A “Bienal das mulheres”, como foi chamada de forma um pouco simplória a 59a Biennale d’Arte di Venezia – com aquele seu titulo um pouco enjoativo “O leite dos sonhos” tirado de um livro de contos de fadas da artista escritora britânica Leonora Carrington – fechou em 27 de novembro do ano passado, com recorde de artistas convidados e de publico (213 artistas de 58 países, dos quais 80% eram mulheres; mais de 800 mil ingressos vendidos, o maior índice de visitantes nos 127 anos de historia da instituição).
A curadora foi Cecilia Alemani (Milão, 1977) formada em filosofia pela Universidade Estadual de Milano (“diziam que me abriria qualquer porta porque a filosofia é uma forma mentis e ensina a pensar. E afinal é assim mesmo...”) e responsável dos eventos da High Line de New York, a ex-estrada de ferro elevada ao longo do Hudson, onde se confronta há mais de dez anos com milhões de visitantes “que arte contemporânea nem sequer sabem o que é”.
Revelações e surpresas de fato não faltaram nesta edição 2022, que pretendia investigar entre outros o tema do corpo e as diferenças que separam o vegetal, o animal, o humano e o não humano: e não sò graças à presença de artistas como Simone Leigh (Chicago, 1967), primeira mulher afro-americana a representar em Veneza os Estados Unidos e merecidíssimo Leão de ouro desta edição, com suas grandes esculturas produto de técnicas antigas; de Katharina Fritsch (Essen, 1956) com o realismo (ou neopop) perturbador de seu enorme elefante debaixo da cúpula do pavilhão central; de Cecilia Vicuña (Santiago, Chile, 1948) que apresentou seus Precarios mas também obras recentes; de Louise Bonnet (Ginevra, 1970) com seus corpos exagerados envolvidos em funções bastante intimas; ou da inquietante Paula Rego (Lisboa, 1935) presente pela primeira vez numa Bienal, com uma sala pessoal, aos 87 anos, e falecida em Londres dois meses depois.
Mas também participaram artistas menos conhecidas como Emma Talbot (Stourbridge, UK, 1969) que nas Corderie encobriu de perguntas sem fim suas enormes telas pintadas; a neozelandesa Yuki Kihara, (Samoa, 1975) com seu incrível Paradise Camp, releitura “pós-colonial“ da obra de Paul Gauguin pela comunidade Fa’afafine das Samoas; Kudzanai-Violet Hwami (Gutu, Zimbabwe, 1993), que reconstruiu em Londres com recursos digitais um encantador álbum de casamento de uma comunidade do Zimbabwe; a pintora naif Palmira Correa (Cumanà, Venezuela, 1948), que nos acolheu sentada e risonha – com duas muletas ao lado – no meio de um mundo arrumado e colorido, povoado de imagens da fé e do dia a dia e de inúmeras outras.
Sem falar das joias apresentadas pela curadora na seção das artistas pioneiras La culla dele streghe (O berço das bruxas), como o filme mudo em que Josephine Baker (Saint Louis, EUA, 1906 – Paris, 1975) dança zombando dos estereótipos sobre África e africanos; ou as figuras construídas com folhas finas e afiadas de alumínio de Regina Cassolo Bracchi (Mede Lomellina, 1894 – Milano, 1974), a única mulher escultora do futurismo.
As costumeiras “provocações” em prol de visitantes que costumam se empilhar ao redor das performances mais “ousadas” em 2022 ficaram por conta da dinamarquesa Sidsel Meineche Hansen (Ry, Dinamarca, 1981), que nos impingiu com Maintenancer (2018) as operações de manutenção das bonecas eróticas numa casa de prazer.
Mas se eu procuro me lembrar dos pensamentos e emoções mais fortes que esta Bienal me deixou – a começar pelo encontro com a obra de Jaider Esbell (Normandia, Roraima, 1979 – São Paulo 2021) e o choque pela morte dele, da qual eu nada sabia * eu noto, com alguma surpresa, que estes estão ligados a uma pequena minoria de nomes masculinos.
É o voo do urubu ao redor da uma gaiola de prédios cinzentos, filmado pela janela por Luiz Roque (Cachoeira do Sul, 1979) em tempos de pandemia; são as brincadeiras infantis transmitidas pelos povos e culturas do mundo todo – do México do México à Bélgica, da Suíça ao Afeganistão, de Hong Kong ao Congo – estudadas e acompanhadas com olhar amoroso e atento por Francis Alÿs (Antuérpia, 1959).
Foi a procura saudosa de expressões populares que utilizam partes do corpo para descrever sentimentos e situações - “No’ na garganta”, “Dedo podre”, “Entrar por um ouvido e sair pelo outro”, “Minhocas na cabeça”, “Falar pelos cotovelos” etc. – na gostosa instalação Com o coração saindo pela boca do artista alagoano Jonathas de Andrade (Maceió, 1982). Permanece, porém, a este respeito a questão: porque não ter escolhido desta vez para o pavilhão brasileiro a artista Celeida Tostes (Rio de Janeiro, 1929-1995), cujo trabalho com a terra e com o fogo teria sido em perfeita, surpreendente sintonia com as intenções da curadora desta Bienal?
Foi, enfim, o mergulho na mega instalação de Gian Maria Tosatti no pavilhão da Italia, pela primeira vez entregue – com a coordenadoria de Eugenio Viola – a um único artista em lugar dos costumeiros loteamentos.
Para refletir sobre o fim do sonho industrial italiano e o futuro incerto de todos nós Tosatti andou catando pela Italia toda restos de estabelecimentos não mais utilizados e construiu no enorme espaço do pavilhão do Arsenal – por sua vez antigo lugar industrial! – a fabrica abandonada. Nós caminhamos sozinhos e em silêncio – esta era a regra peremptória que nos era dada na recepção – pela sala de máquinas; subíamos ao apartamento do diretor com o seu mobiliário convencional; verificávamos de cima – imersa numa luz esverdeada que nos lembrava enchentes passadas – a sala de confecção têxtil; depois voltávamos ao rés-do-chão e deambulávamos entre as mesas de trabalho. Além da sala dos aspiradores nos encontrávamos enfim na escuridão; descíamos cautelosamente por uma rampa de madeira e chegávamos a um "mar" que se movimentava no escuro sem parar. Na outra margem à nossa frente objetos luminosos caiam do alto: “cometas”, sugeria-nos o título do evento, ou talvez os vaga-lumes que Pier Paolo Pasolini nos havia contado... mas nestes tempos de guerras já não tínhamos tanta certeza.
Saímos da fábrica quase aliviados levando conosco – em vez do habitual e pesado material de papel – apenas o código de download que nos foi entregue à saída.
Meses depois, a emoção dessa experiência permanece muito forte: mas a próxima Bienal de Arquitetura já vem aí e logo veremos que sonhos – ou pesadelos – ela nos oferecerá.
notas
NE – ver também: ROSSO DEL BRENNA, Giovanna. Jaider Esbell. 59ª Exposição Internacional de Arte da Bienal de Veneza. Drops, São Paulo, ano 23, n. 184.03, Vitruvius, jan. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/23.184/8691>.
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Temos data marcada e curadoria já escolhida também para a 60ª Bienal de Arte: de 20 de abril a 24 de novembro 2024, curador Adriano Pedrosa.
sobre a autora
Giovanna Rosso del Brenna, italiana, é historiadora da arte. É docente da Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão, desde 2001, e da Università degli Studi di Genova, desde 2000. Foi professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) entre 1978 e 1990.