Várzea do Tietê: projeto e urbanização marginal, de Jordana Alca Barbosa Zola, compõe o trio das primeiras publicações que dão início à Coleção Caramelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP idealizada pelo saudoso professor Mario Henrique Simão D’Agostino. Resulta de sua belíssima tese de doutorado orientada pelo professor Julio Katinsky a qual recebeu dupla premiação — a menção honrosa no concurso de teses da Universidade de São Paulo da área de Ciências Sociais Aplicadas e o prêmio IAB São Paulo na categoria “Desenho Urbano e Arquitetura da Paisagem”. Juntos, esses prêmios reconhecem a relevância do trabalho como contribuição para o meio acadêmico e para a prática profissional.

O rio Tietê adquire importância ao longo do século 20 como parte do sistema hídrico que permitiria a implantação do grande projeto de integração latino-americana a partir da interligação de bacias hidrográficas Orinoco-Amazonia-Prata, sob a concepção de múltiplo uso dos rios para o desenvolvimento regional — navegação, geração de energia, irrigação, lazer. — com a promessa de alavancar a urbanização e industrialização do interior, conectando as principais cidades latino-americanas que despontaram como metrópoles. Como um dos principais afluentes da bacia do Prata, o rio Tietê atravessa todo o território paulista desde as encostas da Serra do Mar, passando por áreas urbanas, barragens, cuestas, até sua foz no rio Paraná, que hoje se encontra submersa pelas represas do Complexo Urubupungá. Mas é a sua passagem pela metrópole — a qual corresponde talvez ao seu trecho mais crítico com o encarceramento dos meandros que valsavam lentamente pela planície aluvial — que ocupa lugar privilegiado no debate urbanístico há mais de um século. E é sobre esse território conformado por uma unidade geográfica — a várzea — mas sobretudo definido pelo entrecruzamento entre o Tietê e a cidade de São Paulo, que o livro se debruça desvendando seu processo histórico, seus problemas e possibilidades futuras.

Processo de urbanização da várzea do rio Tietê
Imagem divulgação [Várzea do Tietê: projeto e urbanização marginal (FAU USP, 2021)]

Reunindo um século de documentos e recuperando um amplo e rico acervo de planos e projetos, o livro constitui uma contribuição ímpar para a historiografia da cidade, do urbanismo e das obras públicas. Desvenda as múltiplas propostas em torno da apropriação social e econômica da Várzea do Tietê, as sincronias e dissonâncias entre as concepções ao longo do tempo e a relação com o processo de urbanização que se efetiva. Através de um trabalho minucioso de análise cartográfica e projetual, Jordana vai desfiando no tempo as propostas elaboradas por profissionais de diversas formações — arquitetos, engenheiros, urbanistas e geógrafos — que se dedicaram a pensar e propor a urbanização e o aproveitamento do rio Tietê, as ideias e técnicas mobilizadas, as escolhas, as disputas entre diferentes interesses, desvendando os limites e incompatibilidades entre o que se projeta e o que se realiza no espaço urbano.

O livro esta dividido em duas partes — o projeto incompleto e o projeto a retomar — que equilibra a dimensão analítica e propositiva do trabalho, indissociáveis no fazer urbanístico. Jordana extrapola assim a dimensão esperada de uma tese de doutorado e não se limita à reflexão sobre o que foi pensado e realizado no processo de estruturação urbana e metropolitana, mas se coloca à frente do trabalho, encerrando o livro com uma proposta de sua autoria. Pois refletir sobre o passado esta intrinsicamente ligado a projetar um futuro.

A primeira parte do livro se dedica a construir uma compreensão da Várzea do Tietê como unidade territorial e projetual, a partir do processo de urbanização e sua relação com o meio físico, recorrendo a autores importantes na caracterização desse processo como Aziz Ab’Saber, Aroldo de Azevedo e Jüergen Langenbuch. Para a autora, essa caracterização é reveladora da incompletude do nosso processo de urbanização e modernização onde coexistem crescimento econômico e grandes avanços tecnológicos e o aprofundamento da pobreza, degradação ambiental e estruturas sociais e políticas arcaicas.

No segundo capítulo do livro, Jordana constrói uma cronologia dos projetos e propostas para a Várzea do Tietê desde a virada do século 19, desenvolvidos dentro da administração pública ou fora dela por empresas e profissionais atuantes, nos oferencendo a interpretação das mudanças e permanências entre as ideias mobilizadas pelos diversos estudos e dos limites para serem colocadas em prática. Esse capítulo permite também ao leitor a compreensão da trajetória de criação de diversas instituições e órgãos públicos voltados ao planejamento e projeto das obras da Várzea do Tietê ao longo do século 20.

