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abstracts

português
Sandra Fiori, Octavie Paris e Claire Revol comentam a publicação organizada por Artur Rozestraten, que investiga os imaginários para assim sondar as cidades tais quais elas se apresentam.

english
Sandra Fiori, Octavie Paris and Claire Revol comment about the publication organized by Artur Rozestraten, which investigates the imaginaries in order to probe the cities as they present themselves.

español
Sandra Fiori, Octavie Paris y Claire Revol comentan la publicación organizada por Artur Rozestraten, que investiga los imaginarios para sondear las ciudades tal como se presentan.

how to quote

FIORI, Sandra; PARIS, Octavie; REVOL, Claire. Poéticas urbanas: imageria, projeto e precariedade. Imaginário: construir e habitar a terra. Resenhas Online, São Paulo, ano 21, n. 249.02, Vitruvius, set. 2022 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/21.249/8610>.


Esta publicação reúne uma seleção de textos apresentados durante a segunda edição do colóquio internacional Imaginaire: Construire et Habiter la Terre — ICHT que se realizou na França, em Lyon, em abril de 2017 (1). O ICHT 2017 se originou de um colóquio anterior, realizado em São Paulo, em 2016, com o tema “Cidades inteligentes e poéticas urbanas”, cuja seleção de textos das atas deu origem a uma primeira obra: Cidades “inteligentes” e poéticas urbanas, organizado por Artur Rozestraten (2). Estes encontros estão inseridos em uma dinâmica de cooperação entre pesquisadores brasileiros da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP, do Centro Universitário Senac e pesquisadores franceses da Universidade de Lyon — associados à École Nationale Supérieure d'Architecture de Lyon — Ensal; e ao Departamentos de Filosofia e Geografia da Université de Lyon 3 Jean Moulin, assim como do Departamento de Sociologia da Université Jean Monnet de Saint-Étienne e do Instituto de Urbanismo e de Geografia Alpina da Université Grenoble Alpes.

Estes colóquios abordam o papel que as poéticas urbanas desempenham na construção e no habitar urbano no século 21. A primeira edição abordava a noção de que a cidade inteligente, com frequência equiparada às smart cities, é sustentada por um novo funcionalismo, que procura produzir espaços e serviços urbanos mais eficazes. Em uma perspectiva crítica, seu objetivo era voltar a questionar a produção contemporânea do urbano a partir da noção de poética urbana: Afinal, o que seria uma cidade verdadeiramente inteligente? Em que medida a poética pode reinventar a natureza da polis? Que alternativas ou que formas de subversão as poéticas urbanas podem opor aos projetos de smart cities? Como tais poéticas interagem com os recursos de inteligência coletiva das sociedades urbanas?

Abordando o mesmo tema, porém com um enfoque mais amplo, a segunda edição continuou explorando o potencial dos imaginários e os desafios de compreender a complexidade da cidade contemporânea e os paradoxos de sua produção, tanto do lado daqueles que criam ou planejam os espaços, quanto dos que os habitam.

Os textos apresentados nesta obra investigam os imaginários para assim sondar as cidades tais quais elas se apresentam: considerando suas paisagens cotidianas, seus espaços públicos ou periferias, marcados por uma urbanização frequentemente sinônima de ambientes deteriorados, de usos e sociabilidades conflituosas, de conformidade às normas ou, ao contrário, de dinâmicas de subversão, de padrões e modas, mas também de mitos quase atemporais.

