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Resenha do documentário “À margem do concreto”, que aborda a atuação de movimentos sociais que reivindicam moradia adequada no centro de São Paulo, lançado em 2006 e dirigido por Evaldo Mocarzel, disponível atualmente na plataforma do Sesc Digital.

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ANITELLI, Felipe. Direito à moradia interpretado pelos excluídos. Resenhas Online, São Paulo, ano 20, n. 237.02, Vitruvius, set. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/20.237/8248>.


O filme À margem do concreto (1) foi lançado cerca de quinze anos atrás e é um documento histórico que apresenta a vanguarda dos movimentos sociais que reivindicam moradia adequada na região central de São Paulo. O cenário retratado no início dos anos 2000 é entrevisto também na terceira década do século 21, ainda que as variáveis tenham se alterado, como se verá. O diagnóstico central permanece válido: a administração pública é incapaz de formular programas habitacionais que atendam as parcelas mais pobres da população, por isso, o direito à moradia não é atendido, os assentamentos precários se tornam predominantes e muitas pessoas com alta vulnerabilidade social são exploradas por proprietários imobiliários privados. O cortiço é um dos principais destinos das famílias que conseguem algum rendimento mensal; já os que não obtêm dinheiro suficiente perambulam desabrigados em espaços públicos residuais e têm a rua como morada.

Os entrevistados demonstram um conhecimento singular sobre as características do centro e ajudam a apontar caminhos viáveis para implementar políticas públicas. Um exemplo recorrente mencionado são edifícios ociosos e deteriorados, que não cumprem a função social como estabelece a Constituição Federal de 1988 e que são objeto de ocupação por grupos organizados. A política para desapropriar e reabilitar edificações abandonadas e convertê-las em moradia popular foi adotada pela prefeitura nas últimas duas décadas, a partir de reivindicações dos próprios ativistas, que inclusive ajudavam as autoridades competentes na identificação dos imóveis nestas condições. É previsível a pessoas que moram, trabalham e transitam pelas imediações adquirirem uma sensibilidade maior sobre esses problemas. Elas se convertem em sujeitos ativos que decidem participar, às vezes, sem convite formal, da concepção e da implementação de políticas habitacionais. Nesses casos, elas não são apenas eventuais beneficiárias de seus resultados. Essa integração de parcelas populares da sociedade civil gera legitimidade às políticas adotadas. Suscita-se a contradição entre concentrações de prédios vazios e milhares de famílias vizinhas sem acesso à moradia adequada.

A ocupação dos edifícios é detalhada por imagens e depoimentos, que explicam a maneira precária como as famílias se acomodam nos pavimentos e rearranjam o espaço original, a demarcação de ambientes internos para usos privados ou coletivos, a definição de atividades regulares que auxiliam os ocupantes em suas demandas familiares, a divisão de tarefas condominiais e a manutenção das instalações do prédio, a conciliação entre os afazeres administrativos do imóvel ocupado e a militância política nos movimentos sociais, o costume de compartilhar problemas e decidi-los de forma colaborativa através de assembleias, o temor infindável de decisões judiciais que expulsem os moradores, o medo de violência física e psicológica gerada por intimidações de proprietários privados e agentes públicos, o preconceito quase absoluto como a mídia tradicional enxerga esses excluídos, o equilíbrio entre um ativismo político inspirador e um futuro residencial incerto, entre outros fatores, que se somam ao desemprego sempre presente, à informalidade e à precarização das condições de trabalho, à exploração típica do capital sobre o trabalho e à incapacidade de gerar rendas mínimas, além da falta de educação institucional de qualidade, o que os impedem de postular postos de trabalho mais favoráveis e ampliar o horizonte financeiro.

Alguns imóveis captados pelas câmeras do documentário mostram prédios ocupados à época, como o Hotel São Paulo, localizado vizinho de uma das entradas do metrô Anhangabaú. O projeto original data dos anos 1940 e o autor é Dácio A. de Moraes Cia. Ltda., mas em 2006 houve uma reabilitação financiada com recursos da Caixa Econômica Federal e realizada pelo arquiteto Juan Gonzalez do escritório Assessoria Técnica Fábrica Urbana (ATFU). Hoje o imóvel está convertido em moradia popular. Outro caso ilustrativo é o edifício Maria Paula, localizado na rua de mesmo nome e também reabilitado pela ATFU em 2003 (2). Nesse contexto de reabilitações prediais mais recentes, é possível reconhecer uma ligação entre as ocupações de edifícios, as reivindicações populares, as políticas habitacionais e o acesso à moradia, indicando o impacto dessas organizações civis sobre a justiça social. No momento de lançamento do documentário, muitas ocupações já estavam consolidadas, mas as experiências com reabilitações quase não existiam na cidade. Mesmo que insipiente, trata-se de um momento de transição da política habitacional adotada pelo Executivo municipal. Apesar do desfecho talvez pessimista do último ato do filme, é possível listar uma série de conquistas das pessoas entrevistadas e dos grupos que elas representam. Os atuais moradores do Hotel São Paulo e do Maria Paula são testemunhas disso. No entanto, outros edifícios mostrados não tiveram a mesma sorte: o São Vito e o Mercúrio foram desocupados e demolidos após estudos técnicos demonstrarem a inviabilidade da intervenção, ainda que anteriormente a prefeitura já houvesse alinhavado ali uma reabilitação.

