Há mais de um século, nasceu a nova capital mineira: Belo Horizonte, um projeto moderno inspirado na arquitetura eclética e no planejamento urbano da Paris haussmanniana. Em retrospecto, Carlos M. Teixeira elabora com seu livro Em obras uma avaliação crítica do que aconteceu com essa utopia. Ao mesmo tempo, ele olha para o futuro, imaginando o que pode acontecer com esta metrópole no início do século 21. O trabalho deriva parte de sua originalidade do fato de que a análise, em seu duplo movimento em direção ao passado e ao futuro, se baseia em um diálogo entre textos breves de várias origens e gêneros e numerosas imagens fotográficas sugestivas que participam plenamente da discussão.
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Brasil, final do século 19: a República acaba de suceder ao Império e um vento de modernidade positivista está soprando sobre um país em busca de uma nova identidade. A renovação política e econômica faz reformas urbanas urgentes. Nesse contexto, o projeto de uma nova capital para o estado de Minas Gerais será confiado a Aarão Reis, o engenheiro designado para chefiar a Comissão Construtora da nova capital. O local escolhido para a construção está ocupado por um povoado modesto (Curado del Rey). É uma vila típica da tradição agrária patriarcal e da arquitetura colonial portuguesa, localizada na encruzilhada por onde passam as tropas de caravanas (tropeiros), levando a riqueza mineral do interior para os portos abertos a países estrangeiros.
A história desta nova capital, Belo Horizonte, e sua degradação sob o efeito do crescimento populacional ao longo do século 20 são objeto de reflexão por Carlos M. Teixeira. Coube ao autor imaginar um lado positivo e portador do futuro para as imagens deprimentes de uma cidade que sonhava ser tão bonita quanto um ideal, e que o tempo tornou tão pouco atraente quanto disfuncional.
Pré-história
Essa lenta catástrofe urbana tem um tipo de pré-história que tem sua origem no ato simbólico de estabelecer a capital moderna no local de uma antiga cidade comercial. Essa decisão, que admite construir a nova cidade a partir da destruição da antiga, de acordo com o princípio da tábula rasa, é indicativa de uma dinâmica que na época se aplicou a muitos campos e à qual se deu um nome: destruição criativa. É o momento em que o economista austríaco Joseph A. Schumpeter (1883-1950) denomina de destruição criativa a própria lógica da modernização capitalista, sua necessidade de destruir para impor a novidade em que se baseia seu desenvolvimento (1).
A primeira a perceber as consequências dessa dura lei do progresso foi a própria Comissão Construtora que, em um gesto altamente simbólico, convidou o pintor Emilio Rouède (1848-1908) para vir pintar, antes que desaparecesse, o que existia no local onde seria erguida Belo Horizonte, ou seja, a paisagem do Curral del Rey. A escolha deste artista, sem dúvida, não se deve ao acaso. Emilio Rouède foi um daqueles migrantes europeus que sabiam fazer de tudo e que estavam disponíveis. Ele havia estabelecido uma reputação de pintar com uma velocidade excepcional, e alegou-se que algumas de suas pinturas foram concluídas em menos de quatro minutos. Rouède era, portanto, ideal para o trabalho, pois era necessário agir rapidamente para capturar esse cenário quando as grandes obras de desenvolvimento já haviam começado.
As pinturas de Rouède revelam inequivocamente o rasgo simbólico que a modernização urbana causou. Uma tela, de 1894, representa a Rua do Sabará, uma estrada de terra cercada por modestos casebres, e outra, de 1894, o Largo da Matriz de Boa Viagem (2), para a qual o pintor escolheu um ponto de vista inferior para evidenciar a imponente massa do edifício sagrado. Domina a vila com suas duas torres sineiras no estilo barroco português; uma equipe de gado passa despreocupadamente a seus pés, puxando um carro de bois coberto. A imagem pintada da Matriz Nossa Senhora de Boa Viagem, que ilustra o charme pitoresco de um passado rural arcaico e patriarcal (3), entra em conflito aberto com a modernização imposta pelos planos de Aarão Reis e que se completará com a capela da Pampulha de Oscar Niemeyer meio século depois. O confronto das imagens manifesta o processo histórico que declina o destino da cidade velha a favor de Belo Horizonte, sob a lei da destruição criativa. Entre as paisagens pitorescas e nostálgicas de Rouède e os modernos cartões-postais que Carlos M. Teixeira estudará, um cataclismo memorial assolou os habitantes do Curral del Rey, o qual este poema de Afonso Arinos testemunha com ironia melancólica:
"No ano de 1925, o senhor diretor de obras
deitou abaixo da matriz de Boa Viagem
(que lindo nome para um cemitério)
e construiu, no lugar dela,
uma catedral gótica, último modelo.