Seja através do cinema ou da fotografia, da etnografia ou dos arquivos, da narrativa ou da performance, estes textos abarcam análises e experiências que afirmam as possibilidades ou impossibilidades do habitar. A partir do contexto sombrio com o qual se confrontam, tanto a partir de imagens como de realidades sociais, autores e autoras tentam apresentar uma alternativa por meio da transformação do quotidiano mobilizada por recursos de projetos coletivos. As imagens materiais, o corpo, a memória são expressões de qualidades estéticas e ambientais, de formas de apropriação ou de resistência, em síntese, de poéticas para um possível reencantamento, suporte do construir e do habitar a Terra compartilhada. Construir implica a elaboração de mundos abertos a uma pluralidade de conceitos do coabitar, de poéticas diversas que refletem uma diversidade de formas de habitar. Estas formas de habitar são poéticas na medida em que engendram ou produzem formas de se relacionar com lugares, de designá-los, de percorrê-los, de organizar as atividades e o repouso, mobilizando imagens nas quais ressoam os afetos. As poéticas descrevem estes vínculos que nos fazem, tanto quanto nós os fazemos, objetos de projeções, fantasmas ou até mesmo delírios. Além disso, os desafios do século 21 demandam, melhor do que soluções, outros imaginários do habitar.

Para estimular estas capacidades imaginativas e reforçar a dinâmica de compartilhamentos mútuos, o colóquio ICHT 2017 também deu origem a workshops práticos, organizados com o apoio do estúdio “Experiências sensíveis e pesquisa urbana” do laboratório de excelência Inteligências dos Mundos Urbanos — IMU. Estes workshops respondem à convicção da equipe organizadora de que as experiências compartilhadas são essenciais para a produção de conhecimentos. Acolhidos pelo centro cultural de memórias urbanas Le Rize em Villeurbanne, aconteceram, em parte ao ar livre, nas imediações do Rize, sob a forma de um workshop de textos, de um workshop de audição e de um workshop de fotografia.

O workshop de textos foi realizado pelo artista Stéphane Bonnard (companhia de espetáculo ao vivo Komplex Kapharnaum), cujo trabalho faz da imobilidade um ato de protesto contra a aceleração generalizada da vida urbana. Este workshop foi complementado por uma peça teatral (“Immobile Paris: Esse que, 2015”) e uma performance desenvolvidos por Stéphane Bonnard para o centro de negócios de La Défense em Paris. A partir de experiências de tempos de imobilidades coletivas no espaço público, os participantes foram convidados a experimentar a imobilidade durante dez minutos em silêncio, em seguida a escreverem seus pensamentos e associações de ideias e depois a reproduzir a experiência em vários locais. Partindo de uma postura inabitual, a princípio estranha, o protocolo suscitou um jogo com os limites do desconforto, da acessibilidade, da interação com os transeuntes e com os locais. Ao pararem, os participantes descobriam experiências internas que, longe de serem imóveis, permitem relacionarem-se com o ambiente em outro ritmo e encontrar uma forma de autonomia entre meditação e interpelação dos passantes.

O segundo workshop Imagissons realizado por Cécile Regnault, arquiteta na ensal, explorou as ligações entre a experiência sonora e o imaginário. Focar a atenção na audição supõe uma aprendizagem. Frequentemente ignorado ou simplesmente inconsciente, o sentido da audição requer uma interrupção de atividade para dedicar algum tempo na imersão em uma escuta mais profunda. O workshop Imagissons propunha adotar posturas imersivas que, ora ativas ora contemplativas, ofereciam um certo distanciamento favorável ao desenvolvimento de um imaginário aberto. A partir de uma imersão em “pontos de audição” específicos, os participantes foram convidados a restituir suas sensações através de uma narração do imaginário do local com recursos gráficos. O reposicionamento de um imaginário auditivo por meio de imagens gráficas destaca, então, a riqueza da experiência sonora diária.

O terceiro workshop “Fotografar os espaços urbanos: entre abordagem sensível e científica” é realizado pela fotógrafa e pesquisadora de história das formas urbanas Anne-Sophie Clémençon e uma artista plástica e fotógrafa Emmanuelle Vernin. O objetivo foi constituir um conjunto fotográfico em que a pluralidade dos pontos de vista proporciona sentido à cidade e às suas mutações. Na verdade, o bairro Grand Clément em Villeurbanne ilustra o conceito de cidade em mutação. Antigo território industrial, foi objeto de várias transformações, desde 1970. Duas tipologias se apresentam ainda no perímetro deste antigo bairro industrial. A primeira é um setor residencial onde se alternam pequenas residências operárias, imóveis antigos, canteiros de obra e construções recentes. A segunda reúne um conjunto de edifícios industriais dos séculos 19 e 20, dos quais alguns conseguiram resistir ao tempo. Através de diferentes percursos nestes dois espaços, o workshop propôs explorar visualmente o território e compartilhar experiências fotográficas do lugar. Cada participante contribuiu, assim, para um caderno de restituição de registros que testemunha diferentes olhares sobre a cidade.

