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reviews online ISSN 2175-6694


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português
Esta resenha estabelece tensões entre as obras literárias “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, e “Laços de família”, de Clarice Lispector articulando-as para especular a respeito do corpo e suas perturbações no espaço, e vice-versa.

english
This review establishes tensions between the literary works “Quarto de despejo”, by Carolina Maria de Jesus, and “Laços de Família”, by Clarice Lispector, articulating them to speculate about the body and its disturbances in space, and vice versa.

español
Esta revisión establece tensiones entre las obras literarias “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, y “Laços de Família”, de Clarice Lispector, articulándolas para especular sobre el cuerpo y sus perturbaciones en el espacio, y viceversa.

how to quote

COSTA, Luiza Fraccaroli Baptista da. Dos pés à cabeça. Corpos, narrações e experiências urbanas de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector. Resenhas Online, São Paulo, ano 21, n. 248.02, Vitruvius, ago. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/21.248/8573>.


“Todo relato é um relato de viagem, uma prática de espaço”
Michel de Certeau, 1994 (1)

Esta resenha dedica-se a uma perspectiva de análise dos movimentos dos corpos no tecido urbano a partir de peças literárias. A premissa que sustenta essa resenha está baseada na ideia de que a produção literária se dá inteiramente imersa nos confrontos que se desdobram na cidade, como produto e produtora desse espaço, agregando subjetividades e elementos cotidianos da vida social. Ana Castro coloca: “a forma literária plasma os acontecimentos da vida social. A própria matéria literária revela, na sua forma, a transformação desse ethos que suportou a metropolização” (2). A literatura, então, entra como suporte dinâmico para esta análise.

As obras em questão foram ambas publicadas no ano de 1960, muito embora guardem dessemelhanças que buscarei aqui complexificar. Trata-se de Quarto de despejo, escrito por Carolina Maria de Jesus e Laços de família, com autoria de Clarice Lispector.

Nascida em Sacramento, Minas Gerais, em 1914, Carolina Maria de Jesus era neta de um homem negro escravizado, conhecido como Sócrates Africano. Mudou-se de cidade vinte e três vezes acompanhando sua mãe, que trabalhava em fazendas vizinhas (3), e estudou apenas até o segundo ano do primário. Em 1937, chegou à cidade de São Paulo, que se colocava como promessa de modernização e industrialização do país. Morou em um cortiço e debaixo de um viaduto até chegar na antiga favela do Canindé, às margens do Rio Tietê, onde escreveu seu livro que se tornou um grande sucesso, Quarto de despejo, o diário de suas vivências como favelada.

Quanto à Clarice Lispector, foi uma famosa escritora nascida na Ucrânia, em 1920, muito embora sua vinda para o Brasil tenha acontecido aos seus dois anos de idade. Sua família desembarcou no estado de Alagoas e se mudaram também para Pernambuco antes de chegar à cidade do Rio de Janeiro, onde Clarice Lispector estudou, trabalhou, casou-se e viveu grande parte da vida. Essa escritora, mulher, branca e migrante viveu a década de 1950 acompanhando o marido na carreira de diplomata, mudando-se diversas vezes para países do exterior.

Admitindo, então, essas duas peças literárias como ferramenta de análise, leva-se em conta o recorte temporal em que foram publicadas e a própria biografia das autoras, como fatores que interferem no resultado escrito. Associado a isso, é importante identificar a diferença de gêneros literários empregados, sendo um livro de contos, no caso de Clarice Lispector, e um diário, de Carolina Maria de Jesus, mas que se encontram enquanto matéria literária, entendendo que a literatura atende a uma necessidade universal de ficção (4). E, aqui, o termo ficção não está empregado como sinônimo de fantasia ou mentira, indiciando uma completa desconexão com a realidade. Ao contrário, a ficção informa sobre alguma realidade – fenômeno natural, paisagem, sentimento, fato, desejo de explicação, costumes, problemas humanos etc. (5).

