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José Roberto Fernandes Castilho comenta artigo de Mário de Andrade, originalmente publicado no Diário Nacional em 1927, onde o intelectual paulista ridiculariza o arquiteto passadista e ignorante. O texto de Andrade está reproduzido na íntegra.

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CASTILHO, José Roberto Fernandes. Mário de Andrade conversa com o grande arquiteto. Resenhas Online, São Paulo, ano 21, n. 248.03, Vitruvius, ago. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/21.248/8579>.


Em 1927, Mário de Andrade publicou no jornal paulistano Diário Nacional (1927-1932) – onde escreveu regularmente até quando o jornal foi fechado – uma série de cinco artigos sobre a “Arte em S. Paulo”, envolvendo a música, a escultura etc. Uma delas – a que se reproduz abaixo –, trata da arquitetura e foi publicada em 23 de novembro de 1927. Cheio de ironias, sarcasmo, absurdos e contradições, o texto, que tem a forma de diálogo, é notável porque mostra a atuação de um arquiteto “passadista”, que se considerava artista original, mas que acabava construindo no estilo escolhido pelo contratante: florentino, manuelino, colonial. Aliás, até nisso o texto é irônico porque o arquiteto diz que são seus auxiliares que projetam, não ele, o artista original, o grande arquiteto.

Inspirado certamente na conhecida figura de Francisco de Paula Ramos de Azevedo – que morreria em 1928 e em cujo Escritório Técnico de Projeto e Construção trabalhavam centenas de empregados (1) – o arquiteto do texto chegava a pintar o mármore para parecer madeira e dizia não cometer as loucuras dos arquitetos futuristas... E, formado na Europa, nem tinha livros e revistas “de agora”, com “bobagens dos moços de hoje” (Ramos de Azevedo se formou na Bélgica, em Gant, onde se vinculou ao ecletismo). Lembre-se que a Casa Modernista da rua Santa Cruz, de Gregori Warchavchik foi projetada no mesmo ano de 1927 (data do texto) e construída em 1928 sendo considerada a primeira edificação modernista feita no Brasil.

A referência final à “gruta de Fingal” lembra uma caverna marinha, com formações rochosas assombrosas (são centenas de padrões geométricos de basalto), situadas no arquipélago das Hébridas, costa atlântica da Escócia. Tão assombrosas são estas formações, que o compositor romântico alemão Felix Mendelssohn, quando as visitou em 1829, teve a inspiração para sua abertura, ou melhor, poema sinfônico chamado exatamente “As Hébridas ou a gruta de Fingal”, concluído no ano seguinte. O “hall” da casa do grande arquiteto era reprodução exata da gruta de Fingal!

O texto foi retirado o livro de Mário de Andrade, Táxi e crônicas no Diário Nacional, grosso volume com estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez (Livraria Duas Cidades, 1976). Deve ser registrado que a obra de Mário de Andrade caiu em domínio público em janeiro de 2016, após setenta anos de seu falecimento, em 1945 (2).

* * *

O grande arquiteto
Mário de Andrade

Quando meus olhos fatigados de tanta feiura arquitetônica se apoiaram na boniteza humilde da poeira, percebi pela duplicidade da minha sombra que tinha alguém junto. Voltei-me. Um velho “chic” se ria para mim. Não era que fosse velho de verdade, contava já seus sessenta anos de certo, porém devido à morada sem frestas, aos sobretudos de tecido fechado, a velhice estava custando a entrar no corpo dele. Falou empafioso.

– Sou eu o grande arquiteto.

– Ahn.

– Está gostando da casa?

– Ahn.

– É puro florentino. Quer ver a construção? É perfeitíssima.

Entramos pelo portão ainda de tábuas.

– Aqui – ele falava – mandei fazer uma reprodução exata dum portão de ferro que vi em Toledo. Não é florentino, porém o árabe se acomoda muito bem com o estilo, não acha?

– É... com o estilo dessa casa não tem dúvida que o árabe se acomoda. Não ficava interessante um portão japonês?...