Estes três workshops terminaram com uma discussão sobre a instalação de vídeo e a obra Portadores, Imaginário e Arquitetura (3), consagrada aos portadores de modelos (maquetes) de casas durante as cerimônias do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, e de modelos de igrejas no auto natalino do Guerreiro Alagoano. Este compartilhamento foi realizado na presença dos fotógrafos e autores deste trabalho, Artur Rozestraten, Daniele Queiroz e Karina Leitão (FAU USP), com a contribuição de Jean-Jacques Wunenburger (Université Lyon 3). O compartilhamento de experiências sensíveis com base nestes diferentes workshops constituiu uma reflexão comum e transversal no construir e habitar a Terra, complementar às contribuições dos autores aqui reunidos.

Imagerias, memórias, projeções e projetos

Com esta temática, o diálogo entre trabalhos brasileiros e franceses aborda os desafios metodológicos dos estudos e da produção das imagens materiais em suas relações com os imaginários urbanos. As imagens são onipresentes na produção contemporânea do urbano, tanto na concepção dos projetos como em sua comunicação. Associadas à difusão de câmeras fotográficas e de vídeo nos smartphones, que estão presentes em todos os usos e práticas do quotidiano no espaço urbano. Da mesma forma, os artistas que intervêm no espaço urbano (fotógrafos, artistas plásticos, coreógrafos, videastas etc.) captam e divulgam imagens do e no espaço urbano. Em diferentes áreas associadas à produção do urbano, as imagerias urbanas, isto é, todas as formas de imagens externalizadas como fotografias, vídeos, esquemas gráficos, desenhos etc. são suportes de apresentação e de transformação do urbano; são, portanto, abordadas como ferramentas heurísticas fecundas da realidade urbana, indissociáveis de qualquer experiência de ambientes urbanos atuais e futuros. Além do testemunho documental que proporcionam, tais imagerias moldam e atualizam o imaginário, entendido como um conjunto de imagens dinâmicas de um bairro, de uma cidade ou de um território.

A proliferação das imagens nos suportes digitais é um ponto de partida para questionar a estruturação do corpus de imagens que constrói o urbano e que a cidade (re)produz em contrapartida, conduzindo ainda ao questionamento da diversidade de pontos de vista que tais conjuntos imagéticos apresentam. A contribuição de Nelson Urssi mostra a transformação originada pela proliferação dos dados geolocalizados e das fontes de imagens; explora esta Metacidade questionando a visualização destes dados e o design das novas ferramentas de concepção urbana. A forma como as bases de dados de imagens e ambientes colaborativos convidam a reconsiderar as noções de séries, corpus e coleções está na origem do desenvolvimento da plataforma de imagens de arquitetura de open access Arquigrafia, cujos desenvolvimentos estão na origem da cooperação entre os pesquisadores paulistas e lioneses. Artur Rozestraten, autor do projeto, relata em seu artigo os desafios metodológicos e o processo técnico de implementação desta ferramenta que, em interação com um fundo fotográfico conservado pela FAU USP, permite a todos os usuários registrados — individual ou institucional — compartilhar suas próprias fotografias e dados de trabalho; sua contribuição mostra também como, através da associação das imagens e sua de mobilidade. O Arquigrafia propõe a seus usuários uma interface dialógica e crítica que perspectiva e constrói olhares ao mesmo tempo singulares e compartilháveis sobre espaços urbanos.