Trecho da proposta de construção da várzea do rio Tietê
Imagem divulgação [Várzea do Tietê: projeto e urbanização marginal (FAU USP, 2021)]

Ao recuperar o percurso das ideias para a Várzea do Tietê, o livro nos mostra que, sob diferentes contextos e de maneiras distintas, a presença de espaço verdes de uso público associados a presença da água foi uma constante nas propostas urbanísticas, que buscavam articular a escala regional ao uso cotidiano do espaço pela população metropolitana. A despeito disso, esse território se constrói, efetivamente, como um espaço que privilegia sua funcionalidade regional, dos fluxos, ampliando a área de influência e o desenvolvimento econômico da metrópole paulista, mas configurando uma grande barreira urbana, desprovida de sentido para o uso local. É sobre essa tese que o livro se desenvolve, mas que não se limita a ela.

Buscando transcender a mera constatação do que poderia ter sido vale do Tietê se as ideias estivessem sido praticadas tal como foram concebidas, na segunda parte do livro a autora vai além e, contribui para a construção de uma perspectiva de futuro através de uma proposta projetual.

Se em mais de um século de projetos e obras do Tietê, as ações efetivas sobre o território privilegiaram o espaço privado concentrando a infraestrutura num único canal e transformando hectares em metros quadrados comercializáveis, Jordana inverte essa lógica com sua proposta, contribuindo para que os ganhos da urbanização sejam distribuídos de maneira mais justa e usufruídos pela população metropolitana em seu cotidiano. Assim, recupera as áreas livres urbanas capturadas pelo interesse privado no processo de drenagem e de ocupação da várzea, propondo a reconversão de grandes glebas urbanas, muitas delas não parceladas, em áreas verdes públicas. Para a autora, "não se trata de ignorar as carências de nosso incompleto processo de urbanização ou de aplicar, irresponsavelmente, capital público em obras urbanísticas” mas sim de construir possibilidades para que "a Várzea do Tietê assuma um papel mais compatível com a escala dos recursos coletivos lá investidos".

A partir da ideia de incompletude, a reflexão crítica construída por Jordana ao longo do trabalho contribui para transformar as perspectivas do próprio projeto urbano. Com os fios deixados pelo processo de modernização e urbanização incompleto, a autora alinhava sua proposta para uma nova estruturação do espaço da Várzea do Tietê, que apresenta um avanço em relação às propostas anteriores: a ressignificação as áreas livres de uso público, que juntamente com a água e vegetação, são compreendidas como infraestruturas fundamentais à vida urbana, extrapolando sua compreensão apenas como suporte às instalações viárias, ferroviárias, de geração de energia destinadas à reprodução do capital, e valorizando-as como elementos estruturadores do espaço urbano e metropolitano em nível cotidiano. Reverte assim a lógica do processo de urbanização — o qual tem desprezado historicamente o significado das águas e de suas margens como elemento aglutinador — e atribui à várzea o papel de centralidade inerente e necessária.

Não poderia deixar de ressaltar a cartografia e as fotografias trazidas pelo livro que são um espetáculo pelo qual se desenvolve e se entrelaça a narrativa, conduzindo o leitor a mudar a escala para compreender o objeto em seus diferentes níveis de percepção — da escala regional aos interstícios do espaço vivido.

Marginal Tietê
Imagem divulgação [Várzea do Tietê: projeto e urbanização marginal (FAU USP, 2021)]

Por fim, convido todos a percorrerem a Várzea do Tietê pelas páginas do livro de Jordana Zola, que constitui a síntese de que a projeção do futuro apenas é possível a partir da compreensão profunda do passado, do conhecimento dos seus erros, acertos, limites e suas incertezas. A obra é referência indispensável seja para os interessados pelo estudos historiográficos das obras públicas, pelos processos de urbanização e sua relação com o meio ambiente, e para aqueles que estão atuando na prática urbanística e projetual, assim como para o ensino de urbanismo.

notas

NA — A obra foi publicada em uma versão impressa e outra digital; e poderá ser baixado gratuitamente clicando aqui.

sobre a autora

Elisângela de Almeida Chiquito é professora de Urbanismo e Projeto Urbano da Escola de Arquitetura e orientadora de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Unniversidade Federal de Minas Gerais. Autora de A Comissão Interestadual da Bacia Paraná-Uruguai (Alameda Editorial, 2018).