Tinha achado que a fé bobagem
mas o povo de Minas disse que era progresso” (4).
Essas imagens antigas constituem o que se poderia chamar de cena primordial do trágico destino de Belo Horizonte. Novas imagens tentarão fazer as pessoas esquecerem esse mundo antigo, imagens da tábula rasa original, cartões-postais em torno dos quais a imagem pública e modernista da capital será construída.
Cartão-postal
Desde o início de sua história, o cartão-postal foi um instrumento de desenvolvimento turístico, e mais ainda a partir do momento em que foi tecnicamente possível integrar-lhe fotografias. Representa, como Carlos M. Teixeira disse, o “casamento entre cidades e a fotografia” (5), um instrumento perfeito para divulgar locais e cidades notáveis em busca de viajantes.
Infelizmente para eles, os fotógrafos que acompanharam a abertura oficial da nova capital em 1897 tinham poucos monumentos notáveis para colocar na frente de suas lentes. O andamento do trabalho deixou em seus filmes grandes espaços ainda desocupados, vazios pouco fotogênicos que deram a Carlos M. Teixeira total liberdade para explorar, por trás de alguns monumentos majestosos, o peso da ausência e a fragilidade que esses espaços já testemunhavam.
É neste vazio original, outro aspecto da tábula rasa primitiva, que a aposta apoiada por este livro provocador está enraizada: não para ancorar o olhar nos poucos monumentos que são realmente apenas uma fachada, mas no inverso desse cenário, em imagens ruins e sem classificação, capazes de registrar o que escapava ao olhar estabelecido e que os fotógrafos nomeados pelos promotores não dominavam. Buscar, por trás da positividade ostensiva do nada construído, a força de transformação, como poder da novidade, como sintoma da eficácia desse princípio sempre em ação que é a destruição criativa. E, em um provocador gesto dialético, para mostrar que esse vazio anuncia as potencialidades do amanhã, abre-se uma liberdade que fará a cidade sobreviver às deficiências e contradições que pervertem tanto a ideologia modernista que presidiu sua construção quanto a prática dos arquitetos. Carlos M. Teixeira reivindica esta aposta, que ele compara com o gesto do investidor inteligente:
Um investidor experiente, pelo contrário, busca papéis em baixa que possam valer mais horas depois do momento da compra. Analogamente, compro uma imagem sem valor (fotografo o prosaísmo de BH hoje) e faço dela motivo de um livro comemorativo. Aposto tudo nessa imagem antissentimental, nesse papel que não tinha importância alguma no momento da compra para, imediatamente depois, recolocá-la em circulação (mesmo sabendo que os riscos dessa estratégia tanto podem me trazer lucro quanto prejuízo, o que torna a tarefa de falar sobre Belo Horizonte um pouco mais estimulante) (6).
A aposta na origem deste livro, portanto, promete ser especulativa e poética em si mesma, na medida em que envolve uma reversão de valores completamente nietzschiana. À imagem ideal do planejamento urbano de cartões-postais que, por força da racionalidade, teria resolvido as contradições da vida urbana, Carlos M. Teixeira opõe o caos da cidade decadente que se espalha diante de seus olhos. No entanto, esse mergulho na desordem urbana, e as imagens que a ilustram, não são simplesmente uma condenação das ilusões da racionalidade urbanística. São ao mesmo tempo o sinal de uma vitalidade, sem dúvida destrutiva, mas na qual é preciso saber perceber um poder poético que antecipa o perfil e as possibilidades do futuro. A contemplação do desastre não é um prazer do artista, comenta Carlos M. Teixeira (7), mas a única maneira de enfrentar a “terrível poesia” desta cidade e o desafio que ela representa para as receitas urbanas do passado. Não podemos deixar de pensar aqui no famoso texto de Aragão, “Passage de l’Opéra”, onde o autor encontra as raízes de uma nova poética no centro do desastre causado pela modernização haussmanniana de Paris. Ele aproveita a destruição das passagens parisienses, que tão fortemente inspiraram Walter Benjamin, esses “aquários humanos” como ele as chama, para sentir o alvorecer de uma poesia que ele chama de “mitologia moderna”:
O grande instinto americano, importado para a capital por um prefeito do Segundo Império, que tende a cortar o plano de Paris, logo tornará impossível manter esses aquários humanos que morreram em sua vida primitiva e que, no entanto, merecem ser considerados os ocultadores de vários mitos modernos, porque é só hoje que a picareta os ameaça que eles se tornaram efetivamente os santuários de um culto ao efêmero, que se tornaram a fantasmagórica paisagem dos prazeres e das profissões amaldiçoadas, incompreensíveis ontem e que amanhã nunca se saberá (8).
