O popular filósofo sul-coreano, atualmente radicado na Alemanha, Byung-Chul Han (1959_) é bastante conhecido por suas várias publicações com textos concisos, nos quais trabalha teses muito específicas, se diferenciando assim dos tradicionais filósofos que elaboram grandes volumes e pesados textos. Apesar de sua popularidade mundial e de seus textos acessíveis, algumas dessas publicações ainda não chegaram traduzidas ao Brasil, é o caso de: Shanzhai: a arte da falsificação e a desconstrução na China (1), de 2011 — livro que faz par temático com outro, também sem tradução ao português, intitulado: Ausência: acerca da cultura e da filosofia do Extremo Oriente (2), de 2008. Como se explicita pelos próprios títulos, Han trata da cultura chinesa, pouco difundida no ocidente, sobretudo em nossos estudos acadêmicos, que são dominados pelas filosofias eurocêntricas.
Para suprir parte dessa lacuna, decidimos apresentar esta resenha sobre o texto de 2011. Nesse sentido, gostaríamos de agradecer ao arquiteto e professor Flavio de Lemos Carsalade, da Universidade Federal de Minas Gerais — UFMG, que apresentou o material que agora resenhamos. Destacamos que partimos da leitura de uma versão em castelhano argentino, publicada em 2019, pela editora Caja Negra, de modo que as traduções para o português são de nossa autoria. Com isso, queremos contribuir com os lusófonos interessados nos textos do sul-coreano e com aqueles interessados na questão cultural e filosófica chinesa. Shanzhai: a arte da falsificação e a desconstrução na China se divide em cinco partes: Quan: direito; Zhenji: originalidade; Xian Zhang: carimbos poéticos; Fuzhi: cópia; Shanzhai: fake. Seguirmos a mesma divisão definida pelo livro, tentando destacar as principais ideias de cada uma das seções.
Quan: direito
Byung-Chul Han inicia sua exposição lembrando que o filósofo germânico Hegel (1770-1831) acusava os chineses de serem imorais e condescendentes com a mentira. Logicamente ele se referia ao conceito ocidental de verdade e mentira. Hegel relacionava o caráter chinês à questão religiosa, e depositava no Budismo esse suposto problema. Assim, ele apontava que o Budismo não admitia Deus e menosprezava o indivíduo. A noção de “vazio” budista se contrapõe ao “ser” ocidental, que se refere à substância, ao imutável ou àquilo que permanece apesar das mudanças em algo. Assim, o pensamento chinês transcende a noção ocidental de algo imutável (o “ser”) e admite que as coisas estão sempre em processo de transformação. É o que chamam de Tao, o caminho. Assim, o “ser” resiste às mudanças, permanece sempre o mesmo; já o Tao busca se ajustar às transformações ao longo da jornada. A ideia de “processo” como incessante transformação domina a consciência chinesa de história e de tempo, por isso ela abstrai os conceitos de rupturas, de início e de fim. Para os chineses, a ideia de que haveria um ponto de criação inicial e absoluta é impensável. A partir desse panorama, os chineses não abarcam a ideia de “originalidade”, pois essa pressupõe a existência de um começo, ume gênese.
Na concepção chinesa, o Quan é aquilo que se ajusta ao novo, o que não tem posição conclusiva, assim com uma “balança” que varia em função do peso colocado do lado oposto. Também tem ligação com noção de adaptar-se às diversas situações, mas se beneficiando delas. O chamado “direitos humanos”, por exemplo, é traduzido como: ren quan, nesse caso querendo dizer que, não havendo uma posição fixa, é preciso encontrar o equilíbrio adequado. Também, a chamada “propriedade intelectual” (zhi shi chan quan) carrega semanticamente as noções de “relatividade” e de “provisoriedade” do quan. O zhi significa “conhecimento” que, quando colocado no conceito de “propriedade intelectual”, se afasta da noção ocidental sobre o conhecimento “verdadeiro”, que precisa ser consistente, imutável e durável. Assim, a relatividade inerente ao quan desconstrói a noção de verdade essencial (ser) do conhecimento.