Já o edifício Prestes Maia, desapropriado há quase seis anos pela prefeitura e ocupado por movimentos de moradia desde muito antes das filmagens, ainda não foi reabilitado e continua ocupado de forma precária. Uma questão implícita no filme é o descompasso entre as demandas grandes e urgentes da população pobre e a política tradicional hegemônica: morosidade, intermitência, inadequação, desinteresse e indiferença. A inconsciente democracia direta carregada pelos militantes mais lúcidos colide com os anacronismos da classe política instituída e com a especulação imobiliária alavancada em edifícios abandonados.

Concentração de ativistas no dia de ocupação de um imóvel ocioso e deteriorado
Imagem divulgação [Frame do filme “À margem do concreto” (1h13’02”)]

Esse descompasso é entrevisto em outro edifício, visível ao fundo quando Luiz Gonzaga da Silva, o popular Gegê, dava entrevista aos realizadores. Esse imóvel está localizado na rua do Ouvidor, vizinho da passarela que cruza a avenida 23 de Maio. Imóvel de propriedade pública, durante muitos anos permaneceu ocioso e deteriorado. Como sempre, os primeiros que notaram o problema foram movimentos sociais tais como aqueles que protagonizam o filme. O ciclo se repetiu reiteradas vezes: ocupação, despejo, abandono; ocupação, despejo, abandono; etc.. À época do documentário, como é possível observar numa faixa, o edifício estava ocupado pelo Movimento de Moradia no Centro. Nos dias de hoje, o imóvel continua ocupado, mas por um grupo de artistas pobres, brasileiros, mas também oriundos de países latino-americanos. Entre as duas ocupações, houve uma inexorável reintegração de posse e a expulsão dos ocupantes anteriores. Nada muda, tampouco o desinteresse dos proprietários em dotar a edificação de função social.

Outro mérito da obra é resgatar trajetórias muito variadas, mas sempre carregadas de tramas pessoais e um futuro pouco promissor, como famílias rurais expulsas de suas propriedades e que migraram para a cidade buscando dignidade, migrações Nordeste–Sudeste e América Latina–São Paulo e a busca por postos de trabalho nem sempre existentes ou disponíveis, famílias desestruturadas e a inviabilização de ambientes domésticos saudáveis, preconceitos étnicos e raciais, etc., além de pessoas exploradas e um desencantamento que talvez reflita a péssima distribuição de renda existente na cidade. Experiências que evidenciam problemas históricos da formação brasileira e que, de certo, influenciaram o engajamento político de cada um e conduziram essas pessoas aos fóruns populares que debatem moradia adequada. Mesmo que os resultados muitas vezes não sejam favoráveis, eles tornaram-se agentes políticos relevantes no cenário local. Não é mais possível estabelecer políticas habitacionais sem consultá-los. “Fortalecer a participação popular nas decisões dos rumos da cidade” (3) é um pressuposto instituído no Plano Diretor, aprovado em 2014.

Nos anos subsequentes ao filme, alguns entrevistados ocuparam postos regulares na institucionalidade política, como membros do Conselho Municipal de Habitação – CMH. Ilustram essas vitórias Verônica Kroll, membro do CMH no biênio 2018-2020 e representante do Fórum de Cortiços e Sem Tetos de São Paulo; Sidnei Antônio Euzébio Pita, membro do CMH no biênio 2014-2016 e representante da União das Lutas de Cortiço. A perspectiva de assistir o documentário quinze anos após o lançamento traz o benefício de constatar que o cenário melhorou em diversos aspectos, ainda que milhares de famílias continuem desassistidas. Um dos depoimentos mais bonitos é de uma mulher pretendente à freira que, em certo momento de sua vida, dividia seu tempo entre as demandas do convento religioso e do movimento social, conseguindo, com muito esforço compartilhado, acesso à moradia adequada. Ela foi beneficiada de uma das 28 unidades habitacionais do edifício Santa Cecília A, projetado em 2001 pelo escritório Assessoria Técnica Ambiente, construído no lugar de um antigo cortiço, localizado em frente a praça Olavo Bilac, na Barra Funda.

A demolição do casarão encortiçado pré-existente foi realizada com mutirão dos futuros moradores, vários deles antigos inquilinos do cortiço. O documentário mostra outras experiências que envolvem famílias beneficiadas em tarefas realizadas no canteiro de obras, como o mutirão União da Juta e o mutirão Paulo Freire, cujos projetos arquitetônicos foram desenvolvidos pelo escritório Usina, respectivamente, em 1992 e 2003. Entrevistou-se uma senhora que era uma das responsáveis pela execução de instalações elétricas e seu depoimento descortina um orgulho de apropriar-se do ambiente doméstico construído com sua participação. Ela se inclui na operação ao explicar a obra: “nós fomos os primeiros a construir aqui”, enfatizando seu trabalho. “Todos esses conduítes que existem nesses apartamentos têm um pouco da minha mão”. Em cada depoimento, dramas pessoais são lembrados, imprevidências são relatadas, contingências são escancaradas, lutas são idealizadas, reivindicações são traçadas e conquistas são valorizadas.