Além disso, essa resenha também busca localizar socialmente as escritoras enquanto mulheres e migrantes, embora de raças e classes sociais absolutamente díspares. Esse recorte interseccional permite também entender as interferências deste dado de realidade na obra literária, que é absorvido e está inscrito na produção de cada uma das autoras. Assim, o principal balizador intencionado nesta resenha não pode ser outro senão o corpo, que aglutina os marcadores sociais de gênero, classe e raça em seu movimento, em suas marcas e em seus gestos no espaço. E, novamente, a literatura está sendo usada a favor desta intenção, admitindo todas as suas subjetividades e imprecisões como elementos agregadores para a análise.

Trata-se de nada mais que uma divagação sobre a memória, que encontra morada facilmente na escrita, mas pode ser pensada “em outros ambientes, nos quais se inscreve, se grafa e se postula: a voz e o corpo” (6). Paola Berenstein Jacques (7) coloca o exercício da narração de forma associada a uma prática espacial, e à ideia de experiência. Assim, a transmissão – ou, a narração – da memória e, consequentemente, da história, está associada a uma prática que articula corpo e espaço em sua produção. Nesse caso, trata-se especificamente sobre a memória, e, por consequência, história das mulheres, escrita por mulheres.

Essa escolha por entender a história dessas mulheres através de suas experiências corporais e espaciais permite privilegiar as práticas e performances do cotidiano, com seus modos próprios e convenções específicas. O objetivo aqui é identificar no corpo e no deslocamento das autoras e das suas personagens as negociações de pertencimento e repulsão que ocorrem na cidade. Esta resenha propõe uma perspectiva metonímica do corpo representado por cada uma das autoras. Aqui interessa identificar simbolicamente o que está inscrito nesses corpos, a começar por seus pés.

Páginas de Laços de família , de Clarice Lispector
Imagem divulgação

Os pés das personagens de Clarice Lispector em Laços de família certamente corresponderiam aos pés da “mulher moderna”. A cidade do Rio de Janeiro, na década de 1950, estava prestes a deixar de ser a capital do país. Já era, sem dúvida, uma cidade de grande influência cultural a nível nacional e até mesmo internacional, e uma cidade-estigma da modernização consolidada, que teve sua urbanização atravessada por reformas sanitaristas e profiláticas que tiveram interferências a nível público e privado (8). Acompanhando este contexto e tudo o que a modernização provoca no tecido urbano, a mulher moderna surge quase como um arquétipo social de aportes culturais e imagéticos relacionados ao lar e à domesticidade (9). Vale reforçar que este arquétipo também encontra correspondência numa classe social específica, de mulheres mais abastadas e, claro, brancas.

Seus pés, então, deveriam ser vestidos por um sapato de salto, com linhas e decotes bem cortados, absolutamente inadequado para andar pelas ruas, mas perfeitamente possível de ser usado no espaço doméstico, já que as tarefas de limpeza e cozinha não lhe cabiam. Clarice Lispector, em certo momento de Laços de família refere-se à personagem do conto “O búfalo” e os sapatos que ela estava vestindo:

“Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzira a fêmea de presa, os passos tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados, ela que não passava de uma delicada” (p. 132).

Esse desequilíbrio, essa fragilidade, essa delicadeza, estão balizando o caminhar dessa mulher que veste salto alto. O sapato, aqui, pacifica seu caminhar, impede movimentos específicos. Seu corpo e seu deslocamento estão completamente burocratizados pelo sapato. Há uma prática corporal feminina que teme a dimensão pública, justamente porque são corpos socialmente desautorizados a ocuparem esse espaço. A falta de mulheres nos espaços públicos pode ser associada a uma definição social burguesa de que a feminilidade está visceralmente associada a seu confinamento no espaço doméstico, como um traço inato, parte de sua natureza (10).