– A sua observação é muito judiciosa, meu caro senhor. Eu mesmo hesitei algum tempo entre o que mandei fazer e um portão japonês. O que me fez decidir pelo de Toledo foi uma recordação deliciosa de amor, uma criaturinha inconcebível de espírito e elegância que encontrei em Toledo e que se tornou uma aventura séria em minha vida.  Foi isso que me fez escolher o portão árabe; ele me recorda os bons tempos de Toledo.

– Mas a casa é para o senhor morar?

– Não, é dum cliente, porém um cliente por quem me interesso por amizade. E é por isso que o senhor me vê aqui. Um amigo velho. O senhor compreende: todos os projetos que são assinados por mim são desenhados lá no escritório pelos meus auxiliares. Sob minhas vistas, está claro, porém não são feitos por mim.

– Está claro.

– Está claro. Eu sou um artista e não me sujeito a essas modas que os clientes exigem. O sr. não pode imaginar o que é um escritório de arquitetura! Chega um e que Luís XVI. Temos que dar-lhe Luís XVI. Outro quer manuelino, outro quer colonial, outro quer bangalô. Os meus auxiliares é que fazem isso. Eu sou artista e hei de impor a minha personalidade. Não me sacrifico pelo público, não faço uma concessão. Meu ideal é o florentino! O senhor veja a boniteza desta casa!

– É uma gostosura.

– Não é? Que nobreza de linhas e ao mesmo tempo tão gracioso.

– Tem uma graça enorme.

– Graciosíssimo. Tudo florentino. Eu só admito uma certa fantasia no interior. E sou original. Principalmente o “living-room” é duma originalidade absoluta. Entre por aqui.

Entramos. A casa já estava quase pronta. Entramos pelos fundos porque estavam brunindo o mármore da escadaria principal. O banheiro era pompeiano com desenhos de banhistas nos azulejos. A sala de estar era bem grande com um fogão formidável num canto. O grande arquiteto explicava tudo.

– Repare no fogão. É Luís XVI.

– E carece mesmo fogão porque faz um frio danado aqui.

O grande arquiteto riu com superioridade.

– É por causa das paredes. Ponha a mão pra ver.

– Ué, que pau mais gelado este, puxa!

O grande arquiteto deu a gargalhada mais satisfeita que já escutei na boca de arquiteto.

– Não é de madeira, meu senhor! Isto é mármore.

– É mármore!

– Está claro! Numa casa feita com tanto luxo como esta carecia empregar só as matérias mais nobres. A madeira é material banal por demais. Então lembrei de empregar mármore. E como em sala de jantar se usa madeira, empreguei mármore pintado, fingindo mogno do Peru. Repare que imitação perfeita! É um pintor habilíssimo.

– Habilíssimo.

– Nisso é que está a fantasia. Não é fazer essas loucuras que os arquitetos futuristas estão fazendo. Aliás nem sei o que eles estão fazendo porque não tenho nenhuma dessas revistas nem livros de agora. Aprendi arquitetura em Roma e em Paris. Tenho muito boa escola para estar perdendo tempo com essas bobagens dos moços de hoje. Eles só querem ser originais mas não conseguem! Originalidade o senhor vai ver é neste “hall”!

E o grande arquiteto abriu a porta que comunicava com o “hall”. Gritei:

– Santa Maria, que é isso?

– Ah!... meu caro, este “hall” é a reprodução exatinha da gruta de Fingal!

notas

1
Pelo escritório passaram nome importantes da arquitetura paulista como Victor Dubugras, Anhaia Mello e o luso Ricardo Severo, dentre outros.

2
ANDRADE, Mário. Arte em São Paulo IV: o grande architecto. Diário Nacional, São Paulo, 23 nov. 1927, p. 2. Republicação: ANDRADE, Mário. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Organização de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo, Duas Cidades, 1976, p. .

sobre o autor

José Roberto Fernandes Castilho é professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura na FCT/Unesp.

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