Em dezembro de 2020, a Netflix – um serviço de streaming por assinatura que permite assistir filmes e séries sem comercial por meio da internet – lançou um novo filme: A incrível história da Ilha das Rosas (1), no qual assistimos a história de Giorgio Rosa, um engenheiro insatisfeito com as privações impostas a ele na cidade italiana de Rimini, que resolve construir uma ilha em que a liberdade pudesse de fato ser exercida não só por ele, mas por todos que assim desejassem.
No entanto, a construção dessa ilha por Giorgio não se resume apenas no interesse de ter um lugar distante da cidade que lhe priva da sua liberdade de criação, afinal, ao longo do filme, nos é apresentado outros dois problemas enfrentados pelo engenheiro: o pagamento de uma multa por pilotar um avião criado por ele e a prisão por dirigir um veículo igualmente criado pelo mesmo e, portanto, sem placa. Dessa forma, a ilha para Rosa é também a criação de uma nação independente.
Nação esta que foi estrategicamente localizada na costa de Rimini, nas águas do Mar Adriático e além do limite do mar territorial da Itália, logo em águas internacionais, onde já não se aplicavam as leis do referido país. Em seus 400m², a ilha do filme conta com uma construção em forma de ‘U’, a qual se torna famosa por conta de um alemão apátrida que é o promoter de eventos do lugar.
Os desdobramentos de A incrível história da Ilha das Rosas se dão, principalmente, a partir do momento que o engenheiro resolve ir ao Conselho da Europa em busca de oficializar sua ilha como uma nação independente. Nesse contexto, essa resenha objetiva pensar a questão da constituição de uma nação através do referido filme utilizando a visão de Bresser-Pereira sobre o tema (2).
A arte imita a vida
Por mais surpreendente que possa ser, a Ilha das Rosas realmente existiu. O início da sua construção se deu em 1967, quando o engenheiro Giorgio Rosa projetou e financiou uma plataforma de 400 m², que ficava suspensa acima do fundo do mar por pilares de aço. O processo construtivo da ilha durou seis meses e contou com a ajuda de quatro amigos e um pequeno grupo de trabalhadores, tendo sido localizada a 12 km da costa de Rimini, além dos limites territoriais da cidade, para as leis da época estava isenta da legislação local. Hoje, a história da Ilha das Rosas é muito famosa em Rimini, sendo contada pelos avós aos seus filhos e netos.
É importante destacar que nem todos os acontecimentos do filme, se deram da mesma maneira que a realidade, a começar pela estrutura física da ilha. A Ilha das Rosas representada no filme da Netflix, possui uma construção em forma de ‘U’, onde percebemos apenas a existência de um bar, a área central em que se concentravam todos aqueles que chegavam à ilha e que sempre parecia estar em festa, além do restante da construção que foi pouco explorada, mostrando apenas um ambiente que se assemelhava a um quarto.
Já a Ilha real foi construída ocupando o espaço central da plataforma e sendo circundada por uma varanda, de acordo com o relato presente em When... (3), a ilha contava com uma boate noturna, um restaurante e uma loja de souvenirs. O produtor do filme, Matteo Rovere, relata ainda que a ilha foi pensada por Giorgio Rosa para ter cinco andares, os quais seriam construídos um a cada estação (4).
Quanto a infraestrutura, nos é mostrado no filme apenas a preocupação com a necessidade de existir água potável e também o processo como foi feito para que esse objetivo fosse alcançado. No caso da ilha real, McIntosh vai relatar que embora a equipe e Rosa tenham obtido sucesso na construção de três banheiros, as outras instalações que a ilha necessitava provocaram dificuldades.
Outra diferença que pode ser apontada entre a história real e aquela que foi transformada em filme, é o que motivou a construção da Ilha. Na película, o entendimento que temos é que após ter um conflito com sua grande paixão, Gabriella, e ela lhe ter tido que não poderia criar um mundo só dele, o engenheiro teria se sentido provocado a provar o contrário. No entanto, na história real, Giorgio já era casado com Gabriella na época da construção da Ilha, tanto que seu filho, Lorenzo Rosa, relata ter lembranças de aos sete anos ter visitado diversas vezes a referida ilha (5).
De igual forma, o longa-metragem mostra que a construção se deu inicialmente por apenas Giorgio e seu amigo, Maurizio; tendo sido com o tempo que os outros componentes chegaram e começaram a fazer parte do processo, contudo, como foi dito acima, essa não foi a realidade.
Por fim, a nova nação tinha sua bandeira, a língua oficial – o Esperanto – e até mesmo selos postais. Além disso, Giorgio Rosa se declarou presidente da Ilha das Rosas e tornou os companheiros que apoiaram a sua ideia em ministros.
A questão central: uma nova nação e suas possíveis ameaças
Nação, de acordo com Bresser-Pereira, “é a sociedade politicamente organizada que compartilha uma história e um destino comum, e conta (ou tem perspectivas de contar) com um território e um Estado para, assim, formar um estado-nação que lhe sirva de instrumento” (6).
Bresser-Pereira ainda vai dizer que o que vai tornar uma nação forte e coesa é a sua ideologia, sendo essa ideologia então conhecida como nacionalismo, que forma e preserva o estado-nação. Além disso, sendo a nação uma construção social, a sua constituição se dá necessariamente por meio da existência de um Estado ou de um projeto de Estado, em que “a história, o destino e os objetivos políticos comuns são condições necessárias para existência de uma nação” (7).
Levando em consideração essas ponderações, ao relacionar com a história da Ilha das Rosas percebemos que a ideologia fundante desta nação era a liberdade, não só almejada por Giorgio Rosa, mas também por aqueles que apoiaram e executaram sua ideia, e que, portanto, buscaram constituir um território em que pudessem efetivar aquilo que acreditavam. Dessa forma, a crença numa liberdade que não era encontrada no lugar em que viviam, se tornou o objetivo político deles.
