“Mas o tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim”.
Lina Bo Bardi (1)
Quando da apresentação da exposição “Lina Bo Bardi” na China, em 1998, o diretor da faculdade de arquitetura da Universidade de Hong Kong, professor Eric Lye, após ler a frase de Lina sobre o tempo, que utilizamos no painel de abertura (aqui apresentada como epígrafe), presenteou-nos com um desenho que representava o tempo segundo a dinastia Sung do Norte (960 – 1127 d.C.). Tratava-se de um emaranhado de linhas que faziam volutas, sem começo nem fim definidos. Linhas construídas por pontos e traços descontínuos com interrupções que poderiam ser interpretadas como uma miríade de caminhos, ou as veredas de Guimarães Rosa. Caminhos no tempo que poderiam ser trilhados livremente.
O diagrama era a perfeita ilustração para a frase de Lina, e a frase, a explicação do diagrama. Sem pestanejar, surpreendidos que estávamos com este encontro de visões do tempo convergentes espaçadas por quase mil anos, fizemos um novo painel para a abertura da exposição, reunindo texto e diagrama.
Conto essa passagem sobre um encontro tão significativo de modos de ver, pensar e representar o tempo, numa dimensão expansiva e libertadora, para ilustrar o modo de agir de Lina na criação de seus espaços, de suas arquiteturas. Este encontro fortuito com o extremo Oriente referenda, de certa forma, a frase de Lina, na qual afirma que o tempo linear é uma invenção do Ocidente. Mas nessa citação, Lina quer dizer mais: sua referência aos diferentes tempos parece ser uma maneira de dizer não a muitos aspectos da civilização ocidental, uma reverência ao tempo não cronológico, comum a tantos povos originários e culturas do planeta, a começar pelos nossos povos indígenas.
Em um outro momento de reflexão sobre a cultura brasileira, no livro Tempos de grossura: o design no impasse, Lina (1994) diz que:
“O Ocidente continua tomando em consideração somente as manifestações culturais dos grupos de poder central; e não sai deste impasse. Mas, apesar dos esforços para demonstrar o contrário, o Brasil é mais África-Oriente do que Ocidente. Portugal também não é meramente Europa: é um país Atlântico” (2).
Reforçando este argumento sobre ser mais ou menos ocidental, lembro aqui das inúmeras vezes que Lina, citando Gilberto Freyre, se referiu ao tempo hispânico como uma chave para a compreender o Brasil. Tempo não linear, que não se submete ao cronômetro, tempo do sertão, dos animais e vegetais, ligado aos fenômenos da natureza; tempo de viver o ócio de forma digna e criativa. Nesse sentido, passado, presente e futuro podem fundir-se, conciliados.
Estas reflexões deixam claro o constante combate de Lina às limitações, aos enquadramentos, às “amarras do passado”, como costumava dizer, impostas ao mundo ocidental de matriz europeia e racionalista; aos princípios que moldam o mundo prioritariamente pela ótica da produção, que valorizam somente o trabalho incessante e produtivo dos homens. Lina era incansável em repetir que sempre procurou a arquitetura da liberdade, que sempre procurou ser livre frente às coisas, frente ao mundo.
Isso tudo pode parecer retórica ou força de expressão, mas não é. Essa vontade de ser livre se lê, se vê e se experimenta em seus espaços. Este estar atento à busca de liberdade é matéria prima de seu projetar, de seu criar a arquitetura com rigor e poesia.
Tomemos como exemplo três de seus projetos de forte inserção urbanística e intenso uso coletivo: o Solar do Unhão, na Bahia, o Masp e o Sesc Pompeia, ambos em São Paulo. São espaços que apostam na possibilidade de vida em sociedade, na possibilidade de compartilhamento; espaços que promovem encontro, convívio e tolerância entre diferentes; espaços de respeito que reforçam a crença nesta criação humana sem igual chamada Cidade. Esses três projetos enfrentam o desafio de atender ao instinto gregário que nos habita e nos transforma em grupos, coletivos, comunidades, cidades e até metrópoles.
