Fundamentos de morfologia urbana, publicado em 2015 e reimpresso em 2017, apresenta noções gerais para os estudos de morfologia urbana, tratando-a como uma ciência que estuda a forma física, edificada das cidades, mas também os processos que a transformam. De maneira minuciosa, o livro enfatiza as linhas conceituais trabalhadas pelas Escolas de Morfologia Urbana Inglesa e Italiana. E, além delas, aponta alguns dos principais grupos e linhas de atuação na área. Destinado a estudantes, profissionais e pesquisadores ligados ao assunto, torna-se uma referência importante para situar os interessados nas possibilidades de abordagem e indicar os locais em que elas se concentram.
A autoria é da professora mineira Staël de Alvarenga Pereira Costa e de Maria Manoela Gimmler Nettto, sua orientanda de doutorado. Costa tem se destacado por sua contribuição para os estudos da Morfologia Urbana no Brasil, com atividades de docência e pesquisa. Na década de 1980, cursou o Mestrado do Centro Integrado de Desenho Urbano da Oxford Politécnica, atual Oxford Brookes University, juntamente com outros estudantes latino-americanos, sob orientação do professor britânico Ivor Samuels. No prefácio do livro, Samuels declara que a participação desses estudantes foi de grande valia para ampliação do estudo da forma urbana em Oxford à época. Segundo ele, até então, havia pouco contato entre os mundos acadêmicos dos geógrafos e arquitetos e urbanistas.
Cabe destacar também a participação de Costa no grupo internacional de morfologia urbana, composto por profissionais e pesquisadores de várias disciplinas, interessados no estudo da forma urbana, e que têm organizado encontros e publicações para a discussão e disseminação dos conteúdos relacionados ao tema. O grupo promove seminários anuais, como o ISUF – International Seminar on Urban Form –, inaugurado em 1994, e a publicação do Journal of the International Seminar on Urban Form, revista publicada bianualmente. Embora ainda seja pequena a contribuição brasileira sob a forma de publicação na revista, é considerável a presença dos pesquisadores desse país nas conferências do ISUF.
No contexto internacional, a Morfologia Urbana se estabeleceu como campo de estudo em meados do século 20, a partir da contribuição de pesquisadores europeus envolvidos na busca por uma construção metodológica que desse suporte ao estudo da estrutura física e espacial das cidades. Suas bases foram, então, sendo construídas gradualmente. Desenvolveram-se independente e quase simultaneamente as diferentes escolas de pensamento sobre o tema: a francesa, a italiana e a inglesa. Às duas últimas são destinados os principais capítulos do livro em questão (1).
O volume é estruturado em duas partes centrais, além da introdução e das conclusões. É possível que seja derivado da compilação de textos escritos separadamente, já que se nota uma retomada dos temas a cada nova seção, o que compromete a fluidez da leitura. Inicialmente são apresentadas as definições, os conceitos, referências fundamentais e outras colaborações para o estudo da Morfologia Urbana. As partes 1 e 2 correspondem às seções específicas sobre as escolas, nas quais são explicadas suas abordagens, destacando seus principais representantes, bem como as experiências ao longo de suas carreiras e a continuidade dada pelos adeptos de suas teorias. Os métodos são apresentados de maneira detalhada, contendo, inclusive glossários de termos técnicos. Ressalta-se, ainda, uma sincronicidade entre as duas escolas, o que facilita a correlação das contribuições de ambas para a compreensão do campo.
Expostas as bases conceituais das escolas, ao fim dos respectivos capítulos ambos os métodos são aplicados à cidade histórica de Ouro Preto, em Minas Gerais. Trata-se de uma demonstração da compreensão, por parte das autoras, de que há certa flexibilidade das metodologias e possibilidades de aplicá-las em contextos diferenciados dos locais onde foram investigadas anteriormente. Essa constatação é reforçada pela menção às várias publicações no Journal do ISUF, nas quais a aplicação desses procedimentos é também testada em outros diversos países.