A criação de uma rede de imagens, operada por sua digitalização, afeta o trabalho de criação da própria imagem. É neste sentido que Sara Goldschmith e Ricardo Iannuzzi apresentam um trabalho fotográfico realizado sobre as margens do rio Pinheiros, em São Paulo. Este artigo explora as interações entre a duração deste trabalho — o antes, o durante e o depois — e a temporalidade dos próprios espaços urbanos. Os autores discutem como estas interações se abrem à novas percepções e significados, neste caso, como as imagens dos usos recreativos das margens do passado coabitam com as fotografias contemporâneas das mesmas margens poluídas para as quais a urbanização vira as costas. Ao mesmo tempo há uma produção de novas imagens que se alimenta de esperanças de um reencontro com o rio e suas margens no futuro. Colocar em foco o estatuto de uma memória da imagem na proliferação das imagens contemporâneas é o objeto da contribuição de Anne Courant e Anne-Sophie Clémençon que relatam a experiência de digitalização de um acervo fotográfico universitário de Lyon consagrado à arquitetura das cidades, à sua morfologia e às suas mutações recentes. A documentalista e a historiadora das formas urbanas concebem um trabalho de memória baseado em processos rigorosos de seleção, tanto na escolha dos princípios de restauração e de tratamento posterior das imagens, como na redação dos conteúdos científicos que as acompanham.

A natureza aparece vigorosa no espaço residual por onde escoa o riacho anônimo
Foto Arthur Cabral, 2016

A justaposição de imagens digitais dá origem a configurações com composições inéditas que precisam ser qualificadas com novos termos. Daniele Queiroz propõe assim o termo “constelação” para descrever o modo de existência destas imagens retiradas das redes digitais: o fato de estarem interligadas sem considerar seu corpus ou sua data de origem é precisamente o que permite fazer emergir motivos que estimulam a imaginação. Daniele Queiroz explora estes potenciais ao criar constelações de imagens provenientes de filmes que apresentam cidades imaginárias. Seu texto mostra também como esta forma de dispor as imagens renova as técnicas de colagem e questiona o movimento da imagem cinematográfica.

Finalmente, duas contribuições questionam o papel simbólico das imagens em sua relação com o processo de concepção arquitetural. Julieta Leite, Tania Pitta e Rafaela Teti se baseiam na abordagem proveniente da teoria antropológica do imaginário de Gilbert Durand, segundo a qual os imaginários são associados a inconscientes coletivos que estruturam os mitos e fábulas. As autoras constatam uma experiência de extensão universitária realizada no bairro Boa Vista em Recife, onde procuram reativar as memórias coletivas. O trabalho mobiliza as imagens arquetípicas associadas a este bairro em um método de análise destinado a orientar o processo de projeto arquitetônico e urbanístico, concebido como um meio de combinar dois tipos de conhecimentos — a organização espacial da cidade e sua apropriação por seus habitantes —, conforme o método do “Arquétipo Teste, AT-9” cruzando histórias do espaço e representações cartográficas. Lúcia Leitão se refere a um conceito lacaniano para explorar o espaço do imaginário psicanalítico no conceito arquitetural. A autora defende em seu texto a tese de que os tipos arquiteturais mantêm relações estreitas com as representações inconscientes da imagem do corpo humano, que fornece protótipos à arte de construir.

Jardim do Sr. Charles Pecqueur — Branca de Neve
Foto Bernard Lassus [Couleur, lumière…paysage]

“Ville Douce”

Uma segunda série de artigos questiona o imaginário da “ville douce” (4), suave e serena em resposta aos desafios ambientais e sociais das grandes metrópoles. O imaginário da cidade leve é, muitas vezes, mobilizado para descrever as aspirações e necessidades dos citadinos em sua relação com o ambiente e seu modo de vida, considerando a democratização do bem-estar dos indivíduos. Diante da crescente concentração de indivíduos nas grandes metrópoles atuais, à necessidade de deslocamentos diários, às construções e à poluição dos solos ou do ar, os autores desta seção propõem uma reflexão sobre a natureza e a paisagem urbana. As contribuições relativas ao tema da ville douce destacam, assim, os desafios paisagísticos e a forma como participam os cidadãos questionando o lugar da natureza na cidade, lhes concedendo um papel no apaziguamento dos males associados à vida urbana.