Zhenji: originalidade
Para Sigmund Freud (1856-1939), a memória humana não se conforma a partir de registros sequenciais claramente organizados (tal e qual se imagina o tempo linear no ocidente) como uma consequência da vivência. Para o autor, a memória se constrói a partir de um conjunto complexo de relações psíquicas, e não funciona como marcas carimbadas e imutáveis. Portanto, a atual psique das pessoas pode influenciar nas suas lembranças, modificando-as. Nesse ponto, a cultura chinesa (transformação e não linearidade) se casa com a visão de Freud sobre o funcionamento das memórias (como redescrições atemporais).
O “ser” para o ocidental é sempre igual a si mesmo, ou seja, não admite qualquer tipo de reprodução. Para Platão (428 a.C. — 348 a.C.) a “beleza” e o “bem” eram imutáveis, logo toda reprodução teria algo de “maligno”, uma vez que destruiria a pureza do original. Nesse sentido, as reproduções seriam, conforme Platão, vazias de “ser”.
A obra de arte chinesa nunca permanece igual, é sempre modificada, pois, à diferença do platonismo, a filosofia oriental não se apoia no unívoco e no uniforme, mas se assenta no processo e no multiforme. As obras de arte mais veneradas são as mais mutantes, sobre as quais se acrescentam mais e mais desenhos e inscrições, assim tais obras se convertem em um tipo de palimpsesto. Na China, a obra de arte se dá no processo e não no começo, do qual não guarda uma permanência necessária. A cópia de uma obra pode chegar a ser mais representativa que aquela inicial, pois pode responder melhor aos novos tempos e aos gostos dessa nova época. Na antiguidade chinesa o aprendizado se dava pela cópia, coisa que significava respeito ao mestre. Ainda hoje, os artistas acumulam seu prestígio a partir das cópias que lhe fazem, que lá são compreendidas como grandes reverências.
É curioso notar que a noção de originalidade ocidental, submetida ao conceito de verdade, que se coloca contra a mudança (posto que a verdade seria uma só), é uma construção recente. Até o Renascimento, a obra se impunha sobre o artista, de forma que não existiam os “falsificadores”. Se obtivéssemos uma cópia superior ao seu original, estaríamos simplesmente frente a um artista melhor que o seu mestre. Michelangelo (1475-1564), por exemplo, era um excelente copiador, sem ser considerado um fraudulento.
Xian Zhang: carimbos poéticos
A arte chinesa é entendida como uma atividade comunicativa e interativa, de maneira que sua aparência é constantemente transformada por estas interações. Assim, quanto mais uma obra é conhecida, mais está submetida às interações às transformações. As pinturas chinesas contam com espaços vazios que servem para intervenções textuais poéticas que são carimbados ao longo do tempo. Entretanto esses textos não são meros paratextos ou subtextos, eles são considerados parte da obra. Os pintores reservam ambientes nas telas para tais carimbos, de modo que não há uma soberania sobre a obra, o que se vê é um compartilhamento do resultado artístico. Esses textos não têm a mesma finalidade das assinaturas dos pintores eurocêntricos, pois para estes suas obras estão finalizadas a partir de suas assinaturas, dando um sentido de pertencimento subjetivo — a autoria — à sua arte.
A prática da assinatura autoral estabelece uma preponderância do artista sobre a obra. Para ilustrar o caso, recorremos ao famoso quadro O Casal Arnolfin, pintado em 1434 por Jan van Eyck (1390-1441). Nele pode ser lida a inscrição “Jan na Eyck esteve aqui 1434” sobre um espelho que reflete a imagem do próprio pintor bem no centro do quadro — de modo a se estabelecer uma presença dupla na obra: pela assinatura e pelo autorretrato. As assinaturas sobre as obras, como essa de Jan van Eyck, estabelecem que, qualquer alteração na obra após a assinatura significa uma alteração do original, portanto uma adulteração da “verdade” — noção oposta à prática chinesa de intervenção coletiva.