Em Laços de família, Clarice Lispector costura passagens cotidianas, como a alegoria do voo de uma galinha (p. 30-33) ou a agonizante cena de um cego mascando chiclete (p. 21), para entender a condição feminina nesse núcleo familiar – com seus elos, limitações e enlaces variados. O título do livro não esconde a ambiguidade do termo – os “laços” podem ser lidos como união sólida ou como duras amarras. Nos vários contos presentes em Laços de família, os vínculos familiares são identificados como limitações dos papeis que cada integrante desempenha ou mesmo como adornos para as convenções nocivas presentes no núcleo da família (11).

Páginas de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus
Imagem divulgação

Carolina Maria de Jesus, no entanto, caminha descalça, catando papel em São Paulo. Esta cidade, que guardava seu aspecto setecentista até meados da década de 1870, consolidou-se tardiamente como centro político e financeiro no início do século 20. O Plano de Avenidas, de Prestes Maia, parece servir de emblema para este novo momento da cidade que se modernizava rapidamente. De maneira simultânea, logo considerou-se necessário o desaparecimento das favelas, que ameaçavam a imagem de progresso da cidade. As favelas, vistas pelo próprio poder público (e autorizadas por ele) como ocupações transitórias para acomodação da classe trabalhadora migrante, passaram a ser alvos de remoções massivas e desassistidas, sob a sombra do progresso e das obras de melhoramentos urbanos.

Por repetidas vezes é possível se deparar no livro Quarto de despejo com referências a sapatos, como o suprassumo da dignidade, reflexos claros do período da escravatura no Brasil, em que os sapatos só eram concedidos a escravos alforriados.

“15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar” (p. 11).

Na edição 450 da revista Manchete, de 1960, se lê o seguinte sobre a autora: “Carolina Maria de Jesus, a autora de Quarto de despejo (quase 100.000 exemplares vendidos), quis ver uma favela carioca. Deixando o Hotel Serrador, tirou logo os sapatos: Descalça, a gente anda mais depressa”.

Os sapatos são o presente que Carolina quer deixar aos seus filhos. Ao mesmo tempo, a autora sabe que seus pés descalços permitem movimentações mais extensas pela cidade. Como catadora, isso permitia caminhadas mais longas, muito embora em diversos momentos o fato de estar descalça era motivo de comentários opressivos dos outros passantes. Seu corpo é rejeitado enquanto caminha.

Mulheres que ocupam o espaço público carregam corpos desviantes. São corpos que confrontam as normas, desafiam os papéis formais especulados para a feminilidade. Segundo Rebecca Solnit, as palavras e expressões usadas para se referir a essas mulheres sexualizam o seu caminhar e lhe atribuem um caráter pejorativo: ambulatriz, mulher da rua, mulher do mundo. É esse o corpo que Carolina Maria de Jesus encarna. “Pertencer à casta respeitável tem como preço relegar-se à vida privada; pertencer à casta que goza de liberdade espacial […] tem como preço o respeito social” (12).

Seguindo para a outra extremidade desses corpos, a cabeça, é possível usar o mesmo procedimento de análise. Revistas e propagandas, faziam grandes reportagens em “colunas femininas” para indicar sugestões de maquiagem para os mais diversos formatos de rosto de mulheres, sempre se referindo à beleza e juventude. Os cabelos também estão sempre bem modelados, e geralmente são curtos. Clarice Lispector, no conto “A imitação da rosa”, traz o seguinte trecho:

“Seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas. Os olhos marrons, os cabelos marrons, a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar moderno de mulher” (p. 35).

A referência aos cabelos presos e curtos atribuídos a essa “graça doméstica” mostram, mais uma vez, que a casa era tida como um lugar feminino, por excelência. Esses rostos pintados, e cabelos presos são características fundamentais dessa mulher moderna dos anos 1950 e denotam essa domesticação dos corpos das mulheres dentro do lar.

Sobre Carolina Maria de Jesus, no entanto, os comentários são outros. Muitas reportagens fazem referência ao lenço branco que não lhe faltava, em contraste com sua pele negra. Sobre seu cabelo, ela diz:

“Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondiam-me:

– É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo negro mais educado do que cabelo branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça que já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta” (p. 64).