Segundo Bresser-Pereira (8), o Estado moderno – existente desde o século 14 – é um “instrumento por excelência de ação coletiva da sociedade”, sendo assim a sociedade civil o utiliza como meio de alcançar seus objetivos políticos, os quais são: segurança, desenvolvimento econômico, justiça social, proteção do meio ambiente e liberdade. Nesse caso, podemos afirmar que para Rosa e seus amigos, o Estado italiano não atingia um de seus objetivos políticos que é justamente a liberdade.
Se ausência dessa liberdade gera a criação de uma nova nação, que visibiliza uma falha do Estado moderno, logo a sua existência se caracteriza como uma ameaça para aqueles que constituem o governo desse Estado. Tanto no filme, quanto na vida real a permanência da Ilha das Rosas tratou de ser minada pelas autoridades, a fim de demonstrar prontamente que atitudes como aquela não seriam toleradas.
Apesar de construídas em águas internacionais, as autoridades italianas estavam insatisfeitas com o estabelecimento da Ilha, uma vez que não houve pedido de permissão e se lucrava sem responder às leis fiscais; por esses motivos, começaram a espalhar boatos de que havia na ilha práticas ilegais, como jogos de azar, e até mesmo que a Ilha era usada para dar cobertura à submarinos nucleares soviéticos (9).
O When... relata que três eram as teorias sobre a Ilha das Rosas: a primeira de que a ilha era efetivamente italiana, mas escapava de pagar os impostos, o que poderia se tornar um perigoso precedente; a segunda, criada pelo MSI – grupo parlamentar de extrema direita – era de que a Ilha representava uma ameaça a segurança da Otan, justamente por esconder os submarinos nucleares soviéticos; e por fim, a terceira, criada por membros de esquerda do parlamento de que a ilha se constituía como uma plataforma com fins de lançar ações desestabilizadoras através do mar Adriático para a Iugoslávia e a Albânia.
Entretanto, ainda que a intenção fosse descredibilizar a Ilha das Rosas, o esforço teve resultado contrário, pois acabou gerando propaganda gratuita, fazendo com que os jovens da época buscassem a ilha por diversão e liberdade. No filme, podemos constatar que a referida ilha, desde a sua inauguração oficial, permanecia sempre cheia em dias de verão, como uma festa ininterrupta.
Considerações finais
O fim da Ilha das Rosas chegou 55 dias após a declaração de sua independência, forças militares foram enviadas para tomar o controle do local. Em fevereiro de 1969, três rodadas de dinamites foram utilizadas para explodir os pilares de aço que a sustentavam, sendo apenas submergida após uma tempestade.
Assim como uma ideologia de liberdade foi utilizada para criar e concretizar a Ilha das Rosas, o nacionalismo italiano que se baseou provavelmente na necessidade de segurança e proteção de sua nação há muito estabelecida e que corria iminente perigo com o reconhecimento efetivo da nova nação, não permitiu que a ideia de Giorgio Rosa de fato se concretizasse.
De todo modo, podemos considerar, a partir das reflexões de Bresser-Pereira sobre a constituição de uma nação, que efetivamente Rosa e seus amigos criaram uma nova nação baseando-se na sua ideologia de liberdade. No longa-metragem, inclusive, nos é mostrado que diversas pessoas fizeram pedido de renúncia da cidadania italiana e que outras solicitaram a cidadania da nova nação.
O estabelecimento de uma forma de governo pelos ilhéus muito similar àquela que já existe pode demonstrar que o que os incomodava na verdade não era o arranjo político, mas o modo como Rosa percebia que a sua noção de liberdade era cerceada; o que também nos leva a considerar se era o engenheiro que requeria uma liberdade extraordinária ou se de fato temos uma falsa liberdade que nos limita.
Por fim, ainda que Giorgio Rosa pudesse ter experimentado a realização de sua ideia e lutado pela sua permanência, lhe sobrou apenas uma memória e uma dívida com o governo italiano que entendeu que o engenheiro deveria pagar pelo valor utilizado na destruição da Ilha das Rosas. Todavia, essa história nos oferece uma reflexão: até que ponto o Estado nos permite exercer a nossa liberdade?
notas
1
A incrível história da Ilha das Rosas (Rose Island), direção de Sydney Sibilia, roteiro de Sydney Sibilia e Francesca Manieri, 1h 58min, 2020. Com Elio Germano, Matilda de Angelis, Tom Wlaschiha, Luca Zingaretti, Frabrizio Bentivoglio, Leonardo Lidi, François Cluzet.
2
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Estado, Estado-nação e formas de intermediação política. Lua Nova, revista de cultura e política, São Paulo, n. 100, jan. 2017, p. 155-185.
3
When Italy went to war with the esperanto micro-nation Insulo de la Rozoj. Visit rimini – free tourist information and news, 2009 <https://bit.ly/3nsmUmc>.
4
MCINTOSH, Steven. Rose Island. Netflix adapts the story of 'prince of anarchists' Giorgio Rosa. 2020 <https://bbc.in/3BWZjxU>.
5
Idem, ibidem.
6
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 170.
7
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 171.
8
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 164.
9
MCINTOSH, Steven. Rose Island. Netflix adapts the story of 'prince of anarchists' Giorgio Rosa. 2020 <https://bbc.in/3BWZjxU>.
sobre a autora
Gabriella Suzart Santana, urbanista pela Universidade do Estado da Bahia, é pós-graduanda pela Escola da Cidade, na linha de pesquisa “Cidades em disputa: pesquisa, história e processos sociais”.