Para a análise de Ouro Preto, Costa e Netto recorrem aos trabalhos e informações já documentadas por outros autores sobre a formação e o desenvolvimento da cidade, que facilitam a transposição dos conceitos e elementos metodológicos (2). Esses são apresentados em tópicos detalhados, acompanhados de esquemas, mapas e croquis ilustrativos.
Ainda que se identifique, por vezes, a carência de um posicionamento crítico, o livro não deixa de destacar a necessidade de adaptação de conceitos e de termos mais adequados à realidade brasileira, lembrando que as referências exploradas tratam de cidades europeias, com dimensões menores e que datam de períodos históricos mais distantes. Nesse sentido, é importante ressaltar ainda que a cidade de Ouro Preto, tida como estudo de caso, embora se encontre em contexto distinto daqueles nos quais os métodos se originam, possui mais de trezentos anos, o que parece suficiente para aplicação das análises que envolvem períodos temporais maiores, assim como a noção de período morfológico (da Escola Inglesa). Cabe aos pesquisadores brasileiros interessados nessas metodologias, considerar os cuidados para aplicá-las em cidades mais novas.
No Brasil, conforme se apreende de artigo publicado também por Costa (3), uma das autoras, os estudos de Morfologia Urbana começaram a se estruturar com mais força nos anos 1980, com a abertura de cursos de pós-graduação em algumas escolas de arquitetura, juntamente com o retorno de pesquisadores que trouxeram influências dos cursos de pós-graduação realizados na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. Nesse sentido, a influência do curso de Desenho Urbano da Universidade Oxford Brookes, contribuiu para a criação de uma nova geração de morfologistas urbanos no Brasil.
Desde então, a Morfologia Urbana como método investigativo tem despertado interesse dos pesquisadores no Brasil em diferentes linhas de pesquisa, dentre as quais identificam-se estudos de aspectos funcionais das cidades, relacionados aos problemas políticos, econômicos e sociais; análises de tecidos urbanos desenvolvidos espontaneamente; e o estudo das novas formas urbanas.
No entanto, são ainda grandes os desafios para a consolidação dessas linhas no Brasil, considerando-se a dimensão e a complexidade da forma de muitas de suas cidades. Talvez essa seja uma das razões da insuficiência de outros estudos aprofundados sobre as metodologias iniciais, das Escolas Italiana e Inglesa, o que pode ter levado à identificação da necessidade de disseminação desses estudos clássicos, na qual se apoia o livro de Costa e Netto.
Por fim, vale salientar que, por meio dos estudos das escolas apresentados e pelo exemplo aplicado, o livro reafirma a compreensão do campo da Morfologia Urbana, não apenas como o estudo da forma urbana por si só, mas relacionado a processos e ações políticas, sociais e econômicas ao longo do tempo, aspectos importantes para a leitura e compreensão da paisagem contemporânea. Uma noção mais clara e abrangente é oferecida, a despeito das discordâncias e debates que ainda envolvem as definições desse campo. Pode-se dizer que os grandes desafios enfrentados no livro são também suas maiores contribuições, sendo ele um passo fundamental para o aprofundamento do tema.
notas
1
Sobre as escolas da Morfologia Urbana, ver: OLIVEIRA, Vítor. Diferentes abordagens em morfologia urbana. Contributos luso-brasileiros. Urban forms <https://vitoroliveira.fe.up.pt>; ROSANELI, Alessandro Filla; SHACH-PINSLY, Dalit. Anne Vernez Moudon. Entrevista, São Paulo, ano 10, n. 040.01, Vitruvius, out. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/10.040/3397/pt_BR>.
2
Além dessas contribuições, devem ser considerados também os estudos desenvolvidos por Michael P. Conzen sobre a cidade de Ouro Preto.
3
COSTA, Stael de Alvarenga Pereira. O estudo da forma urbana no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 087.05, Vitruvius, ago. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.087/220>.
sobre a autora
Isadora Banducci Amizo é arquiteta e urbanista (UFMS, 2011), mestre e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU FAU UnB). Atualmente é professora dos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Interiores na UNIP – Campus Brasília. Integrante do Laboratório de Estudos da Urbe (Labeurbe-FAU-UnB), e do grupo de pesquisa Paisagem, Projeto e Planejamento (Labeurbe-FAU-UnB).