São projetos que procuram responder às necessidades humanas de relacionamento em seus aspectos universais e locais a um só tempo; que buscam atender às demandas do corpo – “Vejo a arquitetura como convívio: comer, sentar, falar, andar, ficar sentado tomando um pouquinho de sol...”, diria Lina; que promovem o livre observar do movimento alheio, como nos cafés, nas ruas e nas calçadas, observação que impõe o exercício do respeito enquanto postura e comportamento de quem observa e de quem é observado. Somente uma atenção aguçada ao comportamento humano e um grande talento, livre de amarras, poderiam oferecer tais vivências ou experimentos em projetos de arquitetura. Lina afirma: “A arquitetura não é somente uma utopia, mas é um meio para alcançar certos resultados coletivos”.
Lina projetava longe de modismos, regras preestabelecidas e questões formais como ideias de composição e eixos imaginários, modos ainda habituais de fazer arquitetura. Buscava soluções em exemplos de qualquer canto do planeta: da antiguidade dos Zigurates à tecnologia de ferrocimento de Lelé (o arquiteto João Filgueiras Lima), passando pela Alhambra, ou pela tecnologia do carro de boi, que a ajudou a criar a genial escada do Solar do Unhão. Sempre buscou trabalhar com o que tinha às mãos, com os pés no chão do ponto de vista material e técnico. Era também ambiciosa e ousada na busca de soluções que servissem aos seus projetos, aos seus sonhos de espaços plenos de convivência, sem as limitações do tempo.
Cito aqui alguns exemplos. No conjunto do Unhão, Lina demole alguns edifícios, tão antigos quanto os que lá ficaram, para abrir uma praça à beira d’água, com piso de pedra, que lembra as praças medievais europeias e hoje recebe encontros de música, como o já consagrado “Jam no MAM”, que reúne jovens, artistas, músicos, poetas, famílias com crianças de colo, idosos, sem distinções de classe. Um oásis de paz na metrópole soteropolitana.
No Masp, o disputado vão livre é palco central de manifestações de todo tipo, espécie de umbigo político da cidade. É também o respiro visual, o conforto como surpresa no meio do ruído da cidade, um escape para o transeunte que sai da calçada da avenida e adentra essa espécie de varanda urbana, abrigo de sol e chuva, com pedra e grama. No vão livre, também oásis na frenética urbe paulistana, encontramos uma pausa no tempo do relógio urbano.
Ainda no Masp, os polêmicos cavaletes de concreto e vidro projetados por Lina para expor as pinturas da coleção na nova sede do museu, inaugurada em 1968, aboliram em definitivo as paredes como suportes. Tiraram as obras do plano bidimensional para coloca-las “soltas” e livres no espaço, criando uma coreografia expositiva em que os quadros parecem bailar acima do solo e o espectador faz parte do espetáculo.
Nesse mar de pinturas flutuantes, Lina dá novamente uma estocada no tempo linear. É preciso lembrar sua parceria com o professor Bardi (Pietro Maria Bardi, um dos criadores do museu) na ousada decisão de organizar a pinacoteca pondo os grandes mestres da pintura e da escultura todos juntos, sem separação por escolas, tempos ou estilos. Estão todos juntos no presente, atuando em um grande concerto.
Por fim, o Sesc Pompeia, obra madura na qual Lina coloca todas as suas fichas, reunindo as experiências anteriores do Unhão e do Masp, o que deu certo com o que não conseguiu realizar e implantar, por motivos diversos que não cabem neste artigo. Observamos ali a vida pulsante de seus frequentadores, que parecem sentir-se em casa, donos dos espaços, mas donos de uma propriedade que é coletiva. Em uma aula para alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, no teatro do Sesc Pompeia, Lina chegou a dizer: “Fizemos aqui uma experiência socialista”.
