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Adriano Menino de Macêdo Júnior comenta o clássico Dom Casmurro e a conhecida questão: Capitu traiu ou não Bentinho?

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MACÊDO JÚNIOR, Adriano Menino de. Dom Casmurro. Capitu traiu ou não Bentinho? Resenhas Online, São Paulo, ano 21, n. 249.03, Vitruvius, set. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/21.249/8611>.


Antes de partimos para a ideia principal desta resenha crítica da obra Dom Casmurro (1899–1900) (1), se faz necessário aqui suscitar aspectos da vida e obra do nosso amado e brilhante Machado de Assis. Assim, o escritor, “poeta, novelista, dramaturgo, jornalista, contista, cronista, romancista, crítico e ensaísta”, Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu em 21 de junho de 1839 na cidade do Rio de Janeiro, Morro do Livramento. Filho do casal Francisco José de Assis e de Maria Leopoldina Machado de Assis, tornou-se o maior nome da literatura nacional (2).

O universo da crítica literária declara Machado, com veemência, como o escritor mais importante da literatura brasileira e talvez o espírito mais lúcido de toda a nossa cultura. De origem humilde, Machado de Assis é contemporâneo do Segundo Reinado no Brasil, por volta de 1840 a 1889, retratando em suas obras, de maneira mais específica, aspectos da sociedade fluminense e o comportamento da classe elitista de seu tempo, a partir de uma perspectiva crítica. É muito comum reconhecermos questões universais nas obras deste ilustre escritor, tais questões que pairam sob a aflição do homem na sua condição de sujeito atemporal, tais como: o amor, o jogo de interesses entre os sujeitos, o tema da traição etc.

Em sua adolescência já mostrava seu talento com a escrita ao publicar trabalhos literários de grande entusiasmo, como o poema “Ela”. Em 1864, tornou público seu primeiro livro de poesias, sob o título de Crisálidas, composto originalmente de 29 poemas, dos quais dezessete foram cortados pelo próprio poeta quando editou suas Poesias completas” (3). Em 1869 desposara-se com “a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, mulher culta que o apresentou aos clássicos portugueses e a vários autores da língua inglesa. Viveram 35 anos juntos até 1904, quando Carolina faleceu. Em sua homenagem, Machado dedicou o soneto A Carolina” (4).

Consoante Macêdo Júnior (5), Machado de Assis “é o fundador da cadeira n. 23 da Academia Brasileira de Letras”, suas obras, em romance, estão divididas em duas fases, a primeira alinhada à estética romântica: “Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878)”, e a segunda alinhada à estética realista: “Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), que inaugura o Realismo no Brasil, Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899–1900), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908)” (6).

Dito isto, passaremos a discutir o objetivo principal desta resenha: como mencionado anteriormente, focaremos na obra Dom Casmurro, problematizando o tema da traição, que suscita leituras a respeito desse romance. Esse trabalho se origina como requisito avaliativo da Disciplina “Teoria da Literatura 2”, solicitado pela professora especialista Luciana Dantas de Souza. No desenvolvimento do trabalho os alunos devem adotar um posicionamento crítico a respeito da personagem Capitolina, observando se ela traiu ou não Bento Santiago, daí o título da resenha. A seguir, argumentaremos com citações da própria obra, aqui já mencionada, e discutiremos qualitativamente, o porquê do nosso posicionamento em defesa de Capitu, destacando que ela não traiu bentinho.

A obra, o enredo e a resenha

Dom Casmurro, sétimo romance de Machado de Assis, foi publicado no ano de 1899 através da Livraria Garnier. A obra também foi adaptada pela Rede Globo, em uma minissérie, com o título Capitu, que veio ao ar entre 9 e 13 de dezembro de 2008, com cinco capítulos. A trama literária paira sob o sentimento do ciúme e desgraça conjugal de Bento Santiago. No início da obra já é claro ver que Dom Casmurro está fadado à tragédia matrimonial pela citação aos nomes dos imperadores César, Augusto, Nero e Massinissa, que executaram suas esposas pelo crime do adultério (7).

Durante a leitura da obra, observamos que a trama tem foco narrativo em primeira pessoa, o narrador é o próprio Bento de Albuquerque Santiago, bacharelado em direito, sujeito bem-sucedido socialmente, que se criou na antiga rua de Matacavalos, em Novo Engenho, e que, já na velhice, deseja elucidar aspectos da sua adolescência. Em outras palavras, a história é contada por um sujeito já idoso, que rememora parte da sua existência com Capitu.

No desenrolar da narrativa, é de notar que Bentinho é um sujeito de temperamento difícil, diferente dos demais que vivem em sociedade. E a partir desse primeiro contato com a obra, vemos que a história é contada através da perspectiva do narrador-personagem: Bento Santiago e não de Capitu. Sendo assim, é de perceber que o homem narra à história a partir do seu ponto de vista, sem dar o direito à mulher de se manifestar com a sua própria voz: “agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão” (8). Note, conforme lemos, que o poder da escrita é exclusivo de Bentinho, que não o compartilha com Capitu.