Fuzhi: cópia
A exposição dos guerreiros chineses de terracota que estava ocorrendo em Hamburgo em 2007 foi fechada quando se soube que tais guerreiros eram réplicas dos originais. O chineses encararam o fechamento como uma ofensa, pois os guerreiros de terracota, de mais de dois mil anos, que foram desenterrados desde a década de 1970, foram feitos a partir de moldes. Ocorre que, para os chineses, as peças expostas em Hamburgo eram autênticas, mas não originais, de modo que simplesmente faziam parte de uma retomada de produção das estátuas, ou seja, eram réplicas da mesma qualidade que aquelas descobertas nos anos 1970. Talvez não seja sem razão o fato de que a prensa tenha sido inventada na China — antes da máquina de Gutenberg (1400-1468).
Os chineses possuem duas palavras para expressar elementos copiados, são elas: fuzhipin (para itens em que não se nota a diferença entre original e cópia) e fangzhipin (para itens em que há diferenças evidentes entre original e cópia). Para os chineses, as cópias e os originais possuem valores similares. Um exemplo japonês mostra bem a diferença do entendimento sobre uma cópia e um original entre ocidente e oriente: o templo de ISE possui cerca de 1300 anos e é reconstruído a cada 20 anos. Por causa disso a UNESCO decidiu retirar o título de patrimônio da humanidade, considerando que se tratava de uma edificação de “apenas” vinte anos de idade. Aqui se percebe a diferença a partir da relação entre o velho e o novo: para o ocidente, o original é o mais antigo; para o oriente, o original é o mais novo, pois pode representar melhor a perfeição, dado que está em constante melhoria.
Shanzhai: fake
A palavra chinesa Shanzhai é algo como o nosso “fake”. Ela foi inicialmente utilizada para designar smartphones copiados, é o que chamamos de falsificações. Entretanto, aqui não se trata de cópias malfeitas, pois algumas vezes os produtos replicados são superiores aos originais. Eles também não são cópias dissimuladas, já que adotam nomes que fazem alusão à marca original — Samsung, vira Samsing, por exemplo. Nesse sentido o movimento Shanzhai busca se adequar melhor às novas situações e circunstâncias locais e temporais. Nele, ocorre um processo de “desconstrução”, de forma que a marca original se converte em algo novo e reconstruído. O Shanzhai, frente a uma nova realidade, reivindica uma transformação — é a oposição entre o “ser” ocidental e o Tao chinês. Para um ocidental, por outro lado, isso não passaria de uma simples fraude, um avanço sobre as leis de propriedade intelectual.
O movimento Shanzhai guarda as propriedades do Quan e pode ser verificado em outros aspectos que não mercadológicos e mais ligados aos outros aspectos da cultura, como na literatura ou na arquitetura. Também aparece em aspectos políticos, como no Maoismo, que pode ser considerado um Marxismo adaptado à particularidade chinesa. Como no Maoismo não havia uma luta de classes ou industriais, o comunismo na China conseguiu absorver aspectos do capitalismo, sem que isso significasse uma contradição para a população, apresentando-se como um corpo híbrido. Com o tempo, o comunismo chinês poderá se converter em uma “democracia Shanzhai” caso esse próprio movimento consiga produzir energias subversivas e antiautoritárias.
notas
1
HAN, Byung-Chul. Shanzhai: el arte de la falsificación y la deconstrucción en China. Buenos Aires, Caja Negra, 2019. Tradução do autor.
2
HAN, Byung-Chul. Ausencia. Acerca de la cultura y la filosofía del Lejano Oriente. Buenos Aires, Caja Negra, 2008. Tradução do autor.
sobre o autor
Edgardo Moreira Neto é doutor e mestre em Teoria, Produção e Experiência do Espaço; especialista em Gestão e Tecnologia da Construção Civil e integrante da equipe de arquitetos do Departamento de Planejamento e Projetos da UFMG. Professor da Escola de Design da UEMG, possui experiencia na concepção, planejamento, coordenação e desenvolvimento de projetos de arquitetura, ambientes e urbanismo.