Em um de seus depoimentos sobre o Sesc Pompeia para um documentário da TV Cultura (Panorama Fábrica da Pompeia, 1982), Lina volta ao ataque ao Ocidente, explicitando o que procurou no projeto e o que já estava acontecendo no recém-inaugurado centro de lazer:
“O centro da Fábrica da Pompeia é uma tentativa para criar um ponto de reunião que não seja uma imposição cultural, ou um fato artístico, mas alguma coisa que fosse um reencontro daquilo que hoje está praticamente perdido, e não somente no Brasil, que é uma solidão acompanhada pelos outros. O fato de o centro da Fábrica da Pompeia ser uma fábrica é importante porque em geral a ideia de lazer é uma ideia de esquecimento do trabalho, ao passo que aqui foi procurado um sentido dialético trabalho-lazer, isto é, a fábrica lembra o trabalho, mas não um trabalho escravo, um trabalho livre que poderia ser um lazer. [...] Aqui temos um centro de convivência onde acontecem eventos ou atividades gerais e onde o pessoal é livre. O pessoal se acostumou a uma convivência coletiva individual, estranhamente. Quer dizer: é a solidão no meio dos outros, o que é a coisa mais difícil de ser alcançada especialmente no Ocidente, numa sociedade como a nossa, de barulhos e de acontecimentos terríveis” (3).
Nessa entrevista, Lina retoma a ideia de que a liberdade só pode ser alcançada com a superação do tempo cronológico ou, pelo menos, com a possibilidade de experimentarmos momentos em nossa vida cotidiana nos quais nos livramos dele. A liberdade da “convivência coletiva individual”, imagem inventada por ela que sugere certo aconchego e conforto; imagem que lembra a situação de uma criança de colo dormindo tranquila no meio de uma festa agitada, sentindo-se protegida pelos outros.
No estrato mais fino da sua arquitetura, que combina diferentes tempos, o Sesc Pompeia contém uma sutileza que brinda a convivência acima de tudo. Aponta soluções e rumos para a construção de uma cidade ideal, como se pudesse existir, sem automóveis, onde as pessoas são iguais (dentro de suas diferenças) e não têm um relógio sobre sua cabeça. Em resumo, é uma cidade que deu certo. Com certeza, outro potente oásis em São Paulo.
Poderíamos citar tantos outros exemplos da obra de Lina que rompem com a noção de tempo linear em sua estruturação material ou imaterial, como a Igreja do espirito Santo do Cerrado, que parece trazer um pedacinho da Roma antiga para a periferia de Uberlândia, ou os projetos-piloto para a recuperação do Centro Histórico de Salvador, a começar pela Ladeira da Misericórdia, que retoma o papel da muralha na arquitetura, mas construída com leveza e alta tecnologia (muralhas de argamassa armada ou ferrocimento).
Mas fiquemos com estes três grandes exemplos, Solar do Unhão, Masp e Sesc Pompeia, que acabaram se revelando opostos à arquitetura-show, ou arquitetura do espetáculo, que tantos simulacros produziu nas últimas décadas mundo afora; arquitetura que parece ter saído dos trilhos, ou se afastado de seu fundamento original, que é a criação do abrigo – da casa à cidade. Seguramente, podemos afirmar que esse não é o caso do Solar do Unhão, do Masp e do Sesc Pompeia, abrigos de escala metropolitana, vivos, necessários e com muita vida pela frente. Arquiteturas de muitos tempos? O tempo dirá.
notas
NE – o texto foi originalmente escrito para ser publicado na revista Calibán.
1
FERRAZ, Marcelo (Org.). Lina Bo Bardi. São Paulo, Instituto Bardi, 1993, p. 327.
2
BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo, Instituto Bardi, 1994.
3
Depoimento de Lina Bo Bardi no documentário “Panorama Fábrica da Pompeia”, São Paulo, TV Cultura, 1982.
sobre o autor
Marcelo Ferraz é arquiteto formado pela FAU USP em 1978, é sócio do escritório Brasil Arquitetura, onde tem realizado vários projetos com premiações no Brasil e exterior. É também sócio fundador da Marcenaria Baraúna, onde desenvolve projetos de mobiliário, desde 1986.