Concentração de ativistas no dia de ocupação de um imóvel ocioso e deteriorado
Imagem divulgação [Frame do filme “À margem do concreto” (1h14’32”)]

Ganha-se interdisciplinaridade conforme novas instâncias de luta são acrescidas à ação, que tende a se tornar sistêmica, ao contemplar desde ocupações de prédios abandonados até o controle sobre a administração da construção, incluindo participação na concepção dos programas habitacionais e dos projetos arquitetônicos. Nesse contexto, os termos que definem o ativismo político precisam ser ampliados diante de novas possibilidades para intervir na realidade local. Também é alterada a percepção dos participantes sobre o seu papel na história, cada vez menos objetos de políticas públicas e cada vez mais sujeitos ativos que participam como protagonistas e coautores de tais políticas. O futuro dessas pessoas depende menos da generosidade das autoridades públicas e mais da capacidade de interação política que esses movimentos impõem.

Trata-se de uma narrativa em disputa pois, de certo, esse quadro não parece tão inspirador quando outros agentes resolvem opinar, como a imprensa tradicional. Isso é exposto no momento em que o documentarista propõe que alguns militantes assistam uma reportagem jornalística sobre as nomeadas “invasões” de propriedades alheias. Nas falas dos entrevistados, é possível entrever um esforço grande para legitimar suas estratégias de trabalho que, no geral, não são trazidas para o plano da institucionalidade pelas autoridades responsáveis. A reação desproporcional e violenta das forças de segurança pública ao intervir sobre um recém ocupado edifício e a expulsão à força e sem diálogo dos ocupantes – narrados com detalhes no último segmento do filme – comprovam que o Estado não considera legítima a existência dos ativistas. O documentário não dá voz a agentes representantes do Executivo local, mas, seguindo pistas já esclarecidas por tantos trabalhos acadêmicos, menciona-se aqui a conivência como a prefeitura lida com a ilegalidade de muitos proprietários de imóveis da região central, que mantém seus prédios ociosos e deteriorados e detém altas dívidas com tributos municipais, como o IPTU.

Um observador atento notará diante de quais circunstâncias essas pessoas atuavam. Apesar de nem sempre nomeados, são apresentados casos do Programa de Atuação em Cortiços – PAC, da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU; do Programa Auxílio Aluguel da prefeitura de São Paulo; do Programa de Arrendamento Residencial – PAR da Caixa Econômica Federal – CEF; mais legislações, como o artigo 6° da Constituição Federal de 1988, que versa sobre o direito à moradia; além da violência policial, se essa estratégia puder ser considerada uma política de Estado. Entrevê-se um processo de transformação de trechos da região central, caso essas e tantas outras políticas do gênero sejam implementadas com todo o potencial. Mais no desejo de quem formula o roteiro do documentário do que na realidade concreta dos fatos, vislumbra-se um centro mais plural em termos do perfil socioeconômico dos habitantes e mais inclusivo por causa de moradias populares instaladas. Essa conversão é visualizada dentro dos próprios prédios reabilitados. Por exemplo, o edifício Maria Paula, já mencionado, cujo arranjo espacial original tinha um único apartamento por andar e que, após a reabilitação, dispôs seis unidades habitacionais em cada pavimento.

Por fim, é importante notar que o palco dessas manifestações políticas não são os púlpitos tradicionais da política institucionalizada e representativa, mas o espaço público. O centro da cidade não é apenas um cenário de fundo captado pelas câmeras, tampouco um espaço geográfico onde se acomoda o ambiente construído, mas o lugar em que, ao mesmo tempo que produz exploração, gera consciência e oportunidade para o exercício da cidadania.

Cartaz do filme "À margem do concreto"
Imagem divulgação

notas

1
“À margem do concreto”, direção de Evaldo Mocarzel, roteiro Evaldo Mocarzel e Marcelo Moraes. 75 minutos. O documentário foi contemplado em seleção pública do Programa Petrobrás Cultural, produzido por 24 VPS Filmes e Casa Azul Produções Artísticas, lançado em 2006. O cineasta é responsável por outras produções, como “Do luto à luta” (2005) e “À margem da imagem” (2002). O filme atualmente está disponível na plataforma online do Sesc Digital.

2
O projeto original é dos anos 1940 e o autor é Escritório Técnico A. B. Pimentel. As informações técnicas sobre as reabilitações não foram mencionadas no documentário, inclusive porque muitas delas foram concluídas após o lançamento do filme.

3
Texto ilustrativo da Lei n. 16.050, de 31 jul. 2014 <https://bit.ly/3nr3Kgm>.

sobre o autor

Felipe Anitelli é arquiteto e urbanista, mestre (EESC USP), doutor (IAU USP) e pós-doutor (FAU USP). Professor adjunto na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, estuda o tema da habitação coletiva.

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