas.
Decolonialismo não é desprezar a cultura europeia mas considera-la um estudo de caso e não um modelo a ser imitado.
Trabalhar criticamente reconhecendo códigos híbridos ou originários de multiculturas que enriquecem nossa produção de design eliminando ou pelo menos estabelecendo equilíbrio valorativo entre o erudito universitário e o popular dos pobres a tornaram uma das curadoras culturalistas mais importantes do Brasil.
Conheci Adélia há 28 anos. Ela estava iniciando sua carreira e eu era Diretora do Museu de Arte Contemporânea – MAC da Universidade de São Paulo. Não só criei um curso de Design no MAC, mas iniciei uma séria de exposições ligadas à cultura visual do povo, como Carnavalescos, Estética do candomblé, Iconografia indígena na arte contemporânea, Cobogós, latas e sucatas, A mata etc., todas elas exposições inter-códigos. Participei naquela época do Conselho do Museu da Casa Brasileira e defendi acerbamente como membro do júri do “Prêmio de Design” a vitória de Maurício Azeredo, um jovem talento que ninguém do júri conhecia inclusive eu. Os outros jurados eram homens e todos muito importantes em design. Eu era a única mulher e a única ligada às artes visuais, embora tivesse pertencido a uma “escola informal de design” extraordinária no Recife, o Gráfico amador, que naquele tempo era só conhecida em São Paulo por super-intelectuais como José Mindlin e seu círculo. Adélia ao escrever o livro sobre Maurício Azeredo me pediu um depoimento; depois do livro minha admiração por ela vem crescendo continuamente.
Outro livro de Adélia Borges me entusiasmou muito. Trata-se de Design + artesanato. Em vez de falar sobre o livro vou traduzir aqui partes do texto da resenha sobre este livro de Rachel Mason, arte/educadora britânica especializada em “Art, Design and Crafts Education”, que já foi professora visitante da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e com quem colaborei para um livro por ela organizando na Inglaterra. A resenha foi publicada no International Journal of Education through Art, que ela criou em 1986 em formato de panfleto e hoje é a mais importante revista de arte/educação do mundo ocidental.
O título da resenha é “Design+Crafts: The Brazilian Path, Jadélia (sic) Borges”, e diz Rachel:
“Este livro enfoca as maneiras pelas quais designers tem colaborado com artesãos na revitalização do artesanato autóctone. Inicia explicando como o design foi institucionalizado no Brasil nos anos 60. O modelo era industrial e informado pelo funcionalismo da Bauhaus. Um regime militar promoveu design internacional através dos anos 1960 e 1970 em nome do progresso e artesãos locais se tornaram isolados e adversamente afetados por competição estrangeira. Artesãos desenhavam imagens do ‘hemisfério norte’ para padrões de design e decorações de superfícies e alguns processos artesanais tradicionais foram perdidos.
Um despertar cultural começou em meados dos anos 1980 sob uma nova constituição democrática. Instituições governamentais e não-governamentais montaram programas de estudo para mapear atividades artesanais, e agencias regionais, municipais e outras implementaram projetos com o objetivo de melhorar e diversificar a produção baseada em artesanato. Designers, ao lado de outros profissionais qualificados (sociólogos, antropólogos e educadores), colaboraram com artesãos em comunidades rurais. Quando forças regionais eram diagnosticadas, a infraestrutura artesã era melhorada através de programas visando a ampliação das vendas. Hoje o setor do artesanato se destaca por seu florescimento. De acordo com agências governamentais, havia 8,500,000 artesãos em atividade em 2001 e a produção do artesanato era a atividade cultural com a mais alta taxa de renda dos municípios brasileiros. Arquitetos, designers de interiores e curadores agora usam o artesanato em seus projetos e exposições e o artesanato está incluído em cursos preparatórios de Design.
A autora usa uma definição de artesanato formulada pela Unesco que enfatiza sua qualidade artesanal e sua importância sociocultural. Em muitas partes do Brasil objetos são feitos manualmente a partir de materiais locais reciclados. A aprendizagem do artesanato assim como outros tipos de atividades (principalmente agrícola) são aprendidas informalmente e coletivamente em família ou grupos vizinhos. Este livro é copiosamente ilustrado com belíssimos exemplos dos materiais artesanais e objetos – fotografias de tramas de algodão trançadas prontas para serem colocadas em teares, sementes, folhas e flores desidratadas, colares criados a partir de borracha remodelada, um tapete feito de polpa de papelão reciclada e fibra de bananeira, e canecas de cerâmica com padronagens baseadas em pinturas rupestres. Também contém imagens de produtos com design icônicos criados para indústrias de vestuários e móveis que incorporam o artesanato, por exemplo uma cadeira confeccionada a partir de cem bonecas de pano costuradas à mão.
O livro possui duas partes principais. Uma detalha o designer – interfaces artesanais e o outro o desenvolvimento da indústria. Eu achei o relato de como os designers interagem com os artesãos o mais interessante. Desenvolver a alta qualidade da produção e finalização e aperfeiçoamento técnico (melhorando e adaptando práticas para novos usos e mercados urbanos) foi uma prioridade em todas as colaborações. Designers trabalharam juntamente com artesãos para modificar produtos, criando especificações para catálogos e melhorando as condições de transporte. Eles pesquisaram os ricos materiais naturais brasileiros, junto com engenheiros agrônomos experimentando o gerenciamento sustentável da agricultura. Certificarem-se que os materiais artesanais mantêm uma conexão clara com seus lugares de origem (ancoragem) foi uma preocupação particular. Para esse fim, designers organizaram oficinas locais para encorajar investigações de referências da cultura local. Exemplos incluem desenhos de prédios locais, compilando inventários de animais selvagens e documentando motivos e padronagens historicamente usadas para decorar cabaças. As habilidades gráficas dos designers tiveram papel chave na marca que é essencial para incorporar artesanato na produção industrial (criando logos, rótulos, embalagens, catálogos, etiquetas de produtos, pontos de compra e exibição do site para informar consumidores sobre a riqueza, qualidade e origens de cada objeto. Designers também participaram do desenvolvimento em distribuição, marketing e promoção da produção artesanal.