Seus cabelos e sua negritude são apontados continuamente pelos outros, sempre de forma pejorativa. Quando Carolina já tinha seu livro publicado e já não morava na favela é que ela desprende os cabelos, depois de ter sido socialmente autorizada, de alguma forma. Grada Kilomba entende que o corpo negro só se faz existir através de uma imagem alienada de si (13). Como se Carolina, quando se tornou conhecida, sofresse um processo de deturpação de sua individualidade, em prol de uma representação coletiva do sujeito negro. Carolina Maria de Jesus experiencia ser a “outra” quando está em face de um referencial branco.

Percebe-se, assim, a forma como as condicionantes sociais que balizam a experiência dessas mulheres se inscrevem em suas escritas e em seus corpos. A literatura se manifesta como matéria que absorve as circunstâncias espaciais e temporais das autoras e as afetações que estão expressas em seus corpos de uma maneira subjetiva, mas que informa com muita clareza sobre a realidade.

Para finalizar – de forma inconclusa, porém –, entendo que houve aqui o esforço de articular as dimensões do corpo, da narração e da experiência urbana enquanto instâncias que se desafiam e se sintetizam na realidade das principais cidades brasileiras, no auge de sua modernização. As obras aqui analisadas facilitam essa percepção, já que permitem aberturas e inscrições das permanências e rupturas que se manifestam até os dias atuais. São obras que revelam fissuras da sociedade brasileira e que reafirmam o uso da literatura enquanto fonte de pesquisa relevante. Sem abandonar uma argumentação lógica e clara, a intenção aqui é produzir um método de pesquisa sensível e abrangente, e, por que não, poético: pois que o mundo não se limita a objetividades.

notas

NA – A resenha aqui exposta é produto da Iniciação Científica com bolsa FAPESP (processo nº 2020/13008-3) desenvolvida na Associação Escola da Cidade intitulada “Mulheres em movimento: itinerâncias e corporalidades de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector”, com orientação da professora Dra. Sabrina Studart Fontenele Costa.

1
DE CERTEAU, Michel (1980). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, Vozes, 1994.

2
CASTRO, Ana Claudia Veiga de. Figurações da cidade: um olhar para a literatura como fonte da história urbana. São Paulo, Anais do Museu Paulista, 2016, s/p.

3
PEREIRA, Gabriela Leandro. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas obras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. Orientadora Ana Fernandes. Tese de doutorado. Salvador, FA UFBA, 2015, p. 7.

4
CÂNDIDO, Antônio. Apud MACENA, Fabiana Souza Valadão de Castro. Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector: representações do feminino na literatura brasileira. Goiânia, Universidade Federal de Goiás, 2017, p. 27.

5
Idem, ibidem, p. 83.

6
MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, n. 26, jun. 2003, p. 63 <https://bit.ly/2WlAjQv>.

7
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador, Edufba, 2012.

8
MARINS, Paulo Cézar Garcez. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras. In: SEVCENCO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil. Volume 3. São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 144.

9
COSTA, Sabrina Studart Fontenele. A mulher moderna: práticas urbanas e vida doméstica em São Paulo (1930-1960). Franca, História e Cultura, 2019, p. 222-223.

10
CARVALHO, Vânia. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo 1870-1920. São Paulo, Edusp, 2008, p. 291-293.

11
HANSEN, Marise. Pão, fama e outras fomes: uma leitura de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector. Revista IEB, n. 77, dez. 2020, p. 26-27 <https://bit.ly/3AOdHto>.

12
SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. Tradução Maria do Carmo Zanini. São Paulo, Martins Fontes, 2016, p. 390-391.

13
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Cobogó, 2019.

sobre a autora

Luiza Fraccaroli B. da Costa é graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Escola da Cidade e pesquisa articulações interseccionais territorializadas na cidade. Possui interesse em manifestações artísticas corporais, estudos de gênero e metodologias de ensino desalienado da arquitetura.

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