É a iminência da destruição que desencadeia a abertura poética, e Carlos M. Teixeira, diante do espetáculo angustiante oferecido por Belo Horizonte, está atento à dinâmica positiva que surge do desastre. As imagens de Marcelo Sant’Anna (página 149) que ele escolhe revelam uma energia estética e vital que prova que é agora, no coração da decrepitude, que é possível sonhar com outro mundo urbano. Sem imaginar retroceder ou constituir um programa para amanhã, essa poesia se baseia mais no efêmero do que nas fantasias do planejamento a longo prazo. Sonhando com uma arquitetura que não teria sido prevista, uma forma de cidade que emergiria espontaneamente da própria vida urbana. Esta é a mitologia moderna para a qual o exercício do planejamento urbano que é este livro incomum nos convida.
Para conduzir esta reflexão em muitos aspectos paradoxais, Carlos M. Teixeira construiu sua obra sobre uma grande oposição: sob o título “Urbana”, o segundo capítulo ocorre sob a lei do idealismo urbanístico, em contradição com o terceiro, “Suburbana”, que ilustra a desconstrução do sonho de planejar e suas crenças prometeicas de cartão-postal. A singularidade dessa demonstração reside no fato de que o argumento não se baseia, como de costume, em um texto argumentativo, mas no poder das imagens. A ambivalência da imagem, seu poder metafórico, a licença poética que a define, todas essas características conduzem o julgamento – e com muita eloquência, graças a um layout imaginativo e eficaz. O autor sabe tirar proveito de imagens que rompem com os códigos estéticos dos periódicos de arquitetura, e pode-se pensar que foi sensível ao ponto de inflexão da fotografia com a exposição New Topographics: Photographs of a Man-Altered Landscape (9) (ou, em tradução livre, ”Novos topográficos: fotografias de uma paisagem alterada pelo homem”). Mas a fotografia dele é mais do que uma simples redenção da feiúra e da banalidade. Teixeira fala menos de natureza degradada do que de um sonho urbano corrompido por seu próprio crescimento arquitetônico. Devemos, então, prestar atenção ao capítulo dedicado a um dos complexos urbanos mais emblemáticos de Belo Horizonte, o Conjunto Juscelino Kubitschek – CJK. Dedicar um capítulo inteiro ao fracasso espetacular deste projeto pode legitimamente parecer um manifesto. De fato, o CJK condensa muitas aberrações no planejamento da cidade que abriram o caminho para a ocupação máxima do território pelos edifícios. Este capítulo é, portanto, uma acusação específica contra o poder de preenchimento desavergonhado que, infelizmente, a arquitetura frequentemente assume.
É sem dúvida em torno do CJK que o uso da poética fotográfica de Carlos Teixeira se desenvolve de maneira mais eloquente. O título do capítulo fala por si: “CJK (o anticartão-postal)”. A equipe formada em 1946 em torno do governador Juscelino Kubitschek e do arquiteto Oscar Niemeyer deu à luz algumas pequenas joias, a capela e o cassino da Pampulha, sabiamente colocados à beira de um lago, longe do centro da cidade, diamante na coroa suburbana que poderia reivindicar corresponder aos picos históricos do barroco mineiro. O CJK foi mais uma aventura que começou no coração da região metropolitana, levando todas as marcas dos híbridos arquitetônicos do movimento moderno. As duas torres do complexo, de 26 e 36 andares, respectivamente, destinavam-se a acomodar cerca de 5 mil habitantes e constituíam de fato uma espécie de cidade dentro da cidade, dotada de um programa inovador inspirado em alguns princípios coletivos testados por Le Corbusier em La Cité Radieuse (10) de Marselha.
Infelizmente, tudo deu errado, econômica, política e urbanisticamente, de modo que em 1964, quando a ditadura sucede os anos abençoados em que Juscelino Kubitschek era o Presidente da República, o monstro arquitetônico afunda em um processo entrópico irreversível, devido à obra incompleta e ao vandalismo dos próprios habitantes. As imagens desta catástrofe arquitetônica e urbana, notadamente a página dupla 224 e 225, obra de José Octavio Cavalcanti e com o título felliniano E la nave va, são eloquentemente brutais. Mais uma vez, através de suas escolhas, o autor soube colocar a arte da fotografia a serviço de sua demonstração, e percebemos, por trás desse clichê desesperado de uniformidade, a estética da trágica monumentalidade de um Andreas Gursky.