O setor 2.5 como é conhecido hoje poderia não ter desabrochado sem incentivos governamentais e municipais. A segunda parte do livro detalha as iniciativas estratégicas empreendidas assim como sistematizar o negócio do artesanato ao longo do processo de produção completo. Cada elo na corrente foi levado em consideração, da transformação dos materiais brutos, à produção, marketing e distribuição. Gerentes de projeto foram nomeados para supervisionar pesquisas multidisciplinares e grupos de desenvolvimento, cooperativas locais foram formadas e membros das equipes intervinham entre as comunidades e o mercado. Novas saídas internas e externas para artesanato e iniciativas estratégicas empreendidas para racionalizar o trabalho e neutralizar exploração e abuso dos colaboradores. Reconhecimento e apreciação de produtos artesanais foram assegurados pelo desenvolvimento de sistemas de certificação e premiação, ligadas à noção de Comércio Justo, propriedade intelectual e o status legal de herança cultural intangível. O setor museal contribuiu para o renascimento do artesanato organizando exposições, seminários e publicações.
A expansão econômica não era o único objetivo. Eu suspeito que mais importante para a autora, esse movimento afetou positivamente a mudança social em comunidades rurais e na vida individual dos artesãos. Porque ela acredita no artesanato como tendo uma função simbólica em proporcionar aos indivíduos um senso de pertencimento aos lugares onde vivem, ela atribui grande importância processos de desenvolvimento de auto estima para garantir que eles são relevantes às suas comunidades de origem. Ela acredita ser o movimento de revitalização do design responsável, pelo menos em parte, por evitar a urbanização excessiva no Brasil e reverter fluxos migratórios. Ela também pontua que o uso de materiais naturais e os processos de produção artesanal está em sintonia com as ideias atuais de sustentabilidade, e responsabilidade ambiental.
Em sociedades ocidentais há o grande preconceito contra coisas feitas à mão. Intrigantemente Borges sugere que isto pode ser mais forte em países onde a escravidão tem sido generalizada, como o Brasil...
Dito isto, Design + Crafts é uma leitura fascinante e é uma contribuição extremamente valiosa para a literatura sobre artesanato. As conquistas econômicas e sociais desse movimento brasileiro revitalizado são realmente impressionantes, e para o melhor do meu conhecimento o foco do livro em artesanato manual e design de interface é único. Borges não teme detalhar tanto os fracassos como o sucesso, e sua postura crítica assegura que lições aprendidas no Brasil podem ser transferidas para outras regiões do mundo. Confiantemente o livro irá estimular programas de aperfeiçoamento em muitos outros países onde tradições artesanais locais são vistas como periféricas, e/ou ignoradas” (2).
Mais que este meu parecer e a resenha de Rachel Mason, os quase noventa depoimentos e cartas que acompanham o processo em defesa do título de Doutora Honoris Causa da Unesp, escritos sobre o trabalho extraordinário de 30 anos realizado por Adélia Borges em prol do desenvolvimento do design no Brasil, demonstram a justeza do título que lhe será conferido.
Fico à espera de poder comemorar com os professores da Unesp a concessão do Doutorado Honoris Causa à Adélia Borges.
Parabenizo Monica Moura pela ideia inicial e a todos que apoiaram a proposta.
Agradeço a chance que a Unesp me proporcionou de revisar minha enorme admiração por Adélia Borges.
São Paulo, 27 de fevereiro de 2020
notas
1
NE – Discurso proferido por Adélia Borges durante a solenidade de outorga do título de Doutora Honoris Causa pela Unesp está disponível no portal Vitruvius: BORGES, Adélia. Enxergando atrás da serra. Discurso proferido durante a solenidade de outorga do título de Doutora Honoris Causa pela Unesp. Resenhas Online, São Paulo, ano 20, n. 231.01, Vitruvius, mar. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/20.231/8035>. Outros dois artigos da homenageada estão disponíveis no Vitruvius: BORGES, Adélia. Cabeça, mãos e alma. Reflexões sobre design e artesanato na América Latina. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 141.04, Vitruvius, fev. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.141/4235>; BORGES, Adélia. Design e utopia. London Design Biennale comemora 500 anos de Utopia, de Thomas More. Drops, São Paulo, ano 17, n. 108.05, Vitruvius, set. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.108/6197>.
2
MASON, Rachel. Design+Crafts: The Brazilian Path, Jadélia Borges. São Paulo, Terceiro Nome, University of Rochampton UK, 2011. International Journal of Education through Art, v. 10, n. 3, out. 2014, p. 421-423 <https://bit.ly/3xzRugl>.
sobre a autora
Ana Mae Tavares Bastos Barbosa é professora titular sênior da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo – ECA USP e professora do Programa de Pós-Graduação em Design, Arte e Tecnologia da Universidade Anhembi Morumbi.