Hoje, domingo, início da primavera europeia. Ouço os sinos da igreja tocando insistentemente, e penso: há vida correndo lá fora, ameaçada, sem trégua, por um vírus maldito e uma guerra infame (infinita?) no país quase ao lado (1). Enquanto isso, abro o correio eletrônico e encontro o Tempo de cidade de Vicente Loureiro. Também há vida pulsando nas urbes do outro lado do Atlântico.
Como é estimulante ler o pensamento de Vicente sobre a cidade, ou melhor, sobre as cidades, entendendo que cada cidade é única! A “prosa urbana” nesta coletânea, aparentemente aleatória, um pot pourri de assuntos urbanos que nos chegavam, semanalmente, há mais de nove anos, em periódicos (Iguassu Online, Correio da Manhã e Extra) estão agora reunidos em quatro capítulos neste livro: “Cuidados e mimos”, “Epifanias e celebrações”, “Fatos e inovações” e “Testemunhos de inclusão”. Textos inspirados, produzidos com leveza e criatividade, não obstante seu profundo conhecimento do tema, desenvolvidos com a curiosidade e a versatilidade de um eterno aprendiz, sem pedantismos. Naturalmente densos, sugestivos e instigantes.
Este poliédrico livro enseja várias leituras, unindo memória de tempos passados, cultura pelas arquiteturas icônicas e o “urbanismo do essencial”, manifestando preocupação com os rios, as lagoas, as águas, a canalização dos esgotos, os resíduos sólidos, ou seja, as infraestruturas ausentes na vida de milhares. Interessa-se ainda por tudo que o rodeia: desde a belíssima exposição do paisagista Burle Marx, a reforma do Maracanã, a história do autódromo não construído em Nova Iguaçu, o aterro-parque em Camboriú, até casos curiosos como o da árvore que nasceu num poste. Rejeitando as etiquetas, destila certo sarcasmo com os modismos (urbanismo biomórfico, crono-urbanismo, cidade dos 15 minutos, cidade inteligente). Entendendo que, para a boa governança, é preciso não se eximir de tecer críticas ao modelo que vem conduzindo o devir delas, sublinhando sempre sua preocupação com o imenso contingente de excluídos.
Textos necessários, politicamente engajados, denunciando adversidades (“A diverCidade”), incidindo sobre a necessidade de espaços públicos saudáveis e acolhedores já que neles encontram acolhimento os “sem destino, sem trabalho, sem abrigos” (“Endereços da iniquidade”). Centra sua aposta no “Rio que quer mais”! E, portanto, deve abandonar de vez as queixas que se arrastam há mais de sessenta anos sobre a “perda da centralidade para Brasília” ou a “fusão autoritária” reivindicando que “já se passou tempo suficiente para se ter buscado e consagrado outros rumos e missões para a cidade ou metrópole”. Chega de saudades.
Entremeando o vasto conhecimento do autor sobre a cidade onde vive, Nova Iguaçu, bem como sobre a realidade e dinâmica regional e metropolitana, acaba por deslocar o eixo do pensamento predominante da capital carioca para a Baixada Fluminense, muito embora o autor reconheça esse território como “divisas apagadas”. Inclusive amplia o olhar urbano até experiências profissionais em outras cidades do Rio, Volta Redonda e Barra Mansa, e mundo afora.
Somos de uma mesma geração de profissionais, eu diria, privilegiados. Privilegiados nesse desassossego de servir à cidade. Foi no serviço público que desenvolvemos nossa aptidão para o urbanismo. Embora cursando trajetórias paralelas, em cidades diversas, o urbanismo é compartilhado como nosso DNA comum: na gestão, na prática e, agora, na escrita.
Nos encontramos profissionalmente já na maturidade da carreira que nos carrega. Foi assim que desenvolvemos a nossa profissão de arquitetos, urbanistas e como gestores públicos. Podemos afirmar que vivenciamos todo o processo de desenvolvimento da urbanística dos últimos 40 anos. Desde a Constituição de 1988, que trouxe em seu bojo a decisão de planos diretores obrigatórios para cidades de mais de 20 mil habitantes, depois o Estatuto das Cidades, de 2001 e, o mais recente, Estatuto das Metrópoles de 2018. Tive a sorte de ter compartilhado um pedacinho da biografia de Vicente Loureiro: acompanhar o desenvolvimento do Plano Diretor Estratégico da Região Metropolitana no âmbito da Câmara Metropolitana de Integração Governamental, cujo resultado é devedor do excelente trabalho de liderança e coordenação exercido por ele, e do qual sou testemunha.
Uma observação final, talvez a mais sutil e sensível delas, é a que nos une em torno das memórias pessoais. Somos fruto de infâncias vividas em cidades pequenas – Vicente em Paracambi, no Rio de Janeiro, e eu em Mata de São João, na Bahia. A lógica do cotidiano nessas cidades de escala reduzida certamente afinou o olhar e sentou as bases para o salto de escala às metrópoles que nos tocaram trabalhar. E que hoje, curiosamente, reivindicam direitos tão pedestres como andar a pé, de bicicleta, com proximidade para chegar em poucos minutos na escola, no mercado, na clínica médica, no trabalho e nas praças e espaços públicos qualificados. Qualidade de vida urbana que já conhecíamos de outrora.
Insistindo no óbvio para nós, urbanistas, sempre será tempo de pensar a cidade. Vale insistir, caro leitor, para que Vicente siga observando a caligrafia das cidades, no tempo dos escritos feitos à mão.
notas
NE – O texto é originalmente o prefácio do livro comentado.
1
Verena Andreatta está atualmente radicada em Barcelona, Espanha.
sobre a autora
Verena Andreatta, arquiteta-urbanista, foi Secretária de Urbanismo e Mobilidade Urbana de Niterói (2013-2016) e Secretária de Urbanismo do Rio de Janeiro (2017-2019).