Lise Bourdeau-Lepage propõe apresentar uma imagem do que poderia ser uma cidade que permite ir além da abordagem técnica e produtivista da realidade urbana: uma ville douce. Sua análise parte dos efeitos das sobrecargas ambientais e virtuais na cidade e destaca a necessidade de abrandar o ritmo e se interessar, principalmente, pelo que denomina “o enverdecimento da sociedade urbana”, relembrando os efeitos positivos na saúde dos indivíduos da presença da natureza na cidade. Esta última se expressa de várias formas: em espaços urbanos como jardins, mas também em locais onde a natureza se reafirma. Ao analisar os jardins imaginários nos meios urbanos contemporâneos, Vladimir Bartalini se depara com as ambiguidades da paisagem condensadas nestes jardins, retratadas nos traços de um Hortus conclusus. Sua contribuição, de dimensão teórica, permite observar, na banalidade de algumas paisagens, uma fonte de imaginação ainda maior que a proporcionada pelas paisagens originais, e uma matéria que desperta, às vezes, a sensibilidade para esta natureza na cidade.

Arthur Cabral se interessa pelos espaços menos evidentes na cidade, os espaços rejeitados que concentram, em sua análise, uma importante fonte de experiências sensíveis. O autor destaca os transbordamentos que a natureza apresenta, sobretudo nas fendas, nos espaços desprovidos de atividades, ou seja, nos espaços baldios da cidade. A partir de casos precisos e empiricamente observados na Zona Norte de São Paulo, o autor descreve os espaços residuais da cidade como um abrigo, um espaço propício à expressão dos elementos da natureza. A abordagem bachelardiana que o autor desenvolve permite revelar imagens poéticas latentes da natureza em situações prosaicas urbanas.

Tatiana Francischini também trabalha sobre a questão das paisagens na cidade de um ponto de vista empírico. Interessa-se especialmente pelas paisagens do litoral e se baseia, como estudo de caso, no litoral da cidade de Natal, no nordeste do Brasil. Partindo da constatação de que a paisagem institucionalizada, delimitada e gerenciada pelos poderes políticos (através dos programas de ordenamento), não corresponde à paisagem experienciada pelos cidadãos, seu trabalho está centrado na coleta de relatos de experiências baseadas na percepção, na sensibilidade, e na vivência prática. Os encontros qualitativos realizados permitem que a autora destaque usos imprevistos e espontâneos, que revelam alternativas formuladas pelos cidadãos para atender às suas necessidades e, sobretudo, aos seus desejos de cidade, com uma forma de resistência.

A ideia de resistência e de apropriação por uma vivência diferente das projeções planejadas pelos urbanistas está também presente no artigo de Paula Hori. As potencialidades de vários espaços públicos são, segundo Hori, ocultas por seu status de espaço esquecido ou até abandonado. A autora se baseia, como estudo de caso, no Coletivo Ocupe e Abrace, cujo objetivo inicial é requalificar e reativar um local público na Zona Oeste de São Paulo. O trabalho apresenta como, com a vontade de mudar o nome deste espaço público para conscientizar a população e fazer dele o símbolo forte de uma apropriação pelos cidadãos, a mobilização coletiva permite uma inversão das tendências relativas ao uso dos espaços públicos. Paula Hori destaca, assim, uma dinâmica que evolui em direção à uma procura crescente de espaços públicos abertos, colaborativos, que vão no sentido contrário do movimento de privatização de vários espaços — fechamento de ruas, condomínios fechados, clubes exclusivos etc. — presentes nas metrópoles brasileiras. Esta contribuição, que defende uma cidade transformada cuidando do espaço urbano e de seus habitantes, se junta à perspectiva defendida por Lise Bourdeau-Lepage para defender qualidades espaciais e ambientais para projetos futuros.