Carlos M. Teixeira é arquiteto: se seu trabalho tem um aspecto reflexivo e é nutrido por inúmeras referências artísticas, é também porque, para ele, pensar em urbanismo deve necessariamente levar a propostas, a planos e a um desejo concreto de transformar o mundo. Para ele, a cidade é uma atividade permanente e, portanto, uma fênix que exige, acima de tudo, que a mente seja liberta das restrições do hábito. Os territórios explorados e depois abandonados pela atividade da mineração, como os prédios em colapso sob sua decrepitude avançada, são vazios potenciais e, portanto, provocações à liberdade e à imaginação. Diante dessa realidade, vamos reproduzir os erros do passado e preencher até a exaustão o espaço disponível no centro e nos arredores da cidade? Pelo contrário, seremos capazes de encontrar alternativas revigorantes para essas terras agora estéreis? Para dar um poder dinâmico a essas questões, Carlos M. Teixeira apela ao radicalismo artístico como força poética da proposta. Evoca o levante, tanto ético quanto estético, representado pela exposição de Yves Klein, Le Vide (11), que oferecia para qualquer objeto de contemplação a ausência dos objetos de arte esperados em uma galeria, assim que se cruzasse sua soleira. Evoca igualmente o gesto de Lucio Fontana em Concetto spaciale attese, imaginando a lâmina radical do italiano cortando a Serra do Curral que domina a cidade e assim renovando, de uma só vez, a percepção da paisagem emergente no horizonte.
O livro termina com “Projetos” como se o autor fosse propor um novo programa arquitetônico. Essa talvez não seja a verdadeira natureza radical de seu argumento. Ao evocar Klein ou Fontana, Carlos M. Teixeira presta homenagem a obras-gestos e não obras-objeto. O vazio da galeria Iris Clert na verdade não era tão vazio, pois as fotografias que temos mostram algo: o espaço da galeria, suas paredes e sua cubagem.
Ainda mais, mostram uma janela vazia que o artista não conseguiu remover e um par de cortinas, uma das quais sustentada por uma abraçadeira. Vitrine e cortinas são os próprios instrumentos da encenação e envolvem um claro convite para ir e ver. Elas indicam essa parte essencial da arte, que é o condicionamento da visão, sua educação, mas também a necessidade de sua libertação. Voltando, como queria Klein, à matéria-prima que é a sensibilidade, esse é o calvário e a liberdade sobre a qual o vazio se abre, como o corte de Fontana se abre para uma terceira dimensão do plano da pintura, até então oculta.
Se este livro é um apelo à liberdade de sentir e pensar, e de pensar enquanto se sonha, é porque a catástrofe urbana nunca é definitiva, sempre haverá atividades e desejos para renová-la. Diante do impasse criado pelo preenchimento cego do espaço urbano, Carlos M. Teixeira nos convida a estar fielmente atentos às surpreendentes possibilidades do vazio.
notas
1. SCHUMPETER, Joseph Aloïs. Theorie der wirtschaftlichen Entwicklung: Eine Untersuchung über Unternehmergewinn, Kapital, Kredit, Zins und den Konjunkturzyklus. Berlim, Duncker & Humblot GmbH, 1994.
2. Estas pinturas estão atualmente expostas no Museu Histórico Abilio Barreto.
3. Uma modesta capela fora construída no início do século 18 pelo português Francisco Homem del Rey, substituída no século 19 pela imponente matriz, que por sua vez seria demolida em 1925 para dar lugar (em 1932?) à atual catedral de Belo Horizonte, em puro estilo gótico.
4. ARINOS, Afonso. Nossa Senhora de Boa Viagem. In BANDEIRA, Manuel (Org.). Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p. 17.
5. TEIXEIRA, Carlos M. Em obras: história do vazio em Belo Horizonte. São Paulo, Romano Guerra, 2022, p. 40.
6. Idem, ibidem, p. 59.
7. Idem, ibidem, p. 61.
8. ARAGON, Louis. Le passage de l’Opéra. In Le paysan de Paris. Paris, Gallimard, 1924, p. 19 (ênfase do autor).
9. New Topographics: Photographs of a Man-Altered Landscape, exposição de oito jovens fotógrafos americanos na George Eastman House em Rochester NY em 1975. Sua característica era se distanciar da visão clássica e mítica da paisagem americana, em busca dos interstícios do tecido social americano.
10. A Cité Radieuse, construída por Le Cobusier nos arredores de Marselha entre 1945 e 1952, compreende 337 unidades habitacionais às quais 26 serviços comuns são destinados ao uso de todos os residentes.
11. Yves Klein, Le Vide, exposição que decorreu na galeria Iris Clert, em Paris, de 28 de abril a 12 de maio de 1958. A mostra, na verdade, tinha um título mais complexo do que a história conserva: A especialização da sensibilidade como uma matéria-prima para a sensibilidade pictórica estabilizada. Yves Klein havia repintado toda a galeria de branco para que, por meio desse gesto, pudesse ocorrer uma experiência sensível e radical da cor. Ele havia se apropriado do espaço e feito dele, como ele mesmo dizia, sua oficina.
sobre o autor
Jacques Leenhardt, filósofo e sociólogo, é diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris.