Humberstone, Fordlândia, Armero e Villa Epecuén, quatro cidades latino americanas transformadas em entulho, memórias e cemitérios. O documentário Cidades Fantasmas (1), de Tyrell Spencer, apresenta quatro localidades que passaram por processos de destruição, abandono e esquecimento, deixando no território apenas resquícios da sua condição material.
Enquanto visitamos as carcaças dessas cidades, percebemos que estamos no limite do reconhecimento de um espaço enquanto “cidade” de fato. Tudo aquilo que foi edificado converteu-se em ruínas. O documentário passeia entre paredes quebradas, ambientes internos tomados pela vegetação, buracos onde antes seriam portas e janelas, estruturas obsoletas. Humberstone, no Chile, foi uma cidade fundada para exploração e comércio do salitre, conhecido na época como “ouro branco”. A partir da Primeira Guerra Mundial seu comércio começa a cair e os pontos de exploração no Chile começam a ser desmontados. A cidade construída fica para trás. Esta desfiguração da paisagem nos afasta da compreensão cotidiana do que seria uma cidade. Contudo, os restos de espaços permanecem ativos em sua característica delimitadora, nos revelando fragmentos suficientes para ainda conseguirmos reconhecer aqueles espaços, como memórias fugidias de que um dia uma vida se desenrolou ali. Fica evidente que os processos de desaparecimento não foram concluídos, não houve um fim definitivo, mas um esticamento indefinido do velório urbano.
Atravessando as ruínas percebemos outro componente importante do filme e dessas “cidades”: a ausência. Os espaços construídos trazem dentro de si enormes vazios, colocando em xeque a própria condição tectônica da construção: o que aquelas paredes abrigam? Dando algum sentido para essa questão, ex-moradores narram suas histórias, revivendo os momentos trágicos da transformação de suas cidades e vidas. Os relatos de memórias de quem viveu ali remontam a cidade de fato, erguem as ruínas do chão. Essa imagem ganha força nos planos de entrevistas onde os ex-moradores relembram a vivacidade do passado enquanto estão sentados em frente aos escombros dos lugares onde foram felizes.
Em Villa Epecuén, na Argentina, um senhor permanece morando na “cidade” vazia. Ele lembra de quando aquele era um lugar frequentado como uma estação de águas medicinais, um retiro. As fotos coloridas mostram um céu azul e árvores verdes. O contraste é gritante quando vemos Pablo Novak hoje, sob um céu cinza, pedalando uma bicicleta enferrujada pelas ruas de entulhos, seguido por cachorros. Acostumado com aquele lugar, não quis sair. Permanece ali, contando para quem passa a história da quebra da barragem que inundou a cidade. As histórias relembradas brigam com o vazio dessas “cidades”, como se sua condição material fosse um indicativo de presença ao mesmo tempo em que os relatos apenas podem direcionar ao passado, que se estende até o presente, definhando.
O documentário mostra como o jogo entre permanência e ausência se confundem quando são vinculados espaço construído e memória narrada. Toda memória ancora-se em um lugar, um espaço praticado num tempo. Quando esse espaço passa a se corroer, a memória firma-se, mas não sem sofrer pelo afastamento de seu correspondente espacial. O filme mostra que quem viveu ali tem que conviver com uma realidade sem pontos finais. O esticamento do tempo dessas “cidades” em estado de ruína obriga a não resolução, histórias sem desfecho. Em Armero, na Colômbia, a erupção do vulcão Nevado del Ruiz deixou um rastro de destruição e mais de 20.000 mortos. Esperanza Fierro, sentada em frente a edificações corrompidas, como esqueletos queimados, conta como se perdeu de sua filha durante os deslizamentos de terra vulcânica; no hospital volta a revê-la, para depois perdê-la novamente quando foi transferida para outro hospital. A “cidade” segue de pé, morta-viva.
O que fica para trás quando a cidade é desfeita são histórias. Os processos de transformação apresentados no filme têm em comum a população que precisa retirar-se dali a força, da noite para o dia, sem poder de argumentação. Uma cidade pensada por um rico industrial como Henry Ford, Fordlândia deveria ser uma utopia estadunidense em solo brasileiro amazônico. No entanto, após uma série de crises a cidade vai sendo abandonada. Seja numa cidade planejada e desmontada pela força industrial capitalista, seja o caso de eventos naturais arrasadores, quem passou a entender aqueles espaços como morada não tiveram chance de segurá-los. Sem aviso prévio, restaram apenas as memórias de alguns e a ausência de todos.
Enquanto fantasmas, as cidades apresentadas encontram-se no limiar de mundos: da ausência e da presença, da afetividade e da tragédia, da materialidade e da narração. Por esse motivo são cidades translúcidas. Ao vê-las, vê-se uma sobreposição de tempos em um mesmo espaço, mas sem a possibilidade de reconhecer contornos precisos da imagem que se forma por trás da cidade. Também fazem-se fantasmas quando cada história que permanece sendo contada e recontada, conjura uma vivência passada naquele espaço. A cidade-ruína passa a povoar-se nem que seja por um espectro de uma memória.
notas
NA – Este ensaio foi publicado originalmente no site do coletivo Rasante, 17 out. 2020 <www.rasante.org/ensaios/cidades-do-fim-estendido>.
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Cidades Fantasmas foi vencedor da competição brasileira do Festival É Tudo Verdade em 2017 e fez parte da edição 2020 do festival através do Ciclo Sesc É Tudo Verdade: Os Premiados. Cidades Fantasmas. Direção de Tyrell Spencer. Brasil, 2017, 70 min.
sobre o autor
Rafael Baldam é urbanista arquiteto pela Unicamp, mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo IAU USP; editor da revista Rasante – intersecções entre arte e cidade; possui trabalhos em ilustração, quadrinhos e poesia.