Neste sentido, Paula Vicente propõe uma abordagem da cidade a partir do olhar das crianças e de sua forma de compreender e construir os espaços públicos. Seu trabalho se interessa pela cidade dos sonhos com base em vários suportes gráficos, entre os quais desenhos realizados por estudantes brasileiros. Sua análise é empírica e se deu na periferia noroeste de São Paulo. A autora considera o habitat, para além da habitação, e lembra que as crianças, como todo cidadão, habitam a cidade e, consequentemente, seus espaços públicos. O direito à cidade, de acordo com o conceito de David Harvey que Paula Vicente mobiliza, se aplica então às gerações mais jovens, para preservar e adaptar a cidade ao planejá-la da forma mais consoante aos desejos e sonhos das crianças.

Re-imaginar o habitat precário

Como o imaginário, o sensível ou o afetivo se relacionam ao conhecimento dos modos de habitar precários? Como a observação minuciosa pode se articular análises mais estruturais da precariedade? Nesta última seção, estes questionamentos fomentam o diálogo entre estudos urbanos brasileiros e latino-americanos que se inscrevem em uma forte tradição crítica, e, em uma abordagem que se apoia em uma tradição sociológica amplamente difundida na França.

As contribuições aqui reunidas abordam diferentes grupos confrontados com a experiência da marginalidade ou da exclusão social. Descrevem a densidade de situações peculiares e, deste modo, tornam visíveis as práticas de cidadãos estigmatizados ou criminalizados pelas representações sociais dominantes e pelas políticas públicas.

Vários artigos abordam o habitar em situação de migração. Adriana Diaconu se interessa pelos imigrantes pobres da Romênia: baseando-se na análise de documentários ingleses e franceses, e confronta as relações sensíveis estabelecidas com o habitat — ao longo de um percurso migratório, com as representações midiática e politicamente construídas do “bidonville Rom”, a favela cigana. Sua contribuição destaca a forma como as ações policiais de desmantelamento dos campos, criminalizando o habitat precário, fomentam em seus ocupantes “práticas de improvisação e apropriação de espaços impróprios ao habitar”. A autora mostra também que as dimensões transitórias e temporárias deste habitat são interiorizadas pelos próprios imigrantes como materialização da exclusão social e desvios em relação à “normalidade”. Nicole Tabet analisa as dinâmicas de resistência desenvolvidas pelos habitantes de um campo palestino da periferia de Beirute, no Líbano, em resposta aos discursos estigmatizantes e às medidas discriminatórias a eles dirigidas em razão de seu status jurídico ou social. Seu artigo procura mostrar como estas dinâmicas dependem de imaginários coletivos que se materializam na transformação física do campo, especialmente em sua verticalização recente. Nicole Tabet vê neste processo a expressão, por parte dos habitantes de Bourj El-Barajneh dos diferentes modos de contornar as discriminações, de negociar com a informalidade, de tornar visível sua busca de inclusão como cidadãos, de redefinir as fronteiras do campo e, assim, construir abertura possíveis para o exterior.

O campo: espaço de afirmação da identidade palestina
Foto Nicole Taubet, 2015

Cenas da vida cotidiana na favela de Massy, periferia de Paris
Fotograma do documentário “Le bateau en carton”, de José Vieira, Zeugma Films, 2010

Dois artigos abordam realidades brasileiras e, em especial, paulistas. Como parte de uma pesquisa dedicada à favela de Heliópolis, Felipe Moreira se baseia no percurso de um habitante vindo do Nordeste do Brasil para São Paulo, que se tornou coordenador local do Movimento Sem Teto, com o intuito de associar as lutas dos habitantes aos programas públicos locais desenvolvidos no bairro. Sua contribuição se apresenta “como uma maneira de territorializar a política habitacional e, ao mesmo tempo, discutir o papel do projeto como um instrumento da construção coletiva do espaço urbano”. Cintia Okamura, e seus colegas co-autores apresentam um trabalho de imersão junto aos habitantes de um condomínio da cidade de Mauá, duplamente expostos à poluição do solo e aos efeitos de uma explosão de metano ocorrida em 2000. A pesquisa dos autores confronta a experiência de um território de risco com controvérsias provocadas pela inércia pública. Neste sentido, se por um lado, sua contribuição destaca o traumatismo que representou a explosão, por outro lado, seu objetivo é mostrar os esforços desenvolvidos pelos habitantes para tornar seu quotidiano suportável, apesar de todas as dificuldades. Com o objetivo de fazer emergir a expressão sensível de uma experiência coletiva, a abordagem pelos ambientes — especialmente sonoros — que mobilizam os pesquisadores se torna assim o suporte de um processo de sensibilização — no sentido mais clássico do termo — que abre perspectivas de resiliência da comunidade local.