Para uma análise crítica da relação entre os protagonistas, é preciso destacar que desde pequeno a relação de Bentinho e Capitu era minada pelo agregado José Dias, e muitas eram as más reputações que este dirigia à menina:

“Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los [...]. — É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida...” (9).

Na passagem supracitada, observamos o personagem José Dias conspirando contra Capitu para Dona Glória, mãe de Bentinho. Desse modo, Bentinho já via a imagem de Capitu com desconfiança desde a sua infância e adolescência, e essas lembranças virão à tona mais tarde com o desfecho da história.

No Capítulo 67 — intitulado “Um pecado”, observamos a representação de bem-querer tão forte que Bentinho havia de ter nas carnes por Capitu, que chega a desejar a própria morte da mãe:

“Ao cabo de cinco dias, minha mãe amanheceu tão transtornada que ordenou me mandassem buscar ao seminário. Em vão tio Cosme: — Mana Glória, você assusta-se sem motivo, a febre passa... — Não! Não! mandem buscá-lo! Posso morrer, e a minha alma não se salva, se Bentinho não estiver ao pé de mim” (10).

Ao que Bentinho rememora:

“Fui, cheguei aos Arcos, entrei na rua de Matacavalos. A casa não era logo ali, mas muito além da dos Inválidos, perto da do Senado. Três ou quatro vezes, quisera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a boca; mas agora, já nem tinha tal desejo. Ia só andando, aceitando o pior, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi então que a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por elas: “Mamãe defunta, acaba o seminário.” Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma sugestão da luxúria e do egoísmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa, pelo desaparecimento da dívida e do devedor; foi um instante, menos que um instante, o centésimo de um instante, ainda assim o suficiente para complicar a minha aflição com um remorso” (11).

Sendo assim, com a eminente possibilidade de morte da mãe, há de passar pela cabeça de Bentinho sensação de alívio, e a possibilidade de viver a sua paixão por Capitu, que, por um instante, falara mais alto do que o amor pela mãe. Considerando essa situação, seria possível ir percebendo certa obsessão do personagem masculino por Capitu.

Em nossa compreensão, o comportamento obsessivo que se pode enxergar em Bentinho e que é dirigido a Capitu será provocador de um ciúme, igualmente, possessivo. A respeito disso, poderíamos perguntar: seria esse ciúme latente de Bento Santigo alimentado por toda a sua juventude? Este ciúme latente, agora referido, vem à tona, pelo menos a nosso ver, a partir do capítulo 106 — intitulado “Dez libras esterlinas”, quando Capitu é pega em um momento de distração e perdida em pensamentos profundos:

“Sabes que alguma vez a fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes. — Você não me ouve, Capitu. — Eu? Ouço perfeitamente. — O que é que eu dizia? — Você... você falava de Sírio. — Qual Sírio, Capitu. Há vinte minutos que eu falei de Sírio. — Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada. [...] Capitu, ao percebê-lo, fez-se a mais mimosa das criaturas, pegou-me na mão, confessou-me que estivera contando, isto é, somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava. [...] — Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim. Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha. Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mão; eram as sobras do dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as despesas. — Tudo isto? — Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher pôde arranjar, em alguns meses, concluiu fazendo tinir o ouro na mão. — Quem foi o corretor? — O seu amigo Escobar. — Como é que ele não me disse nada? — Foi hoje mesmo. — Ele esteve cá? — Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse” (12).

Conforme lemos no fragmento citado, Capitu opta em dizer a verdade, deixando claro para Bentinho que o amigo Escobar estivera em sua residência em sua ausência. Em nossa opinião, a sinceridade da mulher descarta a suspeita de um adultério, que somente pode ser real para um homem como bentinho, que sempre mostrou ser dominado pelo sentimento do ciúme, como observamos no princípio da passagem literária, quando ele afirma: “Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes”; “Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos reconstruiria o céu, a terra e as estrelas” (13).

No desenrolar da trama, Capitu, já sabendo que Bentinho estava a lhe vigiar, e como sempre carregado de desconfianças, passará a ser mais doce com ele e a agir para lhe evitar o ciúme: “não me ia esperar à janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infância” (14). Em certo sentido, vemos que a mulher muda o próprio comportamento a fim de evitar os arroubos de ciúme do marido. Nesse sentido, ele quem vai construindo a ideia da traição na medida em que o sentimento de ciúme deixa de ser latente e começa a aflorar.

Outro indício do ciúme obsessivo de Bentinho pode ser problematizado a partir de como ele ver o filho Ezequiel, numa semelhança com a do amigo Escobar. Os próximos fragmentos da obra são de um homem que aparece tomado pelas peças impostas do ciúme:

“— Não sai a nós, que gostamos da paz, disse-me ela um dia, mas papai em moço era assim também; mamãe é que contava. — Sim, não sairá maricas, repliquei; eu só lhe descubro um defeitozinho, gosta de imitar os outros. — Imitar como? — Imitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos...” (15).

A semelhança entre Ezequiel e Escobar, como observada por Bentinho no trecho acima, pode ser, na nossa concepção, mais uma visão desencadeada pelo ciúme. Como aponta o escritor espanhol Miguel de Cervantes, “Os ciumentos sempre olham tudo com óculos de aumento, os quais engrandecem as coisas pequenas, agigantam os anões, fazem com que as suspeitas pareçam verdades.” Em outro momento em que a protagonista pode ser tida como inocente do crime de adultério é o seguinte: Se Ezequiel haveria de ser filho de Escobar, por que então Capitu fez a seguinte indagação: “— Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita?”, ao que ela mesma responde: “Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim...” (16). Supomos que se Ezequiel fosse filho de Escobar, Capitu não atentaria Bentinho para a semelhança entre os dois.

Para corroborar com nosso objetivo proposto no início, trazemos os pesquisadores Almeida, Rodrigues e Silva que afirmam que “o adulto torna-se ciumento quando acredita que o casamento ou o relacionamento romântico no qual está inserido está ameaçado por um rival real ou imaginário” (17). Desde o momento em que Escobar foi corretor de Capitu, Bentinho já o via como ameaça para seu matrimônio. Os autores ainda sugerem que, “pessoas ciumentas permanecem ambivalentes entre o amor e a desconfiança de seu parceiro, tornando-se perturbadas, com labilidade afetiva e obcecadas por triangulações, muitas vezes imaginárias.” Seria a partir daí que Bentinho se cercara de pensamentos profanos e doentios com a sua esposa? Em verdade, acreditamos que sim, um sujeito preenchido pelo ciúme pode imaginar ideias inexistentes (18).

Outro momento que podemos ver, no que diz respeito à imaginação de Bentinho e tomado pela raiva, é o seguinte:

“Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam comigo o meu desespero era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todos os minutos da vida embaraçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro” (19).

Para Almeida, Rodrigues e Silva (20), “O ciúme pode, portanto, ser considerado imaginário, porque toma a pessoa com a imaginação obsessiva de que pode estar sendo ameaçada de perda ou humilhação”. Bentinho já manipulado por tal sentimento acaba por ver o rosto e gestos de Escobar no próprio filho Ezequiel.

A postura de Bentinho ao enviar sua esposa para a Europa também condiz com a do homem ciumento, pois Almeida, Rodrigues e Silva afirmam, “o ciúme implica certo cerceamento do outro, porque o parceiro ciumento, de algum modo, interfere no comportamento do outro e em sua liberdade, tornando-se possessivo e controlador” (21), como acaba acontecendo no final do romance.

Considerando o exposto ao longo da resenha, reafirmamos nosso posicionamento em defesa de Capitu. Aproveitando os ensejos para afirmar que a visão do narrador principal, nesse caso Bentinho, é a que tem verdade absoluta.

Cena de Capitu, minissérie inspirada na obra Dom Casmurro
Foto divulgação [Globo]

notas

1
Casmurro: “nos dicionários, que Machado de Assis ironicamente nos dispensa de consultar, a palavra casmurro aparece com o significado de teimoso, obstinado, cabeçudo. (N. E.)”.

2
ASSIS, MACHADO de. Dom Casmurro. Brasília, Câmara dos Deputados/Edições Câmara, 2016, p. 261 <https://bit.ly/3g8nfJ4>.

3
Idem, ibidem, p. 261.

4
Idem, ibidem, p. 261.

5
MACÊDO JÚNIOR, Adriano Menino. Uma história para se deleitar: Machado de Assis e a narrativa do conto “A cartomante”. Revista Educação Básica em Foco, v. 2, n. 2, 2021, p. 2 <https://bit.ly/3RTS5SJ>.

6
Idem, ibidem, p. 2.

7
ASSIS, MACHADO de. Op. cit., p. 14

8
Idem, ibidem, p. 15

9
Idem, ibidem, p. 17

10
Idem, ibidem, p. 136

11
Idem, ibidem, p. 137. Grifo do autor.

12
Idem, ibidem, p. 145. Grifo do autor.

13
Idem, ibidem, p. 197–198. Grifo do autor.

14
Idem, ibidem, p. 211.

15
Idem, ibidem, p. 154. Grifo do autor.

16
Idem, ibidem, p. 233

17
ALMEIDA, Thiago de; RODRIGUES, Kátia Regina Beal; SILVA, Ailton Amélio da. O ciúme romântico e os relacionamentos amorosos heterossexuais contemporâneos. Estudos de Psicologia (Natal), v. 13, n. 1, 2008, p. 85.

18
Idem, ibidem, p. 85.

19
ASSIS, MACHADO de. Op. cit., p. 234.

20
ALMEIDA, Thiago de; RODRIGUES, Kátia Regina Beal; SILVA, Ailton Amélio da. Op. cit., p. 86.

21
Idem, ibidem, p. 86.

sobre o autor

Adriano Menino de Macêdo Júnior é farmacêutico-generalista, discente do curso de Letras Português na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

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