As diferentes pesquisas desta seção apresentam como, apesar de tudo, situações precárias se tornam habitáveis para indivíduos ou grupos que as vivenciam; por meio da re(criação) de um lar, através de ações coletivas, práticas de resistência ou ainda, mantendo ligações simbólicas, afetivas ou de memória com suas origens.

Derek Jarman, Prospect Cottage — Dungeness
Foto Estate of Derek Jarman [Derek Jarman’s Garden]

Os processos de transformações físicas dos locais descritos permitem vislumbrar possibilidades de reapropriação ou, pelo menos, de mudanças de perspectivas sobre estes mesmos locais. Tais pesquisas reinscrevem também a análise da experiência da precariedade nos percursos de vida, muitas vezes complexos, e insistem, retomando as palavras de Nicole Tabet, em um “processo dialético que envolve a interação das autoridades públicas, o contexto urbano, social e familiar bem como as práticas individuais”. Neste sentido, a contribuição dos autores sugere enfatizar situações ao invés de espaços e status pré-concebidos (o estrangeiro, o migrante...) e, assim, apreender os mecanismos de exclusão sob o viés da continuidade ao invés das dicotomias (legítimo/ilegítimo, formal/informal) que muitas vezes antecedem à sua exposição como questões de ordem pública. Nisto reside seu alcance crítico que, dentro das problemáticas apresentadas pela presente obra, permite discutir a pertinência de políticas (urbanas, migratórias etc.), de escolhas arquitetônicas e de planejamento urbano.

As perspectivas apresentadas por estes olhares cruzados continuam estimulando as colaborações franco-brasileiras enriquecendo as cooperações científicas que resultaram na organização da terceira edição do ICHT em São Paulo e no Recife, em 2019.

notas

1
Imaginaire: Construire et Habiter la Terre — ICHT. Lyon, 12–13 abr. 2017 <https://bit.ly/3rRGf0O>.

2
ROZESTRATEN, Artur (org.). Cidades “inteligentes” e poéticas urbanas. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2018. Apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo — Fapesp, processo n. 2017/16743-3.

3
ROZESTRATEN, Artur; QUEIROZ, Daniele; NILSON, Gabriel Negri; LEITÃO, Karina (org.). Portadores: imaginário e arquitetura. São Paulo, USP Prceu/ CNPq/Annablume/FAU USP, 2015.

4
O termo “ville douce” foi mantido nesta publicação no original, em francês, com o intuito de preservar sua amplitude de sentidos que contempla desde a concepção de uma cidade “suave” por ser “agradável” e “harmoniosa”, até a noção de um ambiente urbano pautado em princípios ecológicos. Conforme Claire Revol, uma das autoras deste prefácio, no âmbito dos estudos urbanos, o termo em francês “ville douce” se refere ainda a meios de deslocamento/transporte de menor impacto ambiental, tais como as bicicletas, os patinetes e o caminhar, evocando assim as transformações dos sistemas urbanos em sintonia com a transição ecológica contemporânea.

sobre os autores

Sandra Fiori é urbanista e docente na École Nationale Supérieure d'Architecture de Lyon.

Octavie Paris é geógrafa e docente na Université Jean Moulin.

Claire Revol é filósofa e docente no Institut d’Urbanisme et de Géographie Alpine, Université Grenoble-Alpes, UMR Pacte — Equipe Ambientes.

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resenha do livro

Poéticas urbanas

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Poéticas urbanas

Imageria, projeto e precariedade imaginário: construir e habitar a terra

Artur Simões Rozestraten (Org.)